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O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas:

do liberalismo à socialidade

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01/10/2002 às 00:00
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5 O Novo Código Civil: atual ou obsoleto?

O fato de ter tramitado nas Casas de Leis deste país há quase trinta anos, desde os vários anteprojetos e projetos, pode até induzir suposta idéia de obsolescência. Tanto assim que muitos questionam sua prestabilidade para os dias de hoje. Antônio Junqueira de Azevedo, por exemplo, sustenta que à época da edição do modelo inicial do Projeto muitos dos atuais pensadores sequer tinham nascido (Azevedo, 2001, acesso em 5 de maio). No seu modo de ver, o novo Diploma pouco avanço traria, em relação ao Código vigente, concluindo que seria nada recomendável editar-se, no "ano 2000", uma ordem codificada idealizada nos idos de "1970" (Passos, 2001, acesso em 2 de maio). Assim também o professor Francisco dos Santos Amaral Neto, que pôs em dúvida a eficácia no vindouro Codex para a regulação da maioria dos problemas atuais, argumentando: "não sei se seria adequado, hoje, fazer um novo Código", até porque a experiência amealhada propicia condições para que se enfrentem os "desafios da sociedade contemporânea", "pós-industrial, complexa e pluralista, em que a revolução da Biotecnologia e as conquistas da Medicina criam" mais "desafios para os quais" (Amaral Neto, 2001, acesso em 5 de maio) se mostraram insuficientes as concepções consolidadas nos séculos passados.

Nessa linha encontram-se críticas que o acusam de ser insuficiente para regular as procriações in vitro, o transexualismo, a engenharia genética, a rede mundial de computadores etc. Realmente, temas por demais atuais como o "transplante de órgãos", o "projeto genoma" e a "clonagem" (Fachin, 2001, acesso em 5 de maio) não povoam esse Codex. Em resposta, o ministro Moreira Alves aduz que temas novos ou novíssimos, como tais, ainda não suficientemente solidificados, não devem mesmo fazer parte de um Código, onde não há lugar para experimentos (2001, acesso em 05 de maio).

Ponderando que o mais importante não é ser contra ou favorável essa iniciativa, Fachin vê coerência na preocupação nela contida, de regulamentar apenas questões mais solidificadas, propositalmente deixando fora as que ainda se constituem em novidades mal-sedimentadas. Porém lamentou o fato de o legislador não ter ido além de meramente normatizar o que hoje já se consagrou como relevante. Para ele, deveria tê-lo feito também a respeito daquelas questões que, numa rápida mirada, se afiguram relevantes a que os desfavorecidos pela sorte possam atingir sua alforria da sina de viver sem o mínimo de dignidade humana (apud Moreira Alves, 2001, acesso em 5 de maio).

Miguel Reale, quanto às críticas sobre o Direito de Família, sustenta que a nova ordem encontra-se congruente com a realidade atual, notadamente porque atualizada ao longo dessas décadas de discussão, inclusive com as inovações constitucionais de 1988, consagrando, exempli gratia, a) a total igualdade dos cônjuges; b) a igualdade dos filhos, vedando qualquer qualificativo discriminatório e c) o ostensivo reconhecimento da "união estável", com asseguração da entidade familiar e dos companheiros (Reale, 2001, acesso em 10 de maio).

Em outro ponto, anota que o Código novo incorporou as mudanças instituídas pela Constituição da República, adaptando-se "aos novos preceitos, à nova Lei do Divórcio", aos nortes da "lei de usucapião especial", "à igualdade dos cônjuges", indo "além [...] do Estatuto da mulher casada" etc. Lembrou, todavia, que a Carta Constitucional também adotou propostas que estavam no Projeto, como as relativas ao sentido social, ao regime de bens do casamento etc. (Reale, 1999, p. 15-16) Não é demais considerar, mesmo en passant, que até o Código do Consumidor recolheu idéias então já integrantes do esboço civilista que peregrinou pelas Casas Legislativas do país. Quanto às críticas, afirma-as "apressadas ou inoportunas" (Reale, 1999, p. 14-15), ou, ainda, "atrasadas" (Reale, 2001 [O Projeto...], acesso em 10 de maio) (quanto às formuladas pela OAB). Anota, enfim, que o Código nada poderia normatizar sobre união entre pessoas do mesmo sexo, mesmo porque essa matéria diz respeito à Constituição Federal, pois é aí que se encontra proteção restrita à união entre pessoas de sexos diversos. Sobre os outros pontos, afirma que as críticas são fruto de uma interpretação míope, calcada "em antiquada hermenêutica literal" (Reale, 2001, [A atualidade...] acesso em 10 de maio).

Lembrando a feliz argumentação de Judith Holfmeister Martins Costa (2001, acesso em 10 de maio), o então Projeto do Código Civil, malgrado o tempo de seu trânsito pelas Casas Legislativas, traz em si a técnica das cláusulas gerais, com o que consagra as concepções confessadas na Exposição de Motivos, de "segurança e flexibilidade", a fim de "recolher e regular mudanças e criações supervenientes", com o quê se viabiliza a devida "construção e reconstrução" do Direito, especialmente "as necessárias interrelações [sic] entre o Código Civil, a Constituição Federal" e eventuais leis que, porventura, sobrevierem. Enfatiza, mais, que esse Diploma, com a técnica (das cláusulas gerais), apresenta condições para sempre se atualizar, quais "janelas abertas" que lhe propiciam mobilidade suficiente.

Logo, afiguram-se um tanto questionáveis as críticas assacadas ao Novo Código, isto é, de que seria "perigosamente ‘falho’ e ‘indefinido’ (quanto à alusão à função social do contrato), [...] ‘omisso’ (quanto a temas polêmicos), [...] ‘ultrapassado’ e, inclusive, ‘ignorante’ (quanto à técnica das cláusulas gerais) [...]". (grifos do autor) (Costa, 2001, acesso em 2001). Ora, nele foi adotada a sistemática de se legislar mediante o emprego de termos de vagueza proposital. Por exemplo, optou-se por emitir diretrizes, coordenadas genéricas segundo os nortes da Constituição Federal (até mesmo pela atualização e compatibilização operadas no Senado, onde recebeu mais de trezentas emendas), tais como: a) homenagem à boa fé objetiva (art. 422), comportamentos éticos conformes com os usos do tráfico (art. 112); função social da propriedade, do contrato (art. 421); abuso ou desvio da pessoa jurídica (art. 50)14 etc. Com isso, lançou mão de "linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou" ampla, a fim de que, por uma leitura diuturna (atividade criadora), seja possível mantê-lo historicamente em sintonia com o mundo dos fatos, realizando o bem comum e a justiça social (Costa, 2001, acesso em 10 de maio).

Portanto, afigurou-se oportuna a promulgação do Novo Código. Importantes mudanças a ele se deveram,15 algumas, como visto já, incorporadas pela Carta de 1988. Outras decorreram da própria evolução dos fatos, das discussões em torno desse Texto e, também, de demais leis recentes. Desse modo, e porque o sistema do Código se encontra aberto à complementação diuturna, especialmente pelos operadores do Direito, não procede a crítica de que seria arcaico. Sê-lo-ia se não tivesse recebido os influxos das mutações que se seguiram à época de seu envio à Câmara dos Deputados, nos idos de 1975, e se tivesse adotado sistema fechado, não permeável às transformações e aos anseios sociais.


6 O Direito Privado: unificação?

Sem adentrar à quase centenária discussão acerca da unificação ou não do Direito Privado, calha lembrar que já em 1942 o professor Cesare Vivante se ocupou com a dúvida sobre a reunião, num só diploma, do Direito Civil e do Direito Comercial, recuando após concluir como desaconselhável a idéia (Hentz, 2000, p. 15).

Poderiam supor os menos avisados que o Novo Código Civil teria contemplado suposta unificação, porque nele foram insertas regras sobre a atividade empresarial, as pessoas jurídicas ditas mercantis e, na parte especial, instituído capítulo novo, rotulado de "direito de empresa", disciplinando os empresários, as empresas e as modalidades de pessoas jurídicas (as associações e sociedades, estas subdivididas em simples ou empresariais). Nada obstante, tal unificação jamais se deu. Quando muito, operou-se unificação da parte geral das obrigações, em prol de uma teoria geral do direito obrigacional, segundo o próprio arauto do Novo Código (Reale, 1990, p. 5).


7 O Novo Código Civil brasileiro e seu perfil axiológico

Se a sociedade era agrária nos idos da edição do Código de 1916, ostentando economia centrada na atividade produtiva rural, com o fenômeno da industrialização vieram o êxodo rural, o inchamento das cidades, os problemas de habitação, a falta de emprego etc., problemas que provocaram, em 1963, a edição do Anteprojeto do Novo Código Civil, pelas mãos de Orlando Gomes (e de um Código das Obrigações).

Ante o decurso de tempo, tal Anteprojeto acabou reformulado (ou substituído) em 1969, por nova Comissão, capitaneada pelo professor Miguel Reale (e composta pelos não menos ilustres José Carlos Moreira Alves [Parte Geral]; Agostinho de Arruda Alvim [Obrigações]; Sylvio Marcondes [Direito de Empresa]; Ebert Vianna Chamoum [Direito das Coisas]; Clóvis do Couto e Silva [Direito de Família] e Torquato Castro [Direito das Sucessões]) (Reale, 1999, p. 2). De seus trabalhos, surgiu em 1975 o Projeto cognominado 634/75 (e, mais tarde, 634-B). Sua filosofia era predominantemente social, seguindo as tendências que à época já eram evidentes (tanto que na Itália já havia sido editado Código Civil nessa direção). Parafraseando Ruy Rosado de Aguiar Júnior, a posição adotada pela Comissão, no Projeto, foi "evolucionista" e congruente com a "nova realidade social" (da época) (2001, acesso em 5 de maio).

Depois de longa discussão na Câmara dos Deputados, onde o número de emendas foi elevado, o Projeto acabou aprovado em 1984, incorporando as mudanças inseridas por via de outras leis (como a de usucapião especial e de locação), tendo, enfim, sido encaminhado ao Senado Federal. Aí, sobretudo em razão da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, seu trâmite sofreu solução de continuidade, até para que se sentisse o alcance das mudanças constitucionais e se evitassem incompatibilidades entre os dois diplomas. Como a Constituição Federal de 1988 ratificou o "sentido social" que o Código já incorporara, com algumas poucas mudanças atualizadoras (em especial no Direito de Família), acabou, depois de muitas discussões e trezentas e trinta e duas (332) emendas incrementadas pelo Senado (Moreira Alves, 2001, acesso em 5 de maio), aprovado em 26 de novembro de 1997 (Reale, 1999, p. 5).

Em 1999 retornou à Câmara dos Deputados, onde as emendas senatoriais foram referendadas em agosto de 2001. Com a redação final, o plenário votou e o aprovou em dezembro de 2001, com algumas emendas ou corrigendas à redação. Finalmente, foi o Projeto convertido na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, publicada no DOU do dia seguinte, a qual instituiu o Novo Código Civil brasileiro, o que entrará em vigor após a vacatio legis de um ano (em janeiro de 2003), segundo preceitua seu art. 2.044.16

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O Diploma que em breve vigorará conservou, tanto quanto possível, a estrutura do Código de 1916, e vem com uma parte geral, na qual a novidade maior se circunscreve à unificação da teoria geral das obrigações. A parte especial é composta pelos livros das obrigações, da empresa (aqui uma novidade), das coisas, da família e das sucessões (Reale, 1999, p. 4-6). Foram incorporadas as noções de função social do contrato, cláusulas gerais de cunho ético (orientadoras do juiz e capazes de abrir o sistema). Foram, ainda, regulamentadas novas técnicas, como a da desconsideração por abuso da personalidade jurídica (art. 50), do estado de perigo", do abuso do direito, da função social do Direito e da propriedade, do prestígio à boa fé objetiva, da homenagem à ordem pública e de novos paradigmas contratuais ou figuras contratuais etc. (Aguiar Júnior, 2001, acesso em 5 maio).

7.1 O princípio da socialidade

Tantas vezes se afirmou que à época do Código Civil ainda vigente, do Estado liberal, o individualismo e o liberalismo grassavam, razão pela qual os valores da pessoa individual eram superestimados, em detrimento dos interesses gerais da coletividade. Isso se explicava pelo fato de que o homem pré-Revolução Francesa, oprimido pelo soberano eclesiástico ou monárquico, ao se sentir alforriado, tomado só pelos ares da igualdade e da liberdade (não pelo compromisso com a fraternidade, que também é pauta desse movimento transformista), reputava que a propriedade (ou o direito de acessá-la) seria fundamental à realização humana, daí recrudescendo os sentimentos egoísticos.

Mas logo a pragmática evidenciou que o esquema individualista tinha de ser revisto, porque o ser humano, a despeito de ser tido como o centro dos interesses, não pode ser individualista, guiado por sentimentos egoísticos. Deve, antes disso, assumir a condição de membro da comunidade, de compromissado com a prioritária proteção dos valores da coletividade, com o que também os individuais legítimos. Equivale a dizer: o bem-estar individual deve se harmonizar ou se condicionar ao bem-estar geral, como, a propósito, preconiza a Constituição Federal vigente.

Impelido por idêntica concepção, sobreveio o então Projeto do Código Civil, que, incrementado pela Carta Política de 1988 e pela instituição do Estado social, priorizou o "sentido social",17 abandonando o liberalismo de outrora. Aliás, "se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana", realça Reale (1999, p. 7-8).

Não foi por outra razão que a função social do Direito, do contrato, da propriedade, se impôs como um dado geral, fundamental, ao manejo dos direitos subjetivos (estes, portanto, não mais como simples produto do poder da vontade individual), impedindo que o contratante auto-suficiente se imponha abusivamente ao mais fraco, ou o proprietário se comporte – à frente de seus bens – de modo arbitrário e acintoso, frustrando a função social que justifica tais condições (Aguiar Júnior, 2001, acesso em 5 de maio).

Nesse propósito estão os vários comandos sancionadores do uso abusivo ou irregular do direito subjetivo, em especial o seu art. 187.18 Enfim, a socialidade é traço marcante ou predominante no Código vindouro. Tanto assim que cunhou e valorizou o conceito de posse-trabalho (ou pro labore), submeteu o direito de propriedade à funcionabilidade, aos interesses gerais como limitadores da individualidade, dentre outras inovações. Miguel Reale, retruca as críticas de que essa filosofia social acabaria "gerando a massificação e sacrificando a individualidade", dizendo: "trata-se de tolice tão evidente que não merece nem comporta discussão" (1999, p. 15).

De resto, a opção pelo social não só é tendência jurídica mundial, porquanto fundamental à realização dos valores básicos das pessoas, como é necessária ao combate de posturas arrimadas no vício do "jeitinho", do "oportunismo", da "esperteza", da prevalência dos poderosos . Atende, enfim, aos reclamos de justiça social, distributiva, abominando a ganância dos que se acostumaram com códigos e leis utilizados como instrumentos de dominação. Afinal, e parafraseando o eminente professor Fachin, o Direito deve ser tomado como "a serviço da vida" (Fachin, 2000, p. 15), ou seja, tem de priorizar a valorização da ética, o uso regular dos direitos e a solidariedade social.

7.2 O princípio da eticidade

É de todos sabido que a representação silogística da atividade judicante, ainda que porventura proveitosa à explicação simplista de como certos raciocínios jurídicos ocorrem (aptos a situações sem nenhuma complexidade, quase aritméticas), tem sido ruinosa no mais das vezes, por servir de muleta a muitos operadores do Direito que se limitam à autômata função de realizarem meros esquemas lógico-dedutivos, talvez pela ingenuidade de suporem que a solução sempre estaria pré-fabricada na legislação.

Ora, como as próprias regras contêm palavras ou conceitos de conteúdo e alcance indefinidos, que diuturnamente têm de ser decifrados por quem as opera, sua construção e reconstrução não se exaurem no escrito nem em qualquer exegese padronizada. A bem da verdade, muitos daqueles dados estão estreitamente ligados a noções de moral, ética, boa fé, honestidade, lealdade, confiança, razão pela qual é imprescindível a contínua interação – interpretação – desses motes, como induz a sistemática do Novo Código.19

Com efeito, admitindo a não-completude do sistema positivo, traça um sem-fim de diretivas, por meio de conceitos propositalmente vagos e cambiantes, para que o hermeneuta se encarregue, respeitando os vetores ratificados no Texto Constitucional, de realizar a necessária atualização da ordem positiva, a fim de mantê-la rente e congruente com a realidade – e com os anseios – sociais. Eis a lição de Miguel Reale (1999, p. 39):

Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa e eqüitativa. [...] por mais que o legislador seja sábio e tecnicamente bem informado, jamais lhe será dado prever todas as ocorrências, insurgências e recorrências da vida jurídica, tornando-se necessária a salvaguarda da eqüidade, na dupla acepção dada por Aristóteles a esse termo, ou seja, como instrumento de interpretação das normas jurídicas segundo sua adequada e prudente medida, e também para suprir lacunas inevitáveis no corpo da legislação.

Não se imagine que, na esteira da literalidade do art. 127, da lei processual civil, o juiz apenas poderá lançar mão da eqüidade quando a lei, prévia e expressamente, o autorize. Isso só será necessário "nos casos em que o juiz deva aplicar a eqüidade" afastando-se do texto legal. Mas, como "meio de interpretação da norma legal, para a justa aplicação ao caso concreto [...], não depende de autorização expressa do legislador" (Barbi, 1986, p. 521).

Enfim, como arremata Reale, "o que mais importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam" (Reale, 1999, p. 8). Esse Diploma tem "base ética", pois valoriza a correção de comportamento, a probidade, a retidão, a solidariedade social, o bem-estar comum, o apreço à pessoa humana, o uso racional dos institutos e categorias jurídicas etc.

7.3 O princípio da operabilidade

Como acentuado pelo professor Miguel Reale, optou-se por sacrificar alguns aspectos teóricos em prol de maior prestabilidade empírica da norma. Lembra ele, invocando Jhering, que "o Direito é feito para ser executado", e o que não cumpre esse papel "é como chama que não aquece, é luz que não ilumina" (1999, p. 8).

Realmente, não basta um código que traduza os mais atualizados e rebuscados conceitos jurídicos. Terá de ser eficiente e efetivo para regular, a contento, os problemas do cotidiano. É fundamental que guarde pertinência e prestabilidade ao enfrentamento dessas questões. E essa preocupação foi constante na Comissão encarregada do então Projeto do Código.

Miguel Reale, para exemplificar esse propósito, toma a controvérsia existente em torno da diferenciação entre decadência e prescrição, para concluir que, em vez de adentrar ao âmago das mais elevadas abstrações teóricas, o Novo Código preferiu ir diretamente ao assunto, separando uma da outra, de modo a evitar as perplexidades e as decisões controvertidas que são vistas no atual estágio (1999, p. 9-11). Concluindo, esse civilista exortou que o objetivo foi elaborar um Código que funcione realmente, que seja realizável na prática,20 ainda que para isso a cientificidade tenha eventualmente perdido algum espaço.

7.4 Princípio da concretude

Essa regra, também denominada "concretitude" (no dizer de Reale), de certo modo se imbrica com a anterior. Ambas objetivam a efetiva prestabilidade da regra jurídica, sua aptidão concreta à regulação dos casos que decorrem do dia-a-dia.

É certo que o legislador, diferentemente do julgador, cria a regra para os casos em geral, segundo a característica da generalidade. Sem embargo disso, deve – tanto quanto possível – legislar com vistas a alcançar as pessoas, concretamente. A abstratividade da lei, pois, deve ser entendida não como um culto às abstrações, uma falta de compromisso com a realidade, mas apenas como uma função da norma, que nasce para atingir fatos futuros (aí o sentido de abstrato), ou seja, que irão ou não acontecer.

Por essa razão é que se afirma não fazer sentido algum legislar tendo em mente situações ou pessoas ideais, com os olhos cerrados para os fatos e agruras da sociedade. Por mais bela e bem-elaborada que seja, a legislação valerá unicamente pela sua funcionalidade, aptidão e prestabilidade para enfrentar e resolver, com justeza e pertinência, os problemas do mundo dos fatos. A respeito, elucida Miguel Reale (1999, p. 12):

Concretude, que é? É a obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado: legislar para o homem enquanto marido; para a mulher enquanto esposa; para o filho enquanto um ser subordinado ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais, à vivência plena do Código, do direito subjetivo como uma situação individual; não um direito subjetivo abstrato, mas uma situação subjetiva concreta.

Aliás, a troca das abstrações legais pela concretude denuncia o rumo que o Direito precisa tomar. Consoante Luiz Edson Fachin (2000, p. 88-89), a "tendência contemporânea é o abandono dessas concepções abstratas e genéricas", quanto aos "titulares de direito" e também "àquilo que pode ser objeto dessa titularidade." E arremata: nos "dias correntes, a relação jurídica está passando por uma transformação, que deixa o cunho de abstração e da generalidade de lado [...]."

Portanto, o novo Codex se apresenta congruente com essa tendência, por regular o sujeito de direito não em moldes ideais ou segundo as concepções de outrora, em que o Direito parecia estar comprometido com o patrimonialismo, na medida em que, em sua visão, o "ser sujeito de direito" dependeria "de sua aptidão para, seguindo igualmente parâmetros ditados pelo sistema, ter patrimônio" (grifos do original) (Meirelles, 1998, p. 92-93). Na sua ótica, a noção de patrimônio se expandiu, passando a encampar os valores imateriais do homem, e que lhe são inatos. Conseqüentemente, toda pessoa humana, dotada ou não de economias, concretamente encontra-se emoldurada pela ordem jurídica, pois assim estão o novel Diploma Civil e a vigente Constituição Federal.

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Sobre o autor
José Camacho Santos

mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá (PR), professor da UEM e da Escola da Magistratura do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, José Camacho. O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas:: do liberalismo à socialidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3344. Acesso em: 26 abr. 2024.

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