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O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas:

do liberalismo à socialidade

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01/10/2002 às 00:00
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8 Algumas particularidades do Novo Código

Apesar da diversidade de entendimento em torno da atualidade desse Estatuto, da eventual timidez quanto a alguns assuntos, sem dúvida trouxe ele inúmeras inovações. A título de exemplo, há estes destaques:

a) combate à onerosidade excessiva, também nos contratos fora da seara consumerista;

b) distinção, pormenorizada, dos casos de decadência dos de prescrição;

c) regulação do direito de superfície;

d) redução da idade para a aquisição da maioridade;

e) troca do termo "pátrio poder" por "poder familiar";

f) normatização da técnica desconsiderativa;

g) expressa tipificação do abuso de direito como ato ilícito;

h) restrição do poder do testador;

i) consideração de fenômenos como os da "lesão enorme" e da "onerosidade excessiva";

j) revisibilidade dos pactos;

l) reforço à função social da propriedade, bem como a extensão dessa diretiva aos contratos e demais institutos e categorias jurídicas (ante a sociabilidade assumida);

m) regulação específica e ostensiva do fenômeno desconsiderativo em razão do desvio de função da pessoa jurídica ou de confusão patrimonial entre sociedade e sócio;

n) inclusão dos compromissos de compra e venda entre os direitos reais;

o) possibilidade de os juízes se valerem de noções sobre eqüidade, boa fé (objetiva), probidade, retidão etc., para enfrentar casos em que se verificou egoísmo no manejo dos direitos subjetivos;

p) exposição de que à legislação específica e adicional se reservará o compromisso de regular questões novas e ainda não suficientemente sedimentadas;

q) novo e mais abrangente tratamento do tema das pessoas jurídicas;

r) sedimentação do entendimento de que a prescrição fulmina não a ação e sim a pretensão, remetendo para o campo processual a abordagem desse fenômeno, a ele pertencente;

s) regularização do contrato de transporte e dos de incorporação de edifícios;

t) reforço à indenizabilidade do dano moral puro;

u) extensão da responsabilidade objetiva aos entes privados na eventualidade de estarem desempenhando atividade pública;

v) várias medidas nas áreas do Direito de Família e do de Sucessões (aqui, pondo o cônjuge supérstite entre os herdeiros necessários, em concorrência com os descendentes e ascendentes);

x) uso da técnica das cláusulas gerais, o que abre o sistema às interpretações criadoras;

z) substituição de expressões equivocadas ou dúbias, como as de "loucos de todo gênero" por "enfermos e deficientes mentais que não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil" etc.

Todos esses – e outros tantos contributos (muitos recepcionados pela Carta Política e pelo Código de Defesa do Consumidor) – obviamente justificam e avalizam a conclusão de que o Código cuja vigência se avizinha veio em boa hora. Ainda que sua aptidão e eficácia sejam evidentes, muitos21 há que isso não reconhecem, arrimados em argumentos de que ele não contemplaria alguns dos mais polêmicos temas da atualidade (e que, por isso, estão sujeitos a freqüentes mudanças sociais), de que teria vindo numa época em que a descodificação é a tendência etc.

Seja como for, a presteza e atualidade da novel regulação civil – codificada – é inegável, e bem-vinda. Representa léguas à frente da ordem jurídica que tinha o Diploma de 1916 como paradigma, ainda que, como todo Estatuto, terá de se manter em constante atualização e sincronia com os fatos da vida.

Espera-se, por derradeiro, que se tenham a sensibilidade e a acuidade necessárias à correta compreensão do Direito posto. Afinal, de nada adiantam leis boas se infiéis ou imperitos forem os seus aplicadores.


9 Conclusões

1. O Direito tem de servir à promoção de uma sociedade mais digna e justa, à valorização da ética, à prevalência da solidariedade social sobre o individualismo, segundo os vetores axiológicos que norteiam todo o sistema jurídico.

2. Nos dias que correm, ao lado dos interesses públicos e privados está um terceiro gênero, o dos direitos sociais, dentre os quais se inserem as normas consumeristas, trabalhistas, locatícias etc.

3. Os fatos sociais variam espaço-temporalmente, condicionando o ordenamento a proporcional variabilidade. Daí, as técnicas e institutos jurídicos, antes de absolutos e inflexíveis, são relativos e móveis. Nesse rumo, se alteraram como a concepção socioideológica se modificou de liberal para social, consoante a tridimensionalidade realeana.

4. Na efervescência da Revolução Francesa, liberdade e individualidade eram valores fundamentais. O Direito seria, então, um tanto hermético e auto-suficiente. Hoje, na concepção social, o Direito tem perfil maleável, subordinado à planta constitucional de valores, ou axiológica, e que há de estar "a serviço da vida".

5. Funcionalização do Direito nada mais é que a sua efetiva prestabilidade à realização dos fins – ou objetivos – sociais do Estado. Tem função promocional, a de viabilizar determinadas metas políticas.

7. O Diploma Civil cuja vigência se avizinha reverencia os princípios da socialidade, da eticidade, da operabilidade e da concretude.


10 Notas

1 Vejam-se, a respeito, os já transcritos arts. 1º, incs. I a IV, e parágrafo único, 3º, incs. I e IV, e 170, incs. I a IX, e parágrafo único, todos da Constituição da República Federativa do Brasil.

2 Segundo doutrina especializada (Tepedino, Maria, 1993, p. 21-32), "[...] Parece questionável que tamanha mutação tenha advindo, exclusivamente, a chamada ‘publicização’ do direito privado, como comumente se atribui. Diversamente, talvez haja decorrido uma mudança interna, na própria estrutura do direito civil, tornando alteradas, desse modo, suas relações com o direito público. Em primeiro lugar, como se sabe, os códigos civis perderam a posição central que desfrutavam no sistema, verdadeiras constituições em que se configuravam, acarretando a redução do espaço reservado ao contrato e à propriedade, institutos-chave do liberalismo. Além disso, a concepção de proteção da vida individual – construção em que subjaz a autonomia individual em sentido absoluto – deu lugar à noção de integração do homem na sociedade, substituindo-se, por força da industrialização, à figura do indivíduo isolado aquela da associação. A evolução do direito civil também se explica, pois, como efeito da influência das grandes correntes do pensamento, em particular da marcada tendência a uma justiça social em maior proporção decorrente, principalmente, do alastramento do trabalho subordinado. De conseqüência, o processo de transformação econômica, social e jurídica, que se iniciou na 1ª Grande Guerra, já não encontrou o direito civil incólume [...]".

3 Lei n. 8078/90 (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor), art. 1º: "O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição e art. 48 de suas Disposições Transitórias".

4 Inc. XXXII, art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".

5 Lei n. 8137/90, art. 81: "A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeito deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeito deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum".

6 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 127, caput, assim vazado: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

7 A abordagem sobre o constitucionalismo ora se deu em passant. Afinal, só esse assunto ensejaria trabalho específico, dadas sua importância e complexidade. Para maior estudo, consulte-se DORNELES, 2001.

8 Sobre o tema discorrer-se-á quando da abordagem acerca do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil.

9 Constituição da República Federativa do Brasil: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político; Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."; "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." "Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".

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10 Evidentemente, a referência é à igualdade material ou substancial, não à meramente formal (a que ignora as desigualdades sociais que cada pessoa, grupo ou categoria carrega consigo pela vida). Afinal de contas, o igualar coisas desiguais é que enseja desigualdade. Por isso, o princípio deve ser compreendido não a partir da igualdade (aritmética), mas da desigualdade (substancial, real) que impera em nossa sociedade. Vai daí, que a regra enuncia: não desigualar os iguais nem igualar os desiguais (na medida de suas desigualdades). Com isso, equilibra-se no campo do direito aplicado a equação socialmente deformada, à medida que se priorize uma justiça distributiva em vez da simplista concepção comutativa. Aliás, essa maneira de conceber a máxima da isonomia já fora marca registrada do notável Ruy Barbosa, em sua exponencial "Oração aos moços".

11 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade... "

12 Termo que, segundo Gustavo Tepedino (O Código Civil, os chamados microssistemas.., p.5), fora "síntese feliz", de autoria do festejado Norberto Bobbio (Dalla struttura alla funzione).

13 Sobre essa figura, de conformação terminológica intrigante, serão dispensadas considerações no momento oportuno, quando se analisar o fenômeno da personificação jurídica.

14 Aliás, essa regra, que lança mão de conceitos genéricos ou indeterminados, possibilita a adequação do instituto desconsiderativo no tempo e no espaço, a partir de genuína função criadora do operador do Direito. Como tem tudo a ver com o tema central deste trabalho, será amplamente analisada, logo mais, no momento adequado.

15 Obviamente, neste trabalho, não há como abrir espaço para uma análise sobre as tantas inovações do Projeto. A título de exemplo, confira-se: Aguiar Júnior (1995); Moreira Alves (2001); Rezende (2001); Reale (2001); Reale (1999, p. 12-18 e 1-95); Fachin (2001); Villela (2001); Comparato (2001); Rosas (2001); Alves (2001); Gomes (1999).

16 "Este Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação", ou seja, em janeiro de 2003.

17 Os arts. 421 e 422 são exemplo disso, os quais enfatizam a função social do contrato, 1238, 1239, 1240 e 1241, que, pressupondo a vocação social da propriedade, reduz prazos e exigências para o usucapião, notadamente quando no interesse social, ou seja, para proteger a família e a moradia que ela estabeleceu no respectivo prédio, etc.

18 Esse dispositivo encontra-se assim redigido: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa fé ou pelos bons costumes". A propósito, estudo interessante – embora sucinto – a respeito (MARINI, 2001), no qual foram relacionados muitos comportamentos configuradores desse mal.

19 Por exemplo, o art. 113 desse futuro Código Civil brasileiro prioriza a boa fé e os seus usos do lugar como paradigmas relevantes à interpretação dos negócios jurídicos em geral. Também os arts. 187 e 422, dentre outros, põem em destaque a boa fé na abordagem jurídica dos atos da vida civil.

20 Além da distinção, objetiva e clara, de prescrição e decadência, já referida, o futuro Código Civil brasileiro deu outras mostras de que um de seus intuitos foi o de se tornar efetivamente funcional, menos teórico e científico. Dentre outras coisas, pois, bem distinguiu associação de sociedade. De outro lado, não economizou no uso de cláusulas gerais (probidade, boa fé, correção), sobretudo quando impossível a determinação precisa do alcance da regra jurídica. Nessa linha, o seu art. 575, parágrafo único, cogita de "aluguel arbitrado... manifestamente excessivo". Ainda se valendo da proposital indeterminação do preceito, estabeleceu, em seu art. 720 e parágrafo único, com "razoabilidade e valor devido", quanto aos contratos de agência, nos casos em que tenha havido alto investimento no negócio, exigido por este, mas, não obstante, o outro contratante, aproveitando-se de ser indeterminado o prazo do ajuste, decide interrompê-lo abruptamente, de modo oneroso àquele que efetuara o investimento. Por fim, no § 1º, art. 1240, o novo Diploma Civil, para efeitos de usucapião de terreno urbano, reforça a proteção das uniões estáveis, conferindo aptidão para a dita aquisição, seja homem, seja mulher, seja para ambos, independentemente de serem ou não casados entre si.

21 A propósito das infindáveis e insistentes críticas ao Projeto, Miguel Reale desabafou: "Infelizmente, no Brasil, há juristas que examinam os projetos de lei como advogados que contestam uma petição inicial, isto é, com espírito polêmico, quando não agressivo, esquecendo de que todos nós estamos empenhados em uma obra transpessoal, de interesse fundamental para a comunidade". Ibid, p. 29

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Sobre o autor
José Camacho Santos

mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá (PR), professor da UEM e da Escola da Magistratura do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, José Camacho. O novo Código Civil brasileiro em suas coordenadas axiológicas:: do liberalismo à socialidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3344. Acesso em: 19 abr. 2024.

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