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Direito fundamental à razoável duração do processo

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01/10/2002 às 00:00
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A reforma dita "do Poder Judiciário", que em passos de cágado tramita desde 1996 no Congresso Nacional, finalmente teve aprovação em 1º turno na Câmara dos Deputados.

Entre as pretendidas inovações, acrescentar-se-á no longo dispositivo do art. 5º uma novo direito, com a seguinte redação:

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.


Do dispositivo

Do novo texto, extraem-se diversas normas, todas a garantir valor decerto relevante - o da razoável duração do processo de decisão nas instâncias judicial e administrativa.

Inerente ao Estado Democrático de Direito, como instituído no art. 1º, caput, da Lei Maior, tal valor já era tutelado em diversos outros dispositivos:

- no art. 5º, LIV, ao estabelecer a garantia do devido processo legal;

- no art. 5º, XXXIV, "a", inerente ao direito de petição aos Poderes Públicos (o que adianta o direito de requerer sem que se receba resposta ao requerido?);(1)

- no art. 5º, XXXV, do qual se extrai o denominado direito de acesso à jurisdição;

- no art. 37, caput, por inclusão da Emenda Constitucional no 19/98, da eficiência como princípio geral da Administração Pública, em todos os Poderes e esferas governamentais;

- no art. 70, quanto à fiscalização dos Poderes Públicos, ao se referir ao princípio da economicidade, ou seja, da relação custo-benefício, como objeto do controle.

Como estuário das preocupações da sociedade quanto ao funcionamento dos órgãos públicos e, principalmente, do Poder Judiciário, este posto como derradeiro abrigo daqueles que procuram a proteção contra as arbitrariedades dos poderes públicos e econômicos, a Emenda Constitucional novamente disporá sobre o tema da celeridade processual ao elevar ao patamar constitucional - assim imune às leis inferiores - o dever de magistrados e membros do Ministério Público em despachar nos prazos legais os feitos que a eles são submetidos (arts. 98, § 3º, e 129, § 5º) e ao se referir (art. 56) que comissão especial do Congresso Nacional elaborará, em cento e oitenta dias, projetos de alterações legislativas "objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional".

Não se diga que, nesta perspectiva, se mostre incongruente o disposto no art. 102, § 3º, ao restringir o prazo de eficácia das cautelares concedidas em ações de inconstitucionalidade.

O caráter político-legislativo(2) dessa ação, de evidentes efeitos erga omnes, recomenda a limitação temporal, mostrando-se coerente com os valores constitucionais a condicionante imposta ao Supremo Tribunal Federal e aos tribunais de Justiça - estes nas representações de inconstitucionalidade a que se refere o disposto no art. 125, § 2º - vez que nem mesmo o Congresso Nacional é imune a tais restrições temporais no processo legislativo (ver, entre outros, o art. 62, parágrafo único; 63, § 2º, 66, § 1º ).(3)

O cidadão(4) tem direito à decisão do Poder Público, em qualquer nível hierárquico ou esfera governamental, pois o Estado democrático está a serviço do indivíduo, não este a serviço daquele.

Serviços públicos, ainda que executados por delegação a pessoas privadas, destinam-se ao cidadão, pois, se assim não fosse, não seriam públicos...

Decisão tardia é ineficiente, desserve aos seus propósitos.

A Emenda Constitucional no 19/98 destacou do princípio da legalidade(5) o princípio da eficiência, inscrevendo-o autonomamente no caput do art. 37 como diretriz fundamental da Administração Pública.

Os processualistas extraem do disposto no art. 5º, XXXV, não só o direito de amplo acesso à jurisdição como deste o conseqüente direito à pronta resposta do juiz às demandas; até mesmo, neste dispositivo, se incluiu, na Carta de 1988, a proteção judicial contra as ameaças ao direito.

Ressalte-se: o dispositivo declarou o direito já existente à razoável duração do processo e à celeridade de sua tramitação. Não se trata de "direito novo", mas de direito já reconhecido pela Constituição e pelas leis e agora declarado, como reforço normativo, em texto específico, assim a afastar os entraves hoje existentes à sua concretização.

Os entraves decorrem do traço cultural de nossa formação histórica pois, diferentemente da colonização que se fez em outras países, a nossa decorreu da ação governamental, em que o gênio português, no esforço de explorar as terras que originariamente lhe foram reservadas pelo Tratado de Tordesilhas, criou a sociedade dentro de seus desígnios, tanto quanto possível.

Aqui, o Poder governamental construiu a sociedade, não esta aquele.

Daí o empedernido ranço cultural de se vislumbrar nos Poderes Públicos a fonte das benesses e privilégios de dominação; em contrapartida, vem a postura de se tratar o cidadão com desprezo ou enfado, como se fosse ele um trambolho a impedir o livre desenvolvimento da soberana ação governamental.(6)

Mas o ranço cultural é vencido, gradualmente, pela construção do Estado Democrático de Direito, a pressupor este que o poder está a serviço da sociedade.

Relevante, ao menos, o aspecto pedagógico do novo dispositivo: o cidadão tem direito ao processo administrativo e judicial, e, mais, direito à sua razoável duração e conseqüente celeridade de tramitação.

Exame dos elementos contidos no dispositivo

A proteção prometida pelo texto em comento dirige-se "a todos", expressão que se encontra, também - em pesquisa restrita ao art. 5º - no seu caput, e nos incisos XIV, XVI, XXXIII e XXXIV.

A menção a todos, dada pelos dispositivos antes referidos, evidentemente não pode ser interpretada no sentido de exclusão da proteção prometida nas situações descritas nos demais dispositivos, não só porque o próprio caput do art. 5º assegura o tratamento igualitário àqueles que se encontram em situação idêntica, como porque, nas situações descritas em cada dispositivo, todos que se encontrem na incidência da norma merecem igual proteção da Constituição, das leis, do juiz e do administrador, estes nos casos concretos que lhes são submetidos para decisão.

O direito à celeridade da decisão nas instâncias judicial e administrativa alcança as pessoas físicas ou naturais, as pessoas jurídicas ou morais (e não só porque em seu substrato estão pessoas físicas), mas também as fundações (que, conceitualmente conjunto personalizado de bens, destinam-se à tutela de interesses que vão se definir na esfera jurídica das pessoas), os entes despersonalizados (que não são pessoas jurídicas, mas ganham da lei legitimação para atuar em sede processual) como o espólio, a herança jacente, o condomínio de edifícios, o consórcio para a aquisição de bens duráveis e tantos outros que são criados não só pela lei como pela prática pretoriana.(7)

As expressões "razoável duração do processo" e "celeridade na sua tramitação" caracterizam como processual o direito fundamental ora declarado.

Direito processual que é, tem caráter instrumental à realização do direito material, pois este será, se for o caso, reconhecido e implementado pela decisão que é o escopo do processo.

Poder-se-ia dizer que a norma declara o direito fundamental de todos à eficiente realização do processo pelo qual se leva o pedido à cognição judicial ou administrativa: é, assim, direito ao processo eficiente, muito além que o simples direito ao processo.

Ao se referir às instâncias judicial e administrativa, o texto indica que o processo é o atinente ao modo de decisão que concretiza e individualiza, no caso concreto, as normas genéricas e abstratas.

Se de um lado, a norma declara o direito fundamental, de outro, pelo princípio da lateridade do Direito(8), declara, mais uma vez, o correspectivo dever do juiz e do administrador.

Tal dever do agente público, embora sem expressa previsão constitucional, decorre dos princípios fundamentais, declarados no Título I, que instituem o Estado Democrático de Direito, pois, como disse Lincoln no célebre discurso de Gettysburg, "democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo".

Instrumento pelo qual se viabiliza a decisão estatal, o processo democrático não se admite mais como diretivo, a impor a decisão, mas deve ser participativo, a integrar na decisão a manifestação dos interessados, que aí, não só têm direito como também o dever jurídico que se qualifica como ônus processual.(9)

Como reação a um regime autoritário e fechado, a Constituição de 1988 é nitidamente liberal, dirigindo-se ao indivíduo, colocando o aparelhamento estatal, em todos os níveis e poderes, a serviço do homem, exigindo que o poder estatal seja exercido de forma permeável às aspirações de todos e não como se fosse um exercício da Cabala a mistificar a dominação sobre aqueles menos aquinhoados ou menos iniciados nos seus ritos.

Deve o Estado Democrático de Direito, na busca da satisfação dos interesses públicos e individuais, atuar de forma transparente, aproximando-se das pessoas, fundamentando suas decisões, integrando-se nos anseios sociais.

A Constituição quer que o processo de decisão estatal atenda, em qualquer Poder ou nível da Administração, aos princípios tendentes a inibir o hermetismo do Estado a que estamos acostumado: iniciativa legislativa popular (arts. 14 II, 29 XI, 61 § 2º); publicidade (arts. 5º, incisos XXXIII e XXXIV, 37, 93 IX); fundamentação razoável (arts. 37 caput - "moralidade"; 93 IX; 85 V e 37 § 4º; 5º, inciso LIV "devido processo legal"); legalidade (art. 5º, inciso II e 37) mesmo porque "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ... construir uma sociedade livre, justa e solidária ... erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais ... promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º).

O processo é a relação social, juridicamente prevista, em que a atuação do Estado objetiva a decisão e a execução desta decisão - todo processo, neste sentido, indica o caminhar, o desenvolver, o conjunto de atividades em busca de uma decisão: processo legislativo, judicial, administrativo etc.

Como especificações dirigidas à decisão concreta e individualizada, os processos judicial e administrativo não se distinguem ontológica e funcionalmente, o que fora observado por José Cretella Júnior, citando Aurélio Guaita: "Por definição, o processo administrativo é uma categoria especial do gênero processo, do que concluímos - não importa a disparidade existente - que as conclusões a que se chegou na teoria geral do direito processual sejam perfeitamente válidas para nós. O processo administrativo é essencialmente idêntico às demais espécies de processo".(10)

Tanto não existe diferença entre processo judicial e administrativo que Marcelo Caetano nos conta que o processo administrativo surgiu na Inglaterra em face da inexistência de poder da Administração Pública de executar suas próprias decisões, o que a levou, desde a lei de saúde pública de 1875, a buscar meios judicialiformes de atuação para vencer a resistência dos administrados que a reputavam ilegítima.(11)

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Usualmente a doutrina extrai do ensinamento de Giuseppe Chiovenda, com a sua teoria da substitutividade, a distinção entre os âmbitos judicial e administrativo: "A própria administração julga, pois, que não se age a não ser com apoio num juízo: mas julga sobre a própria atividade. Ao contrário, a jurisdição julga da atividade alheia e duma vontade de lei concernente a outrem" (12).

Em decorrência, nítida é a diferença entre as funções administrativa e jurisdicional - aquela visa atender aos fins e interesses do Estado, ao interesse público que ele tutela; e essa ao interesse da parte que considera ter razão.

Visa, sempre, o administrador a satisfação do interesse público, enquanto o juiz não tem interesse senão o de atender à parte amparada pelo Direito:

Históricamente la cualidad preponderante que aparece inseparable de la idea misma del juez, desde su primera aparición en los albores de la civilización, es la IMPARCIALID. El juez es un tercero extraño a la contienda que no comparte los intereses o las pasiones de las partes que combaten entre sí, y que desde el exterior examina el litigio con serenidad y con despego; es un tercero inter partes, o mejor aún, supra partes. Lo que lo impulsa a juzgar no es un interés personal, egoísta, que se encuentre en contraste o en connivencia o amistad con uno o con otro de los egoísmos en conflicto. El interés que lo mueve es un interés superior, de orden colectivo, el interés de que la contienda se resuelva civil y pacificamente, ne cives ad arma veniant, para mantener la paz social. Es por esto que debe ser extraño e indiferente a las solicitaciones de las partes y al objeto de la lite, nemo iudex in re propria.(13)

Ao dirimir o conflito de interesses, necessariamente o juiz inibe a esfera privada da parte, assim como a inibe a atividade administrativa, como vemos, nitidamente, no exercício do poder de polícia, mesmo porque a auto-executoriedade é uma das características dos atos da Administração Pública.

O juiz é sujeito desinteressado do processo, o administrador é sujeito interessado na satisfação do interesse público.

Enquanto a relação processual na função jurisdicional deve ser, necessariamente, composta de três vértices (juiz, demandante e demandado), a relação processual administrativa contrapõe o interesse público ao interesse privado, resumindo-se em dois pólos (administrador e administrado).

O princípio da demanda rege a função jurisdicional, enquanto o administrador atua usualmente de ofício, embora também possa ser provocado pelos interessados.

Voltemos a Calamandrei: "Relación jurídica significa relación entre personas; cuando decimos que el proceso es una relación jurídica entre el juez y las partes, reconocemos implicitamente que en el processo, que se integra con sujetos dotados de una voluntad autónoma y jurídicamente relevante, no existe solamente el juez sino tres personas, el próprio juez y además las partes, como lo expresaba la antígua doctrina: "processus est actus trium personarum". Por tanto, el juez no está nunca solo en el proceso. El proceso non es un monólogo sino un diálogo, una conversación, una cambio de proposiciones, de respuestas y de réplicas, un cruzamiento de acciones y de reacciones, de estímulos y de contraestímulos, de ataques y de contraataques(14)." (op. cit., p. 150).

Sem dialética não existe processo judicial democrático; sem a participação do administrado, não existe processo administrativo democrático - democracia e processo são, ambos, relações sociais.

Daí se entende o disposto no art. 5º, inciso LV: "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente".

Já tivemos oportunidade de escrever sobre o devido processo legal: "Eis aí a importância do princípio do devido processo legal: assegura que as relações estabelecidas pelo Estado sejam participativas e igualitárias; que o processo de tomada de decisão pelo Poder Público não seja um procedimento kafkiano, mas um meio de afirmação da própria legitimidade e de afirmação perante o indivíduo. A atividade estatal, judicial ou administrativa, está vinculada ao sistema controversial que se implanta pela adoção constitucional do due process of Law: qualquer restrição à liberdade e aos bens só pode ser feita atendendo a alguns procedimentos cujo conjunto é que se denomina o "devido processo de lei"(15).

O proposto texto constitucional refere-se aos âmbitos judicial e administrativo.

Instância judicial é a instaurada em sede do Poder Judiciário, a compreender que o decisor seja juiz ou tribunal.

Abrange, assim, não só a função jurisdicional (ou contenciosa, cujo objeto seja dirimir conflitos de interesses) como a função administrativa da Justiça (aí não só os processos administrativos - como, por exemplo, os disciplinares em face de servidor, ou de licitação para a escolha de contratante visando o fornecimento de bens e serviços) e também a função dita "jurisdição voluntária" (ou jurisdição graciosa, como diziam metaforicamente os antigos...), de caráter eminentemente administrativo, mesmo porque nela não há a propalada definitividade das decisões que caracterizaria a jurisdição contenciosa (Código de Processo Civil, art. 1111).

Na instância judicial também se inclui o processo eleitoral, não só os tipicamente contenciosos (crimes eleitorais e impugnação de mandato eletivo) como os procedimentos de preparação das eleições (habilitação de eleitores, registro de candidatos, controle da propaganda eleitoral) e de apuração e totalização dos votos para ensejar a diplomação dos eleitos.(17)

A instância administrativa abrange os órgãos governamentais das esferas federativas referidas no art. 37 da Constituição, em qualquer dos Poderes, desde que se trate, como antes mencionado, de processo de decisão que concretize e individualize norma genérica e abstrata.(18)

Mas a instância administrativa hoje não mais está hoje contida estritamente no âmbito exclusivo de órgãos do Estado, assim cumprindo o recente e ainda extraordinário processo de desenvolvimento político que descentraliza o poder público, a fazer desmoronar a separação entre a sociedade e o Estado, dogma que era tão caro ao liberalismo clássico.

A própria Constituição expressamente excluiu da cognição judicial, pelo prazo e modo referidos no art. 217, § § 1º e 2º, a denominada "justiça desportiva", de nítido caráter administrativo, embora exercida por órgãos não-estatais. Evidentemente, ao menos em homenagem à interpretação literal ou gramatical, submete-se a justiça desportiva à incidência da disposição ora em comento.

Também a Constituição, no seu art. 17, § 1º, ao assegurar ao partido político a autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento - e, em conseqüência, vedando ao legislador interferir no seu substrato - acabou criando nessa pessoa jurídica de direito privado (art. 17, § 2º) uma instância administrativa ao menos no que se refere ao registro de candidatos, porque estes somente podem ser oriundos da entidade partidária para ganhar direito de competir nas eleições.

Ao partido político, a despeito de sua natureza não-estatal, incide o novo comando constitucional, mesmo porque todo o processo eleitoral vincula-se a prazos exíguos e peremptórios.

Idem quanto às universidades e demais centros de ensino que, embora privados, estão inseridos no dever declarado no art. 209, I, da Constituição, mesmo porque realizam processo educacional que se individualiza e concretiza nas situações previstas pela ordem jurídica. O caráter privado da instituição de ensino não exclui a proteção constitucional ao aluno que, aliás, também pode se socorrer das normas protetivas do consumidor.

Como outros exemplos dessa "desestatização da função administrativa" pode-se anotar o disposto nos arts. 226, § 2º (quanto ao casamento religioso com efeitos civis) e 227, §1º (quanto à assistência à criança e ao adolescente).(19)


Provimento cautelar como instrumento de celeridade do processo

As referências postas pelo novo dispositivo quanto à razoável duração do processo e à celeridade de sua tramitação conduzem à aplicação de medidas cautelares como meio de assegurar, no âmbito processual, a celeridade da tramitação e, no âmbito de direito material, a antecipação da tutela pretendida.

O doce Rabi prometera: "bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados" (Mateus, cap. 5, v. 6).

Se a Justiça é divina, o Direito é humano e tal caracter predomina quando se realiza através do Processo, na complexa e inescrutável relação entre pessoas que ali depositam a gama inumerável dos mais contraditórios interesses.

Justiça tardia é rematada injustiça, bradava Rui Barbosa no início deste século XX, o mesmo jurista que, aliado a Pedro Lessa, fundou a denominada "Doutrina Brasileira do Habeas Corpus", meio sumário que utilizava como alternativa então aceita ao excessivo apego às formas procedimentais que impregnava a prática forense.

O provimento cautelar é, assim, em sentido amplo, a tentativa do juiz de vencer a marcha inexorável da dimensão tempo, até que se chegue à decisão final do processo.

O tempo é o inimigo contra o qual o juiz luta sem tréguas - dizia Eduardo Couture - impondo-lhe três exigências inerentes à própria vida: ceder, retroceder e acelerar o seu curso.

Como lutar processualmente contra o tempo?

Piero Calamandrei indicou as modalidades cautelares e sua classificação aqui é lembrada porque ainda intangível às críticas:

- as instrutórias, em que se antecipa a produção de provas, como no procedimento da vistoria ad perpetuam rei memoriam ou a oitiva de pessoa que, provavelmente, não poderá aguardar a audiência de instrução;

- as tendentes a garantir a efetividade do próprio processo, como o arresto e o seqüestro;

- as cauções, como aquela do art. 835 do Código de Processo Civil, aliás incompatível com o direito de acesso à jurisdição nesta época globalizada, ou como as que servem de contra-cautela, a neutralizar o risco que a efetivação de outra cautelar possa trazer ao requerido, v. g., o depósito prévio na ação rescisória; e, finalmente,

- as medidas provisionais, ou antecipatórias da tutela definitiva em que se adianta o provimento judicial que se espera ao final da causa, como, por exemplo, a liminar initio litis na ação possessória e no mandado de segurança, as antecipações referidas nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil, e a prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal, prevista no art. 312 da lei processual penal.

Abrangente, assim, o campo de atuação do magistrado e do administrador em sede cautelar.

Antecipa-se a tutela quanto ao processo no julgamento da lide na hipótese do art. 330 da lei processual, no provimento relatorial a antever o julgamento pelo colegiado, no art. 557, ou na prévia oitiva de pessoa pela Autoridade administrativa para instruir processo disciplinar que ainda não foi aberto.

Antecipa-se a tutela no plano do direito material, como está nos arts. 273 e 461 da lei processual, provendo o juiz, total ou parcialmente, o que, pela urgência, não poderá aguardar até o dia do trânsito em julgado da decisão, ou quando a Autoridade Administrativa suspende preventivamente o servidor contra o qual pesam acusações que ensejariam a demissão do serviço público.

A natureza jurídica do provimento cautelar é realçada por José Carlos Barbosa Moreira:

A necessidade do processo cautelar, que lhe justifica a existência, resulta da possibilidade de ocorrerem situações em que a ordem jurídica se vê posta em perigo iminente, de tal sorte que o emprego de outras formas de atividade jurisdicional provavelmente não se mostraria eficaz, seja para impedir a consumação da ofensa, seja mesmo para repará-la de modo satisfatório.

Se a cautelar consiste em adiantamento da decisão ou de fase do processo, desde logo se verifica que não é ela exclusiva da função jurisdicional, como se vê nos seguintes exemplos:

- no processo legislativo, as medidas provisórias, a antecipar a lei que será debatida e votada pelo Congresso Nacional;

- nas ações objetivas de controle de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade), de nítido caráter legislativo pelos efeitos erga omnes, a medida cautelar deferida pela Corte Constitucional;

- no processamento dos crimes de responsabilidade, a autorização prevista no art. 51, I, da Constituição, implica no afastamento cautelar do ocupante do cargo de Presidente da República;

- no âmbito administrativo, entre as muitas hipóteses dadas pelas leis, consistem em medidas cautelares a suspensão preventiva do servidor público em processo disciplinar, a sustação da execução do contrato administrativo pelo poder adjudicante etc.

Enquanto a fonte do poder cautelar do administrador está ordinariamente nas leis, a fonte do poder cautelar do juiz está na Constituição, não podendo, assim, ser obviado nem limitado por norma infraconstitucional para que não se vulnerem os princípios constitucionais da separação dos Poderes (arts. 2o e 60,. § 4º, III, este posto como cláusula de perpetuação do poder constituinte originário) ou o direito de acesso à jurisdição (art. 5o, XXXV, aqui especificando o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, expresso no art. 1o, III, da Constituição).

A delibação cautelar, em qualquer de suas modalidades, tem a urgência como causa e exige a sumária cognição do tema posto como fundo da demanda. E, quanto a este requisito, legisladores, doutrinadores e juízes inocuamente se deliciam, quando não infernizam os demais, no intenso labor de nominá-lo através de expressões que nada mais são do que conceitos indeterminados, apuráveis a cada momento no caso concreto: fumus boni iuris, verossimilhança, probabilidade, plausibilidade.

Todos exigem a projeção do espírito do julgador na percepção da realidade fática, do trecho da História que se apresenta como suficiente para fazer incidir a norma jurídica.

A Constituição de 1988, entre os princípios garantidores do "devido processo legal", alçou ao patamar supremo a norma que então estava restrita ao nível do Código de Processo Civil, extraída de seu art. 332.

Do disposto no art. 5o, LVI, da Carta Magna, extrai-se, entre outras normas, aquela que municia o decisor: "são admissíveis no processo todas as provas lícitas". Derrogaram-se, desde 5 de outubro de 1988, os textos legais condicionantes ou inibidores da prova, como, tomando por exemplo o Código de Processo Civil, o que está no art. 401, e até mesmo, os efeitos legais da prova, como a revelia do art. 319, que chegou até mesmo a ser interpretada como irracional meio de restrição do poder/dever judicial de convicção sobre a causa.

Sempre motivadamente, o juiz e o administrador público estão hoje munidos de amplos poderes para a sempre difícil tarefa de apreensão histórica dos fatos que interessam à decisão.

O Estado Democrático de Direito reclama a pronta resposta dos órgãos estatais, conduzindo, cada vez mais, a atividade cautelar, posta no centro do turbilhão de conflitos que exigem solução urgente, como no conhecido caso de autorização ao Município do Rio de Janeiro para implodir edifício em ruína, ou para impor a transfusão de sangue a paciente em periclitação de vida, embora os seus parentes, por convicção religiosa, abominem tal prática.

Mas não bastam os requisitos da plausibilidade do alegado direito e da urgência do provimento reclamado para a concessão da cautelar.

Outro requisito exsurge naturalmente dos valores jurídicos postos em conflito, a mitigar ou mesmo anular as proibições legais da irreversibilidade do provimento e da satisfatividade que, aliás, inerente a qualquer provimento judicial ou administrativo, aí deve ser considerada sempre provisória, mesmo porque do disposto no art. 811 da lei processual se extrai a norma da responsabilidade objetiva do requerente quanto aos danos decorrentes do cumprimento da cautelar, especificamente para o administrador público, a responsabilidade objetiva do Estado a que se refere o art. 37, § 6º, da Constituição.

O requisito da adequada proporcionalidade entre os efeitos do provimento com a tutela do direito em periclitação ainda não figura expressamente no Código Processual, mas está em leis específicas sobre a cautelar contra a Fazenda Pública.

Esta aferição da proporcionalidade tem por conteúdo a valoração dos bens postos em conflito, transcendendo, aí, ao caráter econômico e chegando aos valores morais que, em determinado momento histórico, a sociedade considera essenciais para a sua existência e desenvolvimento.

Ao sopesar os valores em conflito, o decisor cruza, finalmente, a ponte de ouro entre o Direito e a Ética, pois, esta é o fundamento daquele.

"O poder de acautelar é imanente ao julgar", proclamou o Supremo Tribunal Federal em conhecidas decisões (ADCM no 4, julgada em fevereiro de 1998; Representação no 933, julgada em março de 1975).

Na Representação no 733/RJ, consta do voto do Ministro José Geraldo Rodrigues de Alckmim: "Há um poder geral de acautelamento inerente ao próprio exercício da função jurisdicional e nenhum juiz deve proferir uma sentença ou ser compelido a fazê-lo ciente de que esta não deva produzir seus efeitos, ou dificilmente venha a produzi-los. Daí esse poder acautelador e geral, que é inerente ao próprio exercício da função, um dos tipos fundamentais de tutela jurídica, como a execução, como o processo de conhecimento."

Adotando o regime presidencialista de governo - caracterizado pela nítida separação da funções estatais - e garantindo o livre acesso à jurisdição, a Constituição de 1988 impõe aos tribunais o poder de acautelar, e este poder não pode ser limitado ou inibido pelas leis, que somente servem aos magistrados como indicador não exaustivo de seu relevante papel de árbitros dos conflitos individuais e sociais.

Nem há de se falar em descabimento da cautelar, em qualquer das modalidades em que se apresente, pelo alegado caráter satisfativo.

Como destacou o venerando mestre Galeno Lacerda, o provimento cautelar é sempre satisfativo, mas tal satisfatividade é provisória, embora de eficácia imediata, carente da ratificação que decorrerá como efeito do trânsito em julgado da decisão definitiva. Tanto é assim que a lei processual institui a responsabilidade objetiva do requerente, com liquidação da indenização respectiva nos próprios autos da ação cautelar (art. 811) e até mesmo admite expressamente a demolição de prédio para resguardar relevantes interesses sociais (art. 888, VIII).

A cognição cautelar, embora de natureza sumária, e, assim, sem se aprofundar nas questões atinentes ao mérito - a ser apreciado no momento processual adequado -, não afasta, e antes exige, a apreciação não exauriente das referidas questões para que não se inviabilize nem demore a decisão.

Basta se ver que a ordem jurídica infraconstitucional vincula estreitamente a cognição cautelar com a cognição definitiva mesmo porque inútil seria a concessão de cautelar a proteger situação que se mostra inviável na tutela definitiva.

A vinculação se faz através de expressões normativas de conteúdo aberto, a permitir a concretização nos casos em julgamento, através de conceitos jurídicos indeterminados, como se vê, por exemplo, no Código de Processo Civil no art. 588 (fundamento relevante, expressão também encontrada no art. 7º da lei regente do processo do mandado de segurança), no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, no art. 34, V (compete ao relator submeter a julgamento as medidas cautelares destinadas a garantir a eficácia de ulterior decisão da causa) e até mesmo no velho Código de Processo Penal que, no art. 312, somente admite o decreto da prisão provisória se presentes suficientes elementos a indicar a autoria e a materialidade.

Tal aspecto, aliás, foi destacado pela Suprema Corte, em julgamento plenário no dia 29 de maio de 1996, no Agravo Regimental na Suspensão de Segurança no 846-3 (DJU de 8-11-96), relator o Ministro Sepúlveda Pertence, proclamando a maioria a impossibilidade da, até então, vislumbrada cisão na apreciação dos pressupostos que autorizam a concessão da cautelar e as questões atinentes ao mérito da causa principal.

O Excelso Pretório reiterou o mesmo entendimento no Agravo Regimental à Suspensão de Segurança no 1.149-9 (Sepúlveda, DJU de 9-5-97).

O tema já fora vislumbrado pela doutrina, como se vê em Cândido Rangel Dinamarco:

"Falando sobre o fumus boni iuris e o periculum in mora, a doutrina não é muito precisa na colocação científica dos dois requisitos. Eles são requisitos para o julgamento daquilo que se poderia chamar mérito do processo cautelar ou são condições de ação cautelar? Chiovenda, concretista, colocava como condições da ação. Liebman coloca como mérito e nós ficamos nessa dúvida: os que colocam os requisitos como condição da ação cautelar não dizem qual é o requisito para que ela seja concedida, qual seria o mérito da ação cautelar. E os que dizem que são requisitos do mérito, não dizem quais são as condições da ação cautelar.

Meditando sobre isso, numa aula do curso de mestrado em São Paulo, dois anos atrás, eu sugeri que talvez (embora eu me coloque numa posição abstratista) a ação cautelar seja uma ação concreta, onde a existência do direito à cautela se confunde com as condições da ação cautelar. É também um tema a ser meditado, uma opinião que eu não apresento definitivamente, mas sobre a qual medito na busca de uma solução definitiva."(21)

O denominado periculum in mora decorreria do fundado temor de ocorrência de dano jurídico iminente enquanto se aguarda a tutela definitiva, ou, no dizer de Carlos Calvosa: "a ocorrência efetiva de risco de perecimento, destruição, desvio, deterioração ou qualquer tipo de alteração no estado das pessoas, bens ou provas necessários para a perfeita e eficiente atuação do provimento final de mérito"; o fumus boni iuris, segundo Willard de Castro Villar do "juízo de probabilidade e verossimilhança do direito cautelar a ser acertado".

Ao lado dos tradicionais requisitos ou condições do provimento cautelar - a plausibilidade da pretensão e a urgência do provimento judicial - já agora a legislação e a doutrina acrescentam a necessária adequação ou proporção razoável entre o provimento cautelar e a tutela do direito em periclitação, o que foi chamado por Roy Reis Fried de periculum in mora inverso e que Athos Gusmão Carneiro lembrou: "Vale colacionar, no ensejo, a norma do art. 401, do CPC de Portugal, em que o juiz é aconselhado a, ocorrentes a plausibilidade do bom direito e o perigo na demora, conceder a liminar, "salvo se o prejuízo resultante da providência exceder o dano que com ela quer se evitar". Em suma, por vezes a concessão da liminar poderá ser mais danosa ao réu, do que a não concessão ao autor. Portanto, tudo aconselha ao magistrado perquirir prudentemente sobre o fumus boni iuris, sobre o periculum in mora e também sobre a proporcionalidade entre o dano invocado pelo impetrante e o dano que poderá sofrer o impetrado (ou, de modo geral, o réu em ações cautelares)".

Se a solução final do processo exige lapso temporal que se mostra excessivo e vulnerador, de um lado, do interesse público gerenciado pelo administrador, ou da dignidade da Justiça, de outro, dos direitos do administrado ou da parte em processo judicial, deverão administrador e juiz, nos limites de sua competência funcional, prover medidas que se mostrem adequadas.

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Sobre o autor
Nagib Slaibi Filho

Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, professor da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), livre-docente em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SLAIBI FILHO, Nagib. Direito fundamental à razoável duração do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3348. Acesso em: 28 mar. 2024.

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