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Direito fundamental à razoável duração do processo

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01/10/2002 às 00:00
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Procedimento

Se o processo é relação a vincular os interessados, o procedimento (ou o rito, ou o trâmite específico) é o modo pelo qual se concatenam os atos jurídico-processuais nele realizados, de acordo com as diversas fases impostas pela ordem jurídica (por exemplo, o processo de suspensão da carteira de habilitação do motorista que ultrapassou a pontuação máxima, ou o processo de desapropriação) ou, até mesmo, o modo de realização de ato processual específico (por exemplo, o rito da audiência, as fases da sentença)

Ontologicamente o processo é o caminhar, o desenvolver da atividade de decisão ou de execução.

Enquanto o processo de execução dirige-se à transformação da realidade fática no cumprimento do que se decidiu, o processo de decisão, desde o início e até o seu termo, apresenta fases que nem sempre se mostram sucessivas:

- a fase inicial, com a sua deflagração e até a impugnação dos demandados, aí se delimitando o campo cognitivo da decisão;

- a fase de saneamento ou de correção de eventuais vícios que inibam ou impeçam a decisão. A atividade saneadora, por versar sobre tema de direito indisponível, se exerce durante toda a duração do processo, mesmo porque pode este se frustrar se o vício for insanável;

- a fase instrutória, com a coleta de elementos que comprovem a situação descrita no suporte fático das normas cuja incidência se propõe no processo. A atividade probatória, pelo princípio constitucional decorrente do disposto no art. 5º, LVI, da Constituição, também não se submete à disponibilidade do direito dos interessados, embora estes tenham os ônus de indicar ou produzir as provas nos termos das normas que regulam o procedimento;

- a fase decisória, que compreende as manifestações dos interessados e a decisão que se buscou pelo processo.

O mandamento constitucional da celeridade na tramitação do processo e de sua razoável duração vai incidir quando se constata, em determinada relação processual, que a realização de seus atos se mostra desarrazoado, conduzindo à ultrapassagem das fases e dos atos que não se mostram essenciais para a descoberta da verdade(22) e para a eficácia da decisão.

Evidentemente, juiz e administrador deverão sempre motivar suficientemente as suas decisões, ainda quando vertam sobre temas processuais.

Assim, se a diligência probatória se mostra inútil ou procrastinatória, deve a mesma ser abandonada, como, aliás, já está no art. 130 do Código de Processo Civil.

Se o recurso é manifestamente improcedente, desnecessário que o relator o submeta ao colegiado (art. 557 do Código de Processo Civil).

Se o candidato à pensão previdenciária ou à carteira de habilitação de motorista já preencheu todos os requisitos, não há porque não se proceder ao deferimento e à execução dos atos necessários à implementação do direito.

Se a autoridade judiciária ou administrativa designou audiência ou exame pericial para tempo longínquo, sem que a tal fosse impelida por justificável (e declarado) império das circunstâncias, medidas deverão ser adotadas pela mesma ou por autoridade superior para que os entraves sem vencidos, porque é direito do cidadão a celeridade na tramitação do processo.

Enfim, o complexo universo de casos ocorrentes ou a ocorrer somente poderá ser confrontado com a incidência da norma protetiva em cada caso concreto, mediante decisão - ainda de ofício, ressalte-se - devidamente motivada, pois tal decisão desafiará os recursos pertinentes em face do princípio inscrito no art. 5º, LV, que, aliás, não protege só o demandado, mas a todos os interessados.


Razoabilidade

Não é por ser discricionária que se pode admitir que a atividade estatal seja desarrazoada, arbitrária ou caprichosa e que os meios escolhidos por ela não tenham um real e substancial nexo com o objetivo que se tenciona atingir.

Através da fundamentação ou motivo do ato administrativo ou judicial, poderá haver o controle interno e externo da razoabilidade do ato, isto é, se o motivo apresentado é razoável, conveniente e legítimo.

Se herdamos o judicial control americano com a República, por obra e graça do esforço de Rui e dos positivistas, infelizmente nossos juristas continuaram com a forte tendência privatista que lhes inculcou o sistema românico-germânico, agravado pelo autoritarismo positivista e pelo dogmatismo católico que inspiram a nossa cultura.

Fomos e somos mais positivistas que os patrícios de Augusto Comte, pois embora adotem o sistema de jurisdição dual, afastando do Poder Judiciário o controle dos atos estatais e o submetendo ao Conselho de Estado, nem em França existe a ampla atuação que se vê em nosso país do chamado "poder discricionário".

É o que Rivero nos noticia:

O controle do juiz, sendo um controle da legalidade, pára onde ela pára; não se estende, pois, ao poder discricionário, que depende da apreciação de oportunidade, estranha à missão do juiz. Todavia, convém não esquecer que o juiz cria regras de direito: portanto, pode, onde a lei escrita nada impunha, subtrair ao poder discricionário certos elementos do acto, submetendo-os a uma regra jurisprudencial. Na prática, o Conselho de Estado, por esta via, reduziu consideravelmente a zona do poder discricionário. É o seu verdadeiro regulador, consoante estenda mais ou menos o seu controle sobre uma outra categoria de atos. Veremos que chega mesmo a exercer, em certos domínios, sob a aparência de um controle da legalidade, um verdadeiro controle de oportunidade, esbatendo assim, na prática, o traçado que separa as duas noções.

Perquire-se se o ato discricionário é razoável pela confrontação dos elementos de motivo e objeto com a situação concreta para o qual se dirige. No exercício, por exemplo, do poder disciplinar, a discricionariedade do administrador reside na apreciação dos elementos fáticos probatórios e na aplicação da pena. Tanto o julgamento das provas como a aplicação da pena exigem uma certa discricionariedade que não se confundem, em absoluto, com o arbítrio, pois as soluções apresentadas devem guardar relação com o contexto fático, o interesse da Administração e a pertinência objetiva e subjetiva com a razoabilidade.

A lógica do Direito é a lógica do razoável (na expressão de Recasens Siches) - não há legalidade sem razoabilidade.

Enquanto os tribunais americanos empreenderam com mais desenvoltura a apreciação dos atos estatais, desde Marshall, em 1803, construindo a teoria do controle da constitucionalidade das leis em face da constituição rígida, até a época moderna, com a apreciação da discricionariedade administrativa, nossos tribunais só têm um século de atividade jurisdicional de apreciação dos atos administrativos, o que começaram a fazer com a República - no entanto, na interpretação das normas jurídicas, não podem esquecer as palavras de Gustav Radbruch:

A interpretação jurídica não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário, um saber pensar até o fim aquilo que já começou a ser pensado por outro. Sem dúvida, ela parte da interpretação filológica da lei; mas para ir mais além dela.

Humberto Quiroga Lavié ensina:

El princípio de supremacía de la Constitución se mueve sobre un pivot fundamental: los actos constitucionales propios de cada uno de los poderes del Estado deben ser razonables, pues sí no lo son, serán inconstitucionales. Al requisito de razonabilidad se lo denomina el debido proceso legal: los actos constitucionales son razonables si son producidos respetando el debido proceso legal. (p. 447)

O mesmo mestre esclarece que o "devido processo legal" é encarado, também, sob os prismas formal ou adjetivo ("los actos constitucionales de cada poder del Estado deben formarse respetando los procedimientos establecidos por la norma constitucional que le otorga validez) e no sentido material ou substantivo (aquí la incompatibilidad entre la Constitución) (o norma superior) y las leyes (u otras normas inferiores frente a las que le otorgan validez) se produce en virtud de que las normas inferiores (leyes, decretos, sentencias o actos, según el caso) violentan el sentido común establecido en las normas superiores (el sentido de justicia que en ellas alberga): de este modo se vulnera la razonabilidad que debe ostentar toda norma para pretender vigencia. No se violan las formas procesales sino la cuestión de fondo resulta por el derecho". (p. 460)

Interpretar juridicamente é buscar a razão.

Limitação da discricionariedade pela razoabilidade

O Supremo Tribunal Federal, por sua 2a. Turma, julgando o Recurso Extraordinário nº 111.411-8, RJ, Relator o Ministro Carlos Madeira, considerou injurídico o "julgamento de consciência" por membros de Comissão de Inscrição de concurso de Magistratura, em que os candidatos eram submetidos a julgamento secreto, sem motivação, dos requisitos de irrepreensibilidade da vida pública e privada e da capacidade física e mental para o exercício das funções judiciais. Consta da decisão: "De sobra, além de inconciliável com a exigência constitucional do concurso público e com o princípio de isonomia que a inspira, a eliminação de candidatos, mediante "julgamento de consciência" de uma comissão administrativa - por mais qualificada que seja a sua composição - esvazia e frauda outra garantia básica da Constituição, qual seja, a da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário. Tanto vale proibir explicitamente a apreciação judicial de um ato administrativo, quanto discipliná-lo de tal modo que se faça impossível verificar em juízo a sua eventual nulidade. Certo, admite a Lei Orgânica da Magistratura Nacional que os candidatos à magistratura de carreira sejam "submetidos a investigação, relativa aos aspectos moral e social (...) conforme dispuser a lei" (art. 78, § 2º). É, assim, inegável - à falta de tipificação dos fatos que, apurados na investigação, devam induzir à eliminação do candidato - que esta haverá de fundar-se numa valoração negativa de predicados pessoais, necessariamente colorida de certo grau de discricionariedade. Mas, é também patente que a discricionariedade do ato não elide, em nosso sistema, o controle jurisdicional da inexistência material e da inadequação jurídica de seus motivos, assim como do eventual desvio de finalidade (Lei nº 4.717/65, art. 2o , parágrafo único, "d" e "e"). Ora, o sistema da norma regulamentar impugnada inviabiliza esse controle, na medida em que dispensa, não só a motivação conceitual do ato, mas também a própria existência de motivos - o que é intolerável - ou, pelo menos - o que é equivalente - torna inviável a revelação ao Judiciário dos motivos em que se haja fundado o ato. De qualquer sorte, portanto, impossibilitando a verificação judicial de vícios que o maculem, ainda quando de fato existentes."

A razoabilidade foi o fundamento de decisão do Tribunal Federal de Recursos, pela 1ª Turma, Remessa "ex officio" nº 110.873-DF, relator Ministro Washington Bolivar, acórdão publicado em 26 de fevereiro de 1987:

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CONCURSO PÚBLICO. DELEGADO DE POLÍCIA. PROVA DE ESFORÇO. TESTE DE COOPER. Candidato que comprovou gozar de boa saúde física e psíquica, nos termos do art. 9º, inciso V, da Lei nº 4.878, de 1965. A prova de esforço físico deve ser aferida nos termos legais e de forma razoável, pois Delegado manda e os agentes, em regra, é que executam as ordens; trabalha, usualmente, em gabinete e dificilmente, mesmo em diligência, teria ele próprio de sair correndo atrás de delinquentes. Precedentes do TFR. Remessa de ofício denegada."

Enquanto no ato vinculado a fundamentação emerge do próprio contexto fático, não dando ao administrador nenhum campo de escolha, no ato discricionário a lei concede ao mesmo administrador certas opções quanto ao objeto (fazer isso ou aquilo) ou quanto à causa (pode ser feito assim quando ocorrer isso ou aquilo).

A discricionariedade não significa, no entanto, que a escolha seja desarrazoada, inconveniente, imprópria ou mesmo contrária à finalidade do ato.

Para controlar a atividade discricionária, seja pela própria Administração Pública, seja em Juízo, é necessário que haja fundamentação em que o administrador exponha os fundamentos de fato e de direito que o levaram à atividade administrativa.

Somente com a motivação é possível o controle da razoabilidade do ato. Sem motivação, não há discricionariedade, mas ilegítimo arbítrio.

O antes citado Humberto Quiroga Lavié anota os requisitos que têm sido colocados, em seu país, como uma série de requisitos procedimentais constitutivos do devido processo administrativo:

a) que sede administrativa la defensa en juicio debe ser contemplada com criterio amplio y no restrictivo, no ser una apariencia formal, ni caer en la mera formalidad de la citación de los litigantes;

b) que el trámite administrativo no debe transformarse en una ritualidad, rutinaria y externa (Gordillo);

c) que dicho trámite debe practicarse de ofício, aunque el interesado no lo solicite (Gordillo);

d) que el trámite debe gozar de publicidad;

e) que los litigantes deben tener oportunidad de expresar sus razones antes de la emisión del acto administrativo, y derecho a que sean considerados en forma expresa sus argumentos, a hacerse patrocinar por letrados, a ofrecer y producir prueba de descargo, a producir la prueba propuesta, a controlar la producción de la prueba hecha por la administración;

f) que la administración debe decidir expresamente las peticiones y fundas las decisiones, analizando los puntos propuestos por las partes." (op. cit., p. 452)

Jean Rivero observou que, em França, se estava o Juiz obrigado a fundamentar suas decisões, não havia a mesma obrigatoriedade para a Administração Pública, salvo expressa disposição legal nesse sentido. Contudo, após evolução do Conselho de Estado, chegou a Lei de 18 de julho de 1979 que dispõe sobre o dever de mencionar no corpo da decisão as considerações de direito e de fato que fundamentam a decisão, referindo:

"- a todas as decisões individuais desfavoráveis, tais como medidas de polícia ou restritivas das liberdades, sanções, revogação ou ab-rogação de uma decisão criadora de direito...

- às decisões individuais que importam derrogação duma regra geral.

Em todos estes casos, a não-motivação acarreta a ilegalidade da decisa~o por vício de forma. Só não é assim quando um segredo protegido pela lei (segredo de defesa nacional) proíbe a revelação dos motivos, quando a extrema urgência constitui um obstáculo, ou ainda quando se trata duma decisão implícita resultante do silêncio da Administração. Mas, nestes dois últimos casos, o autor de uma decisão deve, a requerimento do interessado, torná-lo, num prazo dum mês, ciente dos motivos". (p. 115)

Da exigência de fundamentar a decisão, o que decorre do aspecto formal do princípio do devido processo legal, é que sobrevém o aspecto material, também denominado princípio da razoabilidade - não basta uma motivação, mas deve ela ser factível, razoável, verdadeira.

Sem fundamentação explícita dos atos do Poder, não há como controlá-los.

Bem se vê, daí, que a nova redação constitucional, mais que mera declaração de direito, se mostra adequada ao patamar cultural e jurídico que atingimos neste final de século.

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Sobre o autor
Nagib Slaibi Filho

Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, professor da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), livre-docente em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SLAIBI FILHO, Nagib. Direito fundamental à razoável duração do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3348. Acesso em: 23 abr. 2024.

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