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Ética tributária e cidadania fiscal

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01/11/2002 às 00:00
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5. Cidadania Fiscal Unilateral e Bilateral.

Fulcrado na Teoria dos Direito Fundamentais, o professor Ricardo Lobo Torres da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, vem organizando valiosas publicações sobre o tema Direitos Humanos pela editora Renovar do Rio de Janeiro. Numa destas obras o mestre fluminense enfrentou com extremo rigor e sensibilidade o tema, quando escreveu o ensaio: ´Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos´. [26]

A nós interessa no ensaio supra mencionado, a idéia temática (Cidadania) para ser estudada e desdobrada no campo da tributação. Ricardo Lobo Torres bem afirma que a cidadania como constelação de direitos e deveres do homem em comunidade, só pode e dever ser compreendida em sua ontologia a partir das idéias de direitos humanos e justiça. [27]No Brasil a concepção de cidadania adquire densidade jurídica sólida no art. 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, que a fez inserir entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, abrindo novas perspectivas para análise de sua temática.

Por ser tratar de um direito fundamental, a idéia jurídica de cidadania repercute em todos os quadrantes do direito, ocasião então, que podemos falar em uma cidadania fiscal, a saber, um conjunto de deveres e direitos dos cidadãos frente ao fisco brasileiro, daí porque uma reflexão sobre a cidadania fiscal envolve item concernente a ética tributária e por conseguinte a uma cidadania constitucional.

Já afirmamos linhas atrás que a ética fiscal pública, portanto, também a ética tributária é informada por quatro valores superiores, nesta oportunidade cabe-nos destacar um deles: o valor solidariedade. A tributação só se fará ética, e portanto justa, se e quando conseguir agasalhar e efetivar concretamente no dia a dia, a proteção da vasta camada da população brasileira que não tem condições mínimas existências de arcar com ônus tributário.

A relação jurídica tributária que se estabelece entre o fisco e o cidadão deve ser contemporaneamente pensado sob dois prismas. Do ponto de vista dos efeitos desta relação jurídica [28] podemos dizer que ela é unilateral porquanto o cidadão-carente é protegido neste liame pela intributabilidade do mínimo existencial, isto é, o cidadão-carente na cidadania fiscal unilateral tem unicamente a posição de sujeito credor da solidariedade do Estado e o Estado tem unicamente a posição de sujeito devedor desta solidariedade. Já na cidadania fiscal bilateral (repercussões serão trabalhadas mais adiante) a relação jurídica entre Fisco e cidadão-contribuinte quanto aos seus efeitos é bilateral, ou seja, há obrigação para ambas as partes, deveres e direitos do Fisco, ética tributária, deveres e direitos dos cidadãos-contribuintes, ética fiscal privada.

Neste sentido o conceito de cidadania fiscal unilateral ora cunhado, quer significar o direito à intributabilidade de um mínimo existencial (bens primários) à todos aqueles cidadãos brasileiros credores desta solidariedade, até porque como bem alerta Ricardo Lobo Torres, "sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados". [29] Na dicção de John Rawls [30] poderíamos dizer que a cidadania fiscal unilateral é um direito do cidadão à intributabilidade de um mínimo essencial, ou mínimo social, índice justo de bens de primeira necessidade, abaixo do qual as pessoas simplesmente não podem participar da sociedade como cidadãos.

No Brasil como já vimos a Constituição Federal prestigia como direito fundamental a cidadania (art. 1º, inciso II), bem como, diz constituir objetivos fundamentais da república a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, e mais adiante verbera que são direitos sociais do trabalhador um salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (...). (art. 7º, inciso IV). Em nível infraconstitucional o salário mínimo foi tratado na Lei nº 185 de 14 de janeiro de 1936 e regulamentado através do Decreto-Lei nº 399 de abril de 1938. Este decreto-lei estabeleceu em seu artigo 2º que o "salário mínimo é a remuneração devida ao trabalhador adulto, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, capaz de satisfazer, em determinada época e região do país, às suas necessidades normas de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte".

O mesmo decreto-lei também dispôs sobre a chamada Cesta Básica Nacional que é composta de treze (13) itens com quantidades diversas que aqui não cabe especificar, os itens são: carne, leite, feijão, arroz, farinha, batata, legumes (tomate), pão francês, café em pó, frutas (banana), açúcar, banha/óleo e manteiga. Tais ingredientes nas quantidades sugeridas seriam suficiente para o sustento e o bem estar de um trabalhador em idade adulta, contendo quantidades balanceadas de proteínas, calorias, ferro, cálcio e fósforo. Considerando o conteúdo desta cesta básica, e ainda o ditame constitucional de que o salário mínimo deve ser suficiente para a manutenção do trabalhador e sua família (média 2 adultos e duas crianças), suprindo os gastos com alimentação, moradia, educação, saúde, higiene, transporte, vestuário, lazer e previdência social, o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócios-Econômicos) [31] estima que o salário mínimo necessário um chefe de família, em julho de 2002, para dar conta de todas estas despesas, deveria ser de R$1.154,63 (um mil, cento e cinqüenta e quatro reais e sessenta e três centavos).

Assim sendo, todo o trabalhador que ganha até R$1.154,63, tendo como base julho de 2002 à guisa de argumentação, há de ter o direito à intributabilidade de seus ganhos [32] e de todos aqueles bens primários que fazem da parte da composição do salário mínimo (leia-se: mínimo existencial), isto é, moradia, alimentação, transporte, vestuário etc, tudo isto em nome da cidadania fiscal unilateral. Só se pode falar numa existência de uma cidadania fiscal unilateral, e por outro lado numa ética tributária, ali onde houver a intributabilidade do mínimo existencial, ali onde houver a proteção do cidadão desprotegido, redundância que se impõe.

Do ponto de vista de uma visão pós-positivista do fenômeno jurídico, poderíamos dizer com fulcro nos artigos 1º, inciso II, 3º I, 5º § 2º e 6º IV todos da Constituição Federal, que a tributação dos itens pertencentes à cesta básica nacional e aos concernentes às necessidades básicas dos cidadãos a serem supridas com um salário mínimo de R$1.154,63, ofende frontalmente o princípio constitucional tributário da cidadania fiscal unilateral.

Professor Ricardo Lobo Torres [33] bem anotou que a Constituição de 1946 [34], art. 15, § 1º, garantia a imunidade ao mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica, todavia, tal dispositivo desapareceu expressamente do Texto Constitucional, e a proteção hoje se efetiva comedidamente através de isenções de IPI e do ICMS veiculadas através de legislações ordinárias. Entrementes, pensamos nós que a Constituição ainda agasalha tal princípio, podendo ser detectado em diversas passagens da Carta Magna, e.g, nas dobras do art. 1º, inciso III que trata da dignidade da pessoa humana, portanto, do princípio constitucional-tributário da cidadania fiscal primária, consubstanciada na proteção à intributabilidade dos bens primários.

Outrossim, a questão da cidadania fiscal não se esgota aqui. Precisamos tratar também da chamada cidadania fiscal bilateral. Para que possa haver uma cidadania fiscal unilateral, isto é, uma proteção fiscal aos cidadãos desprotegidos, carentes, há que haver uma atuação ética do fisco, portanto, solidária e justa, e também existir recursos para isto. É bom que se diga que os recursos serão são advindos de uma redução drástica nos excessos de renúncias fiscais [35], postura cotidiana nos países em desenvolvimento, que preconizam incentivos fiscais [36] e facilidades às empresas, na criação de pólos e distritos industriais, mas de outro lado penaliza o cidadão-contribuinte que acaba subsidiando estes benefícios; bem como, do pagamento de tributos por parte daqueles cidadãos em melhores condições sócio-econômicas, portanto, cidadãos-contribuintes, cidadãos estes portadores de uma cidadania fiscal bilateral, que lhes garante o direito de pagar tributos segundo sua capacidade contributiva e o dever constitucional (ética fiscal privada) de contribuir financeiramente para o aperfeiçoamento e aprimoramento da cidadania fiscal unilateral.

Por isto, com sapiência e rigor conceitual, o professor emérito de Direito Financeiro e Tributário da Universidade de Colônia, Klaus Tipke [37], ensina que a ética tributária é a teoria que estuda a moralidade das atuações em matéria tributária desenvolvidas pelos poderes públicos — legislativo, executivo e judiciário — e pelos cidadãos contribuintes.

Com efeito, há Constituições de países outros que estabelecem expressamente que todos estão obrigados ao pagamento de tributos estabelecidos por lei (Constituição Russa de 1993, art. 57; Constituição do Egito de 1971/80 art.61; Constituição da Síria de 1973, art. 41; Constituição dos Emirado Árabes de 1971, art. 42 e Constituição do Kuwait de 1962, art. 48). [38]

Se é verdade que o Estado fundado na propriedade privada e nos meios de produção, é obrigado a sobreviver mediante tributos, não é menos verdade que sem tributos e contribuintes não se pode construir nenhum Estado, nem Estado de Direito, nem muito menos um Estado Social, portanto, é princípio de justiça tributária que todos devam pagar tributos com base em sua capacidade contributiva, capacidade que começa ali onde a sua renda exceda o mínimo existencial [39], razão pela qual este mesmo Estado Social está eticamente obrigado a preservar as fontes tributárias (patrimônio dos contribuintes) ao revés de esgotá-las por prática de tributação excessiva, o que implicará em postura moralmente aética do ponto de vista tributário. [40]


6. Capacidade Contributiva: princípio ético norteador da cidadania fiscal bilateral.

A idéia de cidadania fiscal, defendida pelo Professor José Casalta Nabais [41], da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e aqui trabalhada por nós sobre uma outra perspectiva (cidadania fiscal unilateral e bilateral), deixa antever que a existência de uma cidadania fiscal bilateral pressupõe que aqueles cidadãos que têm o dever de suportar o ônus financeiro do Estado, ou seja, a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar tributos, o tem na medida de sua respectiva capacidade contributiva, isto é, mediante o reconhecimento ético-tributário de que estamos frente a um Estado Fiscal suportável nos limites dos princípios constitucionais tributários.

A liberdade econômica no Estado Fiscal e Principial, é uma liberdade cidadã, cujo preço reside na existência de destinatários do dever fundamental de pagar tributos. Por conseguinte, a cidadania fiscal bilateral não nos reserva outro caminho, senão por exemplo, o da crescente abertura da informação bancária às administrações tributárias. O que devemos evitar é o maniqueísmo neste acesso a dados tão importantes, o que só será coibido via ponderação no uso dos princípios jurídicos tributários, ferramentas jurídicas que nos oferecem a possibilidade do justo equilíbrio entre os direitos dos cidadãos, de um lado, e os poderes da administração, de outro.

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Como bem lembra José Casalta Nabais, "entre o segredo absoluto, que tudo sacrifica nos altares da arcana praxis, e a devassa, própria do mais descarado voyeurismo, há uma infinidade de oportunidades de realização do justo equilíbrio." [42]

Falar em cidadania fiscal bilateral é falar sobretudo, na capacidade contributiva revelada no aspecto material da fatispécie econômica [43]. Tal aspecto material consiste, objetivamente, no pressuposto, no limite máximo e no parâmetro do dever tributário. [44] É pressuposto na medida em que constitui o próprio fundamento do dever tributário, revelado pela realização concreta da fatispécie de conteúdo, econômico que, diante do conjunto de regras e princípios do ordenamento, justifica a incidência da norma tributária. É limite máximo, pois ninguém pode legitimamente ser obrigado a recolher um tributo superior à capacidade econômica revelada pela realização da fatispécie (pressuposto de fato), isto é, o princípio da capacidade contributiva impede que o dever tributário imposto seja maior do que o conteúdo econômico materializado na fatispécie. É parâmetro, para permitir a aferição da conexão razoável entre a fatispécie econômica e o montante do dever tributário, bem como, para que seja apurado se o valor recolhido pelo contribuinte está na medida correta (não pode ser inferior, nem superior) de suas possibilidades, tendo em vista que é dever de todos [45] concorrer para o financiamento das despesas públicas na medida de sua capacidade econômica, ou seja, quem pode pagar mais, porque é possível [46] pagar mais, deve pagar mais sempre (é vedado escusar-se em opções fiscais para pagar menos do que se pode economicamente), e quem não pode pagar, porque não é possível, deverá pagar o que é possível, só assim avançaremos na construção de uma sociedade menos injusta. [47]

Utilizando a noção de postulado kantiano, podemos ainda trabalhar a capacidade contributiva como sendo um postulado normativo, ou seja, como condição de possibilidade do conhecimento do dever tributário. Destacamos então três postulados normativos aplicáveis ao princípio da capacidade contributiva. Postulado da coerência, o conhecimento da capacidade contributiva enquanto norma de um sistema, só é possível com a compreensão das outras normas do sistema; postulado da integridade, só é possível conhecer a capacidade contributiva com a análise simultânea da fatispécie (fato), e com recursos aos textos normativos; postulado da reflexão, só é possível conhecer a capacidade contributiva enquanto norma, tendo em vista uma pré-compreensão pelo sujeito cognoscente, definida como a expectativa quanto à solução concreta, já que o texto sem a hipótese não é problemático, e a hipótese, por sua vez, só surge com o texto. [48]

Tais postulados, orientam o sujeito cognoscente no esclarecimento de como se pode avaliar a existência ou não da capacidade contributiva em dado caso real, capacidade contributiva que é dever tributário ínsito a cidadania fiscal.

Neste patamar — do desvelar da capacidade contributiva — não se fala em predominância do interesse público sobre o particular (princípio já questionado pela doutrina [49]), mas, sim em outras diretrizes. O esclarecimento dos fatos na fiscalização de tributos, a determinação do meios empregados pelo fisco, a ponderação dos interesses envolvidos, pela Administração ou pelo Poder Judiciário, a limitação da esfera privada dos cidadãos contribuintes, a preservação do sigilo etc, são, todos esses casos, exemplos de atividades administrativas que não podem ser ponderadas em favor do interesse público e em detrimento dos interesses privados envolvidos.

Não há de antemão uma diretiva para interpretação das regras tributárias ou administrativas em favor do interesse público, o que há no direito tributário pós-moderno, onde vige o importante conceito jurídico da cidadania fiscal bilateral, é uma relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado e o cidadão-contribuinte, relação esta que é explicada pelo postulado da unidade da reciprocidade de interesses, que significa implicar em uma principial ponderação entre os interesses reciprocamente relacionados (interligados), fundamentados na sistematização das normas constitucionais.

É certo que sob a ótica de uma cidadania fiscal bilateral é direito do contribuinte, valer-se dos meios juridicamente lícitos postos à sua disposição, para organizar sua situação tributária frente ao fisco de acordo com a sua capacidade contributiva, todavia, este direito de se auto-organizar (licitude dos meios/formas jurídicas) não é um direito absoluto e incontrastável em seu exercício, tendo em vista que a experiência pós-moderna de convívio em sociedade, é fundamentalmente informada pelo princípio da solidariedade social e não pelo individualismo exacerbado. [50]

Afirmar a existência de uma cidadania fiscal bilateral é pensar outra perspectiva, que não aquela tradicional de dar somente importância à discussão sobre a licitude ou ilicitude da conduta do contribuinte, isto é, se a conduta se materializou antes ou depois da fatispécie econômica, o que se deve verificar hodiernamente é se o contribuinte adotou uma forma jurídica para pagar o tributo, proporcionalmente e razoavelmente de acordo com a sua capacidade contributiva. Se assim o fez, utilizou-se dos meios jurídicos adequadamente; se assim não agiu, abusou dos meios jurídicos para sofrer carga tributária inferior à sua capacidade econômica, e por esta razão, deve ser desconsiderada a forma jurídica dada a fatispécie econômica.

Daí verberar Marco Aurélio Greco [51] que a conseqüência desta postura é a revitalização dos princípios éticos, ao lado das condutas típicas. Hoje, mais do que nunca, estão na ordem do dia os grandes princípios jurídicos: confiança, boa-fé, moralidade da Administração e também do particular, honestidade, sinceridade de propósitos, porque são eles que vão delimitar a faixa de constância e flexibilidade. Se estamos andando na direção da igualdade, justiça social, não podemos andar na direção de apenas um princípio, mas na direção de vários, e o que vai determinar a faixa de certeza e de flexibilidade serão este princípios.

Não cabe mais invocarmos simplesmente, o princípio da legalidade, a proteção ao patrimônio e a liberdade, mas, também devemos invocar a cidadania fiscal bilateral, que implica a afirmação de outros princípios jurídicos, solidariedade, capacidade contributiva, proporcionalidade etc. Como bem anota Marco Aurélio Greco [52], a solução dos conflitos concreto na medida em que estamos num Estado Democrático de Direito, passa pela reunião de valores do Estado de Direito e valores do Estado Social, um valor não exclui o outro, um não se anula com o outro, a solução passa pela composição de valores naquilo que eles não se contradisserem, ou seja, prestigia-se um, mas também prestigia-se outro.

Com efeito, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária pode, entre outras formas, ser buscada mediante uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da livre iniciativa, através do princípio da proporcionalidade, pois enquanto aquele primeiro liga-se diretamente à idéia de justiça e solidariedade, o segundo remete ao ideal de liberdade. O princípio da proporcionalidade nesta perspectiva, é princípio de direito e princípio de interpretação do direito, vetor fundamental dirigido tanto ao legislador quanto aos aplicadores do direito em sentido lato. Reflexões desta natureza, dão a dimensão exata do papel do Poder Judiciário no início deste século XXI, no que atine a interpretação autêntica (Kelsen) da norma tributária e da fatispécie econômica no caso concreto.

Por outro lado, registra-se como mais um reflexão, que os fins do Estado não podem se sobrepor aos meios validamente positivados no ordenamento jurídico nacional para a busca da fatispécie econômica. O que significa dizer, que cabe ao Estado o ônus da prova contra a conduta tributária do contribuinte, que paga tributo inferior à sua capacidade econômica mediante o uso de determinado negócio jurídico, ocasião em que detectada referida conduta, o Estado poderá aplicar a novel disposição do parágrafo único do art. 116 do CTN. [53]

Não há duvida que o contribuinte tem o direito encartado na Constituição Federal, de auto-organizar seus negócios segundo sua capacidade econômica, diante da sociedade onde vive e tem responsabilidade social [54], por isso o ônus probandi do abuso de direito é por parte do Estado. Todavia o limite ético desta auto-organização é a sua capacidade contributiva, se o contribuinte tem capacidade econômica para contribuir com R$100,00 (é possível contribuir com R$100,00), não pode juridicamente utilizar-se de forma jurídica desproporcional ou irrazoável, qualquer que seja, mesmo que lícita, para contribuir com R$50,00, porquanto mencionada conduta (opção fiscal) ainda que lícita, fere de morte o princípio da capacidade contributiva cujo corolário é a revelação da cidadania fiscal bilateral.

As opções fiscais sofrem o balizamento direto dos princípios da capacidade contributiva, proporcionalidade tributária e razoabilidade tributária, [55]tudo em nome da cidadania fiscal bilateral. Os autores de um modo geral acreditam que o contribuinte possa escolher, entre dois caminhos lícitos, aquele que fiscalmente seja menos oneroso. Numa empresa, aliás, ter esse objetivo em mente é obrigação do administrador, a quem incumbe zelar pelo patrimônio da sociedade, é o que pensa Luciano Amaro. [56]

Pensamos que não. O que deve balizar a conduta do administrador não é a maior ou menor onerosidade fiscal, mas, sim a capacidade contributiva da empresa/contribuinte, ou seja, se a empresa tem condições de contribuir com mais, é obrigada a isto por força do preceito constitucional da capacidade contributiva (art. 145, parágrafo 1º, "sempre que possível..."), se assim não o fizer escudando-se em formas desproporcionais à sua capacidade econômica, estará se sujeitando a imposição fiscal de ofício. A presunção constitucional é da liberdade de se auto-organizar, todavia, citada liberdade está umbilicalmente atrelada à perspectiva que toda auto-organização é permitida desde que feita na direção de pagar tributos segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Repita-se: se era possível pagar mais, e pagou-se menos, foi ferido o princípio da capacidade econômica, por inobservância da cidadania fiscal bilateral. É bem verdade que Alberto Xavier [57] salienta que "a liberdade individual de os particulares se organizarem e contratarem de modo menos oneroso do ponto de vista fiscal é um dos temas mais nobres do Direito Tributário, intimamente ligado, como está, às garantias constitucionais que a visam proteger e que consistem nos princípios da legalidade e da tipicidade da tributação". Entrementes, mencionada ´liberdade´ não é absoluta conforma bem detecta Klaus Tipke, [58]que reconhece a existência de um direito dos particulares organizarem a sua vida econômica pelo recurso aos meios negociais que o Direito Privado faculta, mas, parte ele igualmente do pressuposto que esse direito não é absoluto, mas intrínseca e originariamente limitado.

Nesta linha, para Tipke [59] a defesa intransigente da segurança jurídica corresponde a um pensamento positivista, ligado ao Estado de Direito Formal, mas inadequado face ao moderno Estado de Direito material. Por isso, caso se comprove que o contribuinte, pelo uso de forma inusuais, modelou juridicamente um fato econômico revelador de capacidade contributiva, de modo a evitar a tributação, o princípio da segurança jurídica deve ceder perante o princípio da capacidade contributiva, cabendo até a legitimação da aplicação analógica.

Cidadão-Contribuinte e Estado têm objetivos (fins) a serem alcançados, entre eles há uma permanente ‘tensão’ de justos interesses, de ambos os lados desta relação pululam os valores da segurança jurídica, da legalidade tributária, da capacidade contributiva, da cidadania fiscal bilateral e da proporcionalidade, e certamente, hoje em dia a proporcionalidade (enquanto princípio de direito e princípio de interpretação do direito [60]) e a capacidade contributiva, são fortes instrumentos à disposição do intérprete para que a tensão entre Estado e Contribuinte possa permanecer em níveis democraticamente aceitos, conforme bem leciona Helenílson Cunha Pontes em obra específica sobre o tema da "proporcionalidade" no Direito Tributário [61].

A discussão atual entre a Ética Tributário do Estado e a Ética Fiscal do cidadão-contribuinte nos revela que o sentido semântico do que seja segurança jurídica mudou completamente, há uma revolução copernicana no conceito do que seja segurança jurídica, tipicidade tributária etc., e quanto a isto parece não pairar mais dúvidas. José Marcos Domingues de Oliveira é sensível a tal mudança, quando bem observa que a "tipicidade aberta, através dos conceitos indeterminados, é o caminho capaz de iluminar materialmente a conciliação ético-jurídica da liberdade humana com o dever social de prestar o tributo justo, justo porque conexo à capacidade contributiva dos cidadãos, sempre sob a reserva do controle de proporcionalidade das leis e dos atos administrativos de lançamento". [62]

Vivemos um período de cidadania fiscal, cidadania fiscal diz respeito a prudência jurídica: i)- perdemos a ilusão quanto a neutralidade ideológica do intérprete, o intérprete e a interpretação não são neutros; ii)- não se crê mais, que possa haver um possível conteúdo ´legal´ pré-definido ´na lei´; iii)- sabe-se que não sustenta-se mais uma visão exclusivamente positivista do Direito; iv)- refuta-se com veemência a existência de uma tipicidade ´fechada, até porque as palavras possuem significação aberta [63], contextuais, históricas etc; v)- o jurídico aborda questões cujas respostas não são um "sim ou não", mas, um "pode ser que sim" ou "pode ser que não", acabaram as ´nítidas divisões´, ruíram as certezas, o que nos lança o desafio de saber onde se encontra o lícito e o onde está o ilícito.

É hora de assumirmos responsabilidades bem claras e transparentes no jogo jurídico-tributário, é chegado o momento de irmos ao púlpito e confessarmos a toda sociedade, a nossa insegurança. Prudência no campo da tributação é a insegurança assumida e controlada. Tal como Descartes no limiar da ciência moderna, exerceu a dúvida em vez de a sofrer, nós neste início do século XXI, no limiar de uma ciência jurídica pós-moderna, de uma jurisprudência principial, devemos com prudência, exercer a insegurança jurídica em vez de sofrê-la, [64]ou seja, devemos partir em direção a uma tributação acima de tudo ética, tanto por parte do fisco quanto por parte do cidadão-contribuinte, não há espaços para tergiversações.

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Sobre o autor
Roberto Wagner Lima Nogueira

mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Ética tributária e cidadania fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3356. Acesso em: 19 abr. 2024.

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