1. Princípios tributários como norteadores para aplicação de multas
As normas infraconstitucionais têm de ser interpretadas à luz dos princípios incrustados na Lei Maior. Trata-se de exegese necessária, a qual se presta a evitar a banalização da essência do texto constitucional, a minoração da importância daquilo que nele está implícito.
Logo, este exercício hermenêutico acerca das normas postas, de interpretá-las sem se olvidar dos princípios do direito pátrio, torna-se precípuo para a efetivação de um ordenamento harmônico e verdadeiramente justo.
Em matéria tributária, no que se refere, especificamente, às exações de caráter punitivo – isto é, as multas - as observâncias da Proporcionalidade, Razoabilidade e Não confisco são imprescindíveis.
A fim de compreender a razão desta importância, válido destrinchar cada um dos princípios destacados alhures, de forma resumida.
Partindo do pressuposto de que princípio é um enunciado dotado de elevado valor axiológico, pode-se dizer que a Proporcionalidade tem por fito: i) garantir a adequação das normas aos fins aos que elas se destinam; ii) assegurar o emprego dos meios menos prejudiciais para a consecução dos objetivos normativos; iii) fazer com que se tenha a certeza de que os benefícios gerados com a aplicação daquele excerto legal sejam superiores aos ônus que ele acarreta. Assim, têm-se o trinômio adequação-necessidade-proporcionalidade stricto sensu.
A razoabilidade, por sua vez, consiste no limite entre o aceitável e o inaceitável, restringindo a discricionariedade concedida ao Estado.
E o não confisco, como espécie de resultado da cumulação dos dois princípios anteriormente descritos, aplicada ao estudo tributário, objetiva obstar o arbitramento de cobranças exorbitantes, incompatíveis com os contextos em que se inserem tais exações, simbolizando proteção ao contribuinte, na medida em que perseguida a melhor e a menos onerosa solução para os direitos e liberdades do sujeito passivo em questão.
Pois bem. A aplicação de multas consistidas em valores altos implica em um desvirtuamento do próprio instituto da penalidade tributária. O fito da multa é coibir a reincidência do sujeito passivo na prática daquilo considerado ilícito, e, portanto, a renda auferida com o pagamento desta é de caráter excepcional, eventual.
Diferentemente do tributo, da obrigação tributária principal, os frutos dos adimplementos de multas por descumprimentos obrigacionais (i) não se destinam à arrecadação de recursos para suprir os gastos da União, (ii) não constituem receita ordinária, (iii) nem se prestam a incrementar a receita pública.
Logo, a recorrência de arbitramentos, pelos órgãos fazendários, de valores exorbitantes de punições por descumprimento de obrigações tributárias simboliza a deturpação da finalidade imanente à criação de penalidades. Elide-se, portanto, com esta prática, a diferença precípua entre multa e tributo.
De conseguinte, há de se ter uma proporção entre os danos advindos do inadimplemento obrigacional do contribuinte e a multa que vai ser cobrada, sob pena de se tornar a penalidade mais um instrumento de arrecadação, quando, em verdade, esta consiste em meio apto apenas a coibir a prática reiterada do ilícito, conforme explicado anteriormente.
Neste mesmo sentido, posicionou-se o Egrégio TRF4:
MANDADO DE SEGURANÇA. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA DESCUMPRIMENTO. MULTA. EFEITO CONFISCATÓRIO. - A multa, como sanção pelo descumprimento de obrigação acessória, deve guardar proporção com o "dano" causado por este mesmo descumprimento, não podendo desvirtuar sua natureza, a ponto de se tornar mero instrumento arrecadatório, de efeito nitidamente confiscatório. - Em que pese não ser o sigilo de dados não um princípio absoluto, há que se valer, no caso, dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no que tange à aplicação da multa pelo descumprimento de obrigação acessória. Assim, é devido a aplicação de multa, todavia, deve ser aplicada a tese da interpretação mais favorável ao contribuinte, aplicando-se, no caso, a multa contida no inciso I do art. 46 da MP nº 2158-35/2001, qual seja, a de R$ 5,00 (cinco reais) por cada grupo de cinco informações omitidas, nos termos da legislação aplicável à espécie. (TRF-4, Relator: ALCIDES VETTORAZZI, Data de Julgamento: 17/06/2003, SEGUNDA TURMA)
Portanto, deve-se, sempre, imprimir as noções de Proporcionalidade, Razoabilidade e Não Confisco no exercício de quantificação das punições a serem postas, a fim de que haja coerência entre o descumprimento e a multa a ser cobrada. Assim dispõe Hugo de Brito Machado, em trecho de sua obra:
"O que impede a cominação de multas exorbitantes é o princípio constitucional de proporcionalidade, no que alberga a ideia de que deve haver uma proporção, em sentido estrito, entre a gravidade do ilícito e a sanção ao mesmo correspondente."[2]
E, em consonância, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 2. º E 3.º DO ART. 57 DO ATO DAS DOSPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FIXAÇÃO DE VALORES MÍNIMOS PARA MULTAS PELO NÃO-RECOLHIMENTO E SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO INCISO IV DO ART. 150 DA CARTA DA REPUBLICA. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. Ação julgada procedente. (STF - ADI: 551 RJ, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Data de Julgamento: 24/10/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 14-02-2003 PP-00058 EMENT VOL-02098-01 PP-00039)
2. Necessidade de coerência quanto ao lastro utilizado para o cálculo das penalidades
Outro erro, quase sempre perpetrado pela Administração Pública, consiste em calcular multas por descumprimento de obrigações acessórias a partir da base de cálculo de tributo.
Pertinente, portanto, traçar uma distinção entre as penalidades que decorrem do não recolhimento do tributo e aquelas advindas do descumprimento de obrigações acessórias, vez que o arbitramento da multa deve guardar conexão com o ilícito ao qual ela se vincula.
Se o inadimplemento é de obrigação principal, relativa ao pagamento de imposto, por exemplo, é bastante adequado que a valoração da punição a ser aplicada baseie-se no montante do tributo não recolhido ou em sua base de cálculo.
Por outro lado, quando o descumprimento é de alguma incumbência do contribuinte referente a ato que tenha por fito facilitar a arrecadação ou fiscalização por parte da Administração Pública, no âmbito tributário – ou seja, de obrigações acessórias – afigura-se incoerente arbitrar a respectiva multa calculando-a com lastro no quantumou base de cálculo do tributo com o qual tal dever descumprido se relaciona.
Leciona, neste sentido, Hugo de Brito Machado:
“A multa, como sanção que é, há de se corresponder à não-prestação. Assim, se o inadimplemento concerne a obrigação de pagar um tributo, é razoável seja uma multa proporcional ao valor deste, ou de sua base de cálculo. Entretanto, se é sanção pelo inadimplemento de uma obrigação acessória, a multa não pode ser aquela proporcional ao valor do imposto, ou de sua base de cálculo do tributo. Salvo, repita-se, nos casos que a multa fixa, cominada especificamente para o inadimplemento de obrigação acessória, seja mais onerosa.”[3].
Cabível, neste passo, reiterar a construção retórica tecida anteriormente: em sendo o fundamento da multa o descumprimento de dever legal, cujo objetivo é o de sancionar o inadimplemento, e não arrecadar patrimônio, mostra-se inapropriado que o valor do tributo consista no parâmetro para definição do quantum da penalidade a ser paga.
Viola a proporcionalidade e a razoabilidade a aplicação de multas em percentual da quantia do tributo, ou de sua base de cálculo, pois dá margem à constituição de valores incompatíveis com a obrigação descumprida, com o dano causado – ou com a falta dele – além de subverter o sentido em aplicar-se multas com caracteres distintos para o descumprimento de obrigações principais e para o de acessórias.
3. Conclusão
Neste toar, várias balizas, constantemente esquecidas pela Administração Pública, devem ser utilizadas no exercício aplicador de multas tributárias. Os princípios, os elementos constitutivos, aqui resumidos anteriormente, prestam-se como diretrizes ao hígido arbitramento de penalidades.
Contudo, a ânsia arrecadatória parece se sobrepor à necessidade técnica, ao respeito aos preceitos do ordenamento, à despeito das orientações legais.
E, no final das contas, o destinatário do prejuízo é sempre o mesmo: o contribuinte.
4. Referências Bibliográficas
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 34ª Ed. Malheiros Editores. São Paulo, 2013.
MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997.
JANCZESKI, Célio Armando. Multas por descumprimento de obrigação acessória e sua interpretação e aplicação segundo princípios constitucionais. São Paulo: Revista Dialética de Direito Tributário nº 198, 2012.
[2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 34ª Ed. Malheiros Editores. São Paulo, 2013. P. 42
[3] MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997. P. 227