O Pregoeiro é um agente público diferenciado. Sua atuação convive com a comunicação entre a realidade pública, com suas prerrogativas e normas de controle, e a realidade privada do Mercado, com suas nuances próprias de competição e de regulação mercadológica. Essa convivência impõe diversos desafios, mas também permite uma expertise e oxigenação de ideias, incomuns ao serviço público em geral.
Com a inexistência de restrições à recondução, o pregoeiro costuma aprender com as licitações por ele gerenciadas, absorvendo importantes conhecimentos sobre o objeto da licitação e sobre o comportamento daquele segmento do mercado. Isso faz com que eventuais equívocos, na formatação do certame, sejam corrigidos, por intervenção do pregoeiro, antes mesmo da publicação do edital. O network formado por esses profissionais, em virtude dos instrumentos modernos de comunicação e dos eventos de capacitação, permite-lhes trocar informações sobre comportamento de licitantes e de empresas contratadas, com uma agilidade muito maior que a permitida pelo formalismo burocrático.
Ora, essa figura (o Pregoeiro) foi criada para ser um gestor do certame licitatório e também um negociador, competência imaginada em uma lógica gerencial que superou a desconfiança a priori do modelo exacerbadamente burocrático. Nessas incumbências, deve respeitar as normas jurídicas que conformam a atividade administrativa e, entre outras coisas, atentar para as finalidades precípuas do procedimento licitatório que coordena: respeitar a isonomia, buscar a proposta mais vantajosa e promover o desenvolvimento nacional sustentável.
Pois bem, no exercício de suas atribuições, entre o público e o privado, gerindo o certame para atendimento da pretensão contratual da Administração, pelo Mercado, o Pregoeiro se depara com diversos dilemas. Tentaremos, resumidamente, tratar sobre uma situação rotineiramente vivenciada, por esse agente público.
Imaginemos uma licitação, na modalidade pregão eletrônico, em que a maior parte das propostas apresentadas, com menor preço, deixaram de atender exigência formal do edital, para que indicassem o modelo e o prazo de garantia do produto ofertado. Nessa situação, qual a atitude possível, em virtude do dilema vivenciado: desclassificar as propostas apresentadas sem todos os elementos indicados pelo edital (notadamente, modelo e prazo de garantia do produto ofertado) ou utilizar a prerrogativa de saneamento das propostas, admitindo a complementação das informações omitidas?
Em um caso real, identificamos que a decisão de desclassificação (primeira alternativa), em alguns itens, levaria a contratação de propostas com valores em patamares superiores a 50%, em relação aos demais classificados, sem a indicação formal dos citados elementos (modelo e prazo de garantia do produto ofertado).
Há um evidente dilema que envolve, de um lado, a exigência rigorosa do cumprimento das formalidades previstas pelo edital e, de outro lado, o uso da prerrogativa de saneamento, pelo pregoeiro.
O Decreto federal nº 5.450/2005 expressamente admite que o Pregoeiro exerça a prerrogativa administrativa de sanar erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade jurídica. Nestes casos, deve apresentar despacho fundamentado, registrado em ata e acessível a todos, que informe e justifique a medida saneadora.
Art. 26 (In omissis)
(...)
§ 3º No julgamento da habilitação e das propostas, o pregoeiro poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado, registrado em ata e acessível a todos, atribuindo-lhes validade e eficácia para fins de habilitação e classificação.
Jacoby Fernandes, com a sabedoria que lhe é peculiar, lembra que não podem ser definidas previamente as hipóteses de saneamento:
Não se pode definir previamente ou pretender regular o direito-dever de saneamento, até porque são ilimitadas e multifacetadas hipóteses em que ocorrem erros, defeitos, vícios. Acresce-se, ainda, que toda teoria jurídica de convalidação do ato administrativo na riqueza que só a prática evidencia fica distante de um norte permanentememente orientador.[1]
Possui razão o referido doutrinador. A dinâmica da realidade impede que sejam estabelecidos, de forma absoluta, os erros e omissões que podem ser sanados pela atuação diligente do pregoeiro.
Ademais, a realização de diligência é claramente identificada como uma prerrogativa facultada ao pregoeiro, sendo desnecessária a previsão em edital[2]. Assim, por exemplo, diante de dúvida que possa ser suprida por diligência, convém a realização desta, buscando a ampla competitividade e a busca da melhor proposta. O TCU já assentou, inclusive, que é indevida a desclassificação de licitantes em razão da ausência de informações na proposta que possam ser supridas pela diligência prevista no art. 43, § 3º, da Lei de Licitações.[3]
Mesmo que inexistisse previsão que admitisse as diligências, no regulamento federal do pregão, essa atitude de sanar erros e omissões simples seria admissível, em prestígio aos princípios da eficiência, da competitividade e da razoabilidade. Essas normas servem de fundamento para evitar desclassificações motivadas por erros e omissões de pouca relevância, desde que tal correção não desrespeite o interesse público ou afronte o tratamento isonômico entre os participantes.
Em nossa opinião, notadamente na modalidade pregão, não cabe impor de maneira geral a restrição estabelecida pelo §3º do artigo 43 da Lei nº 8.666/93[4]. Apenas não seria admissível a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente na proposta, quando esta for essencial e sua juntada posterior efetivamente prejudicar a competitividade ou a isonomia.
O próprio TCU já determinou a certo ente que se abstivesse de inabilitar empresas e/ou desclassificar propostas quando a dúvida, o erro ou a omissão pudessem ser saneados, nos casos em que não importasse prejuízo ao interesse público e/ou aos demais participantes[5].
A ausência da indicação do modelo e prazo da garantia pode ser percebida como uma falha sanável, quando tal exigência consta no regramento do certame, vinculando os licitantes. A ausência do mero registro, no campo específico da proposta, não significa que esta será aceita sem essas condições, nem desvincula o licitante das definições necessárias ao objeto licitado, já estabelecidas pelo edital.
Não vislumbramos que a informação a destempo, sobre o prazo de garantia e o modelo gere prejuízos aos demais participantes, altere a substância das propostas, dos documentos ou sua validade jurídica. Cogitar tal atitude como prejudicial, em razão do argumento de que ela deixaria de prestigiar a vitória no certame àquele licitante que cumpriu rigoramente as formalidades, inviabilizaria qualquer outra possibilidade de saneamento.
Outrossim, não é legítimo que o interesse econômico do particular seja tido em primazia absoluta, em detrimento do interesse público de busca pela contratação mais vantajosa, contrariando princípios comezinhos como a competitividade, razoabilidade e eficiência. Ao revés, a busca pela melhor proposta e o atendimento aos princípios que conformam a atividade administrativa exercida pelo pregoeiro, como a competitividade, razoabilidade e eficiência, exigem que, respeitando-se a isonomia e a impessoalidade, sejam tomadas medidas cabíveis para sanar erros, omissões ou defeitos de pouca relevância, com o intuito de garantir a seleção da melhor proposta possível.
Esse raciocínio é identificado nas decisões de nossa Jurisprudência. Cite-se, como exemplo, decisão proferida pela Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que (embora tratando sobre outro aspecto, in casu, vistoria prévia) impediu a inabilitação de licitante, em virtude do não cumprimento da exigência em questão, por entender que certas exigências editalícias prejudicam, desarrazoadamente, o objetivo de uma contratação pelo menor preço, configurando excesso de formalismo e molestando o interesse público.[6]
Realmente, a razão de ser do formalismo licitatório é o atendimento ao interesse público. O formalismo é um meio, não um fim em si mesmo, sendo ilegítimo que ele se imponha em detrimento da seleção da melhor proposta.
Assim, em determinadas situações, pode-se justificar que questiúnculas procedimentais, que não atentem contra a isonomia entre os licitantes, sejam prescindidas em favor da busca de uma proposta mais vantajosa para o Poder Público. Neste prumo, vale transcrever as lições de Lucas Rocha Furtado[7], representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União:
A desclassificação de uma proposta pode ter dois fundamentos básicos: vícios formais e preço.
O primeiro fundamento, indicado no art. 48, I, da Lei nº 8.666/93, suscita algumas dúvidas porque desconformidades insignificantes entre as propostas e o edital não devem dar causa À desclassificação. A desconformidade ensejadora da desclassificação de uma proposta deve ser substancial e lesiva à Administração ou aos outros licitantes. É preferível admitir proposta com vícios formais de apresentação, mas vantajosa no conteúdo, do que desclassificá-la por rigorismo formal e incompatível com o caráter competitivo da licitação.
O referido autor, ainda, lembra que, embora se presuma que determinados requisitos impostos pelo edital são relevantes, o rigor em sua exigência não deve ser aplicado de forma a prejudicar a própria administração.[8]
Esta compreensão moderna do papel a ser exercido pelo agente público responsável pelas licitações encontra eco nas decisões de nossos Tribunais[9].
EMENTA: DIREITO PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. VINCULAÇÃO AO EDITAL. INTERPRETAÇÃO DAS CLAUSULAS DO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO PELO JUDICIÁRIO, FIXANDO-SE O SENTIDO E O ALCANCE DE CADA UMA DELAS E ESCOIMANDO EXIGÊNCIAS DESNECESSÁRIAS E DE EXCESSIVO RIGOR PREJUDICIAIS AO INTERESSE PÚBLICO. POSSIBILIDADE. CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA PARA ESSE FIM. DEFERIMENTO.
O “edital” no sistema juridico-constitucional vigente, constituindo lei entre as partes, e norma fundamental da concorrência, cujo objetivo e determinar o “objeto da licitação”, discriminar os direitos e obrigações dos intervenientes e o poder público e disciplinar o procedimento adequado ao estudo e julgamento das propostas.
Consoante ensinam os juristas, o principio da vinculação ao edital não é “absoluto”, de tal forma que impeça o judiciário de interpretar-lhe, buscando-lhe o sentido e a compreensão e escoimando-o de clausulas desnecessárias ou que extrapolem os ditames da lei de regência e cujo excessivo rigor possa afastar, da concorrência, possíveis proponentes, ou que o transmude de um instrumento de defesa do interesse publico em conjunto de regras prejudiciais ao que, com ele, objetiva a administração.
O procedimento licitatório e um conjunto de atos sucessivos, realizados na forma e nos prazos preconizados na lei; ultimada (ou ultrapassada) uma fase, “preclusa” fica a anterior, sendo defeso, a administração, exigir, na (fase) subseqüente, documentos ou providencias pertinentes aquela já superada. Se assim não fosse, avanços e recuos mediante a exigência de atos impertinentes a serem praticados pelos licitantes em momento inadequado, postergariam indefinidamente o procedimento e acarretariam manifesta insegurança aos que dele participam.
(...)
No procedimento, é juridicamente possível a juntada de documento meramente explicativo e complementar de outro preexistente ou para efeito de produzir contra-prova e demonstração do equivoco do que foi decidido pela administração, sem a quebra de princípios legais ou constitucionais.
O “valor” da proposta “grafado” somente em “algarismos” - sem a indicação por extenso - constitui mera irregularidade de que não resultou prejuízo, insuficiente, por si só, para desclassificar o licitante. A “ratio legis” que obriga, aos participantes, a oferecerem propostas claras é tão só a de propiciar o entendimento à administração e aos administrados. Se o valor da proposta, na hipótese, foi perfeitamente compreendido, em sua inteireza, pela comissão especial (e que se presume de alto nível intelectual e técnico), a ponto de, ao primeiro exame, classificar o consórcio impetrante, a ausência de consignação da quantia por “extenso” constitui mera imperfeição, balda que não influenciou na “decisão” do órgão julgador (comissão especial) que teve a idéia, a percepção precisa e indiscutível do “quantum” oferecido.
O formalismo no procedimento licitatório não significa que se possa desclassificar propostas eivadas de simples omissões ou defeitos irrelevantes.
Segurança concedida.
Como se depreende da leitura do julgado, o STJ enaltece a compreensão de que o formalismo no procedimento licitatório não impõe, de forma absoluta, a declassificação das propostas eivadas por simples omissões ou por defeitos irrelevantes.
Assim, entendemos que a melhor orientação jurídica a ser dada ao pregoeiro é para que, conforme admitido pelo Decreto federal nº 5.450/2005, exerça a prerrogativa administrativa de sanar erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, prestigiando princípios que conformam a atividade administrativa, como: a competitividade, razoabilidade e eficiência. Convém, de qualquer forma, registrar a necessidade de que a decisão de sanar as omissões seja lastreada em despacho fundamentado, registrado em ata e acessível a todos, que informe e justifique a medida saneadora; outrossim, a falha a ser saneada não deve ser essencial e seu saneamento posterior não deve efetivamente prejudicar a competitividade ou a isonomia.
Notas
[1] FERNANDES, Jorge Ulysses Jacoby. Sistema de registros de preço e pregão presencial e eletrônico. 5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
[2] TCU. Acórdão 2459/2013-Plenário. Relator Ministro José Múcio Monteiro, 11.9.2013. Info 168.
[3].TCU. Acórdão 1170/2013-Plenário, Relatora Ministra Ana Arraes, 15.5.2013 - info 151
[4] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas, 6ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2014.
[5] TCU - Acórdão nº 2.231/2006 - 2ª Câmara
[6] TRF 5ª REGIÃO - Processo: 200482000077322 UF: PB Órgão Julgador: Primeira Turma. Data da decisão: 04/12/2008. DJ - Data: 13/02/2009 - Página: 196 - Nº: 31.
[7] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Fórum. 2007. P. 255.
[8] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Fórum. 2007. P. 255.
[9] STJ – Rel. Ministro DEMÓCRITO REINALDO - MS 5418 / DF – Fonte: DJ 01.06.1998 p. 24.