Considerações finais
O movimento neoconstitucional, presenciado, no Brasil, a partir da Constituição da República de 1988, fez sucumbir o paradigma do Estado Legislativo de Direito, para emergir o paradigma do Estado Constitucional de Direito. Nesse momento, a Constituição, outrora reputada mero programa político, tem reconhecida sua normatividade jurídica, passando a reger todo o ordenamento jurídico.
Da mesma sorte, inspirada no neoconstitucionalismo, a CF/88 agregou ao conteúdo de suas normas valores de cunho axiológico-moral, mormente os relacionados à efetivação da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, os quais, agora, por possuírem força normativa, podem ser exigidos imediatamente face ao Estado e à sociedade.
Nesse passo, diante da patente irresponsabilidade social dos Poderes majoritários, transferiu-se, a outros órgãos da soberania brasileira, a missão de fazer cumprir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem como de efetivar as prestações sociais inerentes à cidadania.
O Judiciário passa, então, a ser visto como Hércules[21]: um semideus, dotado de inúmeras qualidades, que faz, à luz dos princípios constitucionais, a Justiça do caso concreto. Contudo, por fundar sua atuação no princípio da inércia, esse Poder apenas tem potencial para fazer Justiça, posta a necessidade inafastável de ser provocado por meio de ação, seja do particular, quando em defesa de interesses individuais puros, seja das instituições legitimadas à defesa dos interesses massificados.
É nesse contexto que o Ministério Público torna-se genuíno agente de promoção social, eis que detentor de meios judiciais[22] e extrajudiciais hábeis a transformar a realidade brasileira, em seus mais variados matizes: direitos sociais, do consumidor, do idoso, da criança e do adolescente, ao meio ambiente equilibrado e etc.
Não obstante de grande préstimo à construção da democracia brasileira, a via judicial – utilizada quando a violação de direitos já foi levada a efeito, ou quando tal lesão é latente – por vezes, é ineficaz, tendo em vista, principalmente, a morosidade do processo judicial e a rotineira irreparabilidade dos danos ocasionados.
Desta feita, propositadamente, a CF/88, em seu art. 127, §2º, garantiu ao Ministério Público autonomia funcional, a fim de que atue genuinamente na defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos direitos sociais e individuais indisponíveis. Isto é dizer que, tanto quanto possível, incumbe ao Órgão ministerial a atuação preventiva no intento de assegurar os valores constitucionais acima transcritos.
Assim, mecanismos regulados pela lei – como as audiências públicas, as recomendações, e os TAC – assim como aqueles decorrentes dos princípios constitucionais – a exemplo de programas sociais tendentes a proteger a dignidade do trabalhador ou dos índios – constituem poderosa ferramenta de transformação social, eis que evitam danos irreversíveis, além do que legitimam democraticamente a Instituição ministerial.
Portanto, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, o papel do Ministério Público, agora função essencial à Justiça, é efetivar os mandamentos e diretrizes constitucionais, assegurando aos milhares de brasileiros pobres de cidadania, ao menos, uma “vida mínima”, entendida como limite inarredável à decência humana. Para isso, o “defensor do povo” deve pautar a sua atuação, sobretudo, na prevenção de eventuais danos aos interesses coletivos, utilizando as vias judiciais somente quando necessária a cessação e a compensação de tais patologias sociais.
Com esse novo perfil constitucional, o Ministério Público, cônscio de seu múnus, dispensará seus esforços de um modo mais eficaz e mais democrático, transformando, de fato, a inacabada democracia brasileira.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Gregório Assagra de. O Ministério Público no neoconstitucionalismo: perfil constitucional e alguns fatores de sua legitimação social. Disponível na internet via URL: www.mp.mg.gov.br/portal/public/interno/arquivo/id/9990. Arquivo capturado em 10 de Outubro de 2012.
CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O Ministério Público, “ombudsman”, defensor do povo, ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos Direitos Humanos: uma tendência atual do constitucionalismo. Disponível na internet via URL: http://www.prt22.mpt.gov.br/artigos.php. Arquivo capturado em 09 de Outubro de 2012.
GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia: teoria e práxis. São Paulo: Editora de Direito, 1998.
SARMENTO, Daniel. “O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades”. In: Marcelo Novelino (org.), Leituras Complementares de Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Salvador: Editora Juspodvim, 2009.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
Notas
[1] Expressão cunhada pelo professor piauiense Saul Tourinho Leal, em sua dissertação de mestrado intitulada “Ativismo ou altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal”.
[2] Art. 1º, II, da CF/88.
[3] “Defensor del pueblo” é a designação espanhola da instituição correlata ao Ministério Público no Brasil.
[4] SARMENTO, Daniel. “O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades”. In: Marcelo Novelino (org.), Leituras Complementares de Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Salvador: Editora Juspodvim, 2009, p. 31.
[5] SARMENTO, op. cit., p. 34.
[6] MARUM, apud. ALMEIDA, Gregório Assagra de. O Ministério Público no neoconstitucionalismo: perfil constitucional e alguns fatores de sua legitimação social, p. 41. Disponível na internet via URL: www.mp.mg.gov.br/portal/public/interno/arquivo/id/9990. Arquivo capturado em 10 de Outubro de 2012.
[7] ALMEIDA, op. cit., p. 9-10.
[8] ALMEIDA, op. cit., p. 3.
[9] SARMENTO, op. cit., p. 61.
[10] SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 27-28.
[11] SCHWARTZMAN, op. cit., p. 189.
[12] O Supremo Tribunal Federal examinou a questão atinente a eficácia horizontal dos direitos fundamentais por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 201.819/RJ, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
[13] CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O Ministério Público, “ombudsman”, defensor do povo, ou função estatal equivalente, como instituição vocacionada para a defesa dos Direitos Humanos: uma tendência atual do constitucionalismo, p. 18. Disponível na internet, via URL: http://www.prt22.mpt.gov.br/artigos.php. Arquivo capturado em 09 de Outubro de 2012.
[14] FERRAZ, apud. ALMEIDA, op. cit., p. 15.
[15] GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia: teoria e práxis. São Paulo: Editora de Direito, 1998, p. 119-123.
[16] Vocábulo que passou às línguas modernas através do sueco, com tradução semelhante à expressão “provedor do povo”.
[17] Konrad Hesse, em sua obra “A Força Normativa da Constituição”, aduz que as normas jurídicas e a realidade devem ser consideradas reciprocamente. Dessa forma, segundo o autor, para ser aplicável e ter efetividade, a Constituição deve ser conexa à realidade jurídica, social e política.
[18] ALMEIDA, op. cit., p. 23.
[19] Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público).
[20] ALMEIDA, op. cit., p. 34.
[21] O jusfilósofo estadunidense, Ronald Dworkin, em sua obra “O Império do Direito”, propõe um modelo ideal de juiz, batizando-o, propositadamente, com um nome de um semideus da mitologia grega: Hércules. Para o autor, o juiz ideal Hércules possui uma personalidade híbrida, incluindo atributos de natureza moral, hermenêutica, existencialista e democrática, tudo isso para ser capaz de promover uma leitura ampla do Direito, em ordem a solucionar de modo eficaz o problema apresentado pelo caso concreto.
[22] O Ministério Público dispõe, por exemplo, da Ação Civil Pública, regulada pela Lei n.º 7.347/85, e da Ação de Improbidade, regulada pela Lei n.º 8.429/92, as quais tutelam, respectivamente, direitos difusos e coletivos de um modo geral e a probidade administrativa.