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Da incompatibilidade entre Democracia e cláusulas pétreas.

Submissão da "geração dos vivos" ao Direito da "geração dos mortos"

13/11/2014 às 10:22
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Busca-se, neste estudo, analisar os conceitos de "democracia" e de "cláusulas pétreas", verificando-se os pontos de colisão entre ambos e apontando-se o perigo das referidas normas de eternidade.

Introdução

O nazismo fez emergir, em toda a humanidade, o receio pela continuação do mal promovido por esta forma de governar. Garantias inerentes à dignidade humana foram contempladas com tamanha proteção pelas normas legais, ao ponto de, posteriormente, constituírem o cerne material de inúmeras Cartas Magnas. Como corolário disto, tais dispositivos constitucionais tornaram-se eternos por força do Poder Constituinte originário.

O presente trabalho tem por escopo questionar a possibilidade de essa petrificação normativa tolher a efetivação da democracia, que também é reputada como princípio norteador de uma Constituição. Objetiva-se, também, apresentar resultados não desejáveis que a inserção de cláusulas imodificáveis possa trazer para o sistema constitucional. Mais precisamente, convém a indagação: essa forte redoma formal acarreta violação à supremacia da vontade majoritária? Adite-se: tal proteção constitucional é suficiente para conter a vontade do povo, quando se clama por mudanças normativas?

Dessa maneira, autores como Robert Alexy, Luis Pietro Sanchís, Ronald Dworkin, bem como os brasileiros Paulo Bonavides, Dalmo de Abreu Dallari, Joaquim Barbosa, dentre outros, foram invocados na tentativa de se formar uma intelecção sólida sobre o tema. Neste diapasão, denotamos não só pela incompatibilidade entre as cláusulas de intangibilidade e a democracia, mas pelo objetivo inócuo deste instituto normativo, que não consegue, por si só, manter intactos determinados princípios constitucionais.

Para expor tal percepção sobre o assunto, este breve artigo foi dividido em quatro partes. Na primeira, examinar-se-á a essência da democracia, a qual sofreu e ainda sofre contínuas distorções. Por isso, para este modelo de governo, optamos por uma semântica que parece lhe ser íntima, pois ligada precipuamente à vontade do povo. Na segunda parte, analisar-se-á a natureza das cláusulas pétreas, que, como toda norma constitucional, gozam de superioridade formal em relação às normas infraconstitucionais, porém, hierarquicamente, estão em pé de igualdade com os demais dispositivos da Constituição. Não obstante, será apresentado, sobretudo, o caráter imodificável deste tipo normativo. Na terceira seção, será explanada a impossibilidade de sobreposição dos dois conceitos referidos (democracia e cláusulas pétreas), evidenciando principalmente a privação do poder deliberativo da sociedade, somada a não realizável aliança da evolução social com tais cláusulas de intangibilidade. Por derradeiro, na parte que finaliza o artigo, arriscaremos a ilação de que existe outro meio que, além de conciliar democracia e direitos fundamentais, afasta o possível receio das minorias em relação ao arbítrio do poder majoritário, sem prejuízo das demonstrações acerca das perigosas conseqüências que as cláusulas eternas podem acarretar.

Nesta seção preliminar, foi delimitado o objeto de estudo, bem como o objetivo deste artigo. A seguir, a primeira parte do corpo textual.     


1. Natureza da Democracia

Na Grécia antiga, a democracia era compreendida como um modelo político em que todos os capazes politicamente gozavam de igualitarismo político, isto é, todos poderiam participar da política em doses de igual intensidade.

A seu modo, Nitti, citado por Paulo Bonavides (2000, p. 350-351), considerava três características fundamentais àquele modelo antigo, quais sejam a isonomia, a isotimia e a isagoria.  Nesta ordem, (i) a igualdade perante a lei, (ii) o livre acesso a cargos públicos para todos os cidadãos e (iii) a igualdade reconhecida a todos de falar em assembléias populares e de debater publicamente os negócios do governo.

Portanto, a famosa perspectiva de que Atenas era democrática porque se decidia os assuntos da pólis em praça pública é equivocada, uma vez que a democracia ateniense estava condicionada, não à decisão da maioria, mas ao já aludido igualitarismo político.

No entanto, longe de tentarmos precisar uma definição exata, desde a modernidade, ao termo “democracia” é atribuído um cunho quantitativo. Não é outra a conclusão do também citado por Bonavides (2000, p. 345), Marnoco e Sousa, para o qual o número, além da capacidade, constitui “a fórmula mais racional e soberana de governo democrático para a sociedade humana”.  

Embora ainda muito aludida, tal concepção, que reduz a democracia a um sistema no qual as decisões são tomadas por maioria, sofre ácidas investidas teóricas, cujas perspectivas defendem que há certas condições a serem preservadas, a fim de que as decisões majoritárias se revelem democráticas. Por exemplo, em sintonia com o conceito de democracia grega apresentado por Nitti, Robert Dahl (2001, p. 106) acredita que esta forma de governar exige (i) funcionários eleitos, (ii) eleições livres justas e freqüentes, (iii) liberdade de expressão, (iv) fontes diversificadas de informação, (v) autonomia para as associações e (vi) cidadania inclusiva.

De outro modo, o professor Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 56), ao tratar das transformações do Estado do XIX ao XX, assinala três pontos fundamentais que o norteiam, como exigências da democracia, quais sejam (i) a supremacia da vontade popular, (ii) a preservação da liberdade e (iii) a igualdade de direitos. Todavia, segundo o doutrinador brasileiro, apesar de imprescindíveis a esta maneira de governar, as duas últimas características resultam apenas como expressão da primeira.  São suas estas palavras:

A preocupação primordial foi sempre a participação do povo na organização do Estado, na formação e na atuação do governo, por se considerar implícito que o povo, expressando livremente sua vontade soberana, saberá resguardar a liberdade e a igualdade. (1998, p. 56)

  Diante de intermináveis definições que ora se encontram, ora se desencontram, e por não ser pretensão deste trabalho apontar com exatidão uma destas, é suficiente e adequado ao nosso objetivo entender o pensamento do autor supracitado como expressão máxima do sistema democrático brasileiro. Nesta seara, o vocábulo “democracia” será empregado aqui como o respeito à supremacia da vontade do povo, exteriorizada por sua participação na vida pública.

  Superado este ponto, passa-se ao exame da essência das cláusulas de eternidade.


2. Natureza das cláusulas pétreas

O ponto formal do constitucionalismo moderno é fixado na ideia de “supremacia constitucional”. Daí decorre a principal característica solene de uma Constituição: nela, outras normas devem encontrar fundamento de validade. Dessa maneira, normas infraconstitucionais não conseguem existir dentro de um ordenamento jurídico, quando se verifica incompatibilidade, material ou formal, com o texto da Lei Máxima.

Neste particular, é pacífico o entendimento da doutrina, pois não há controversas quanto ao gozo de hierarquia superior das normas constitucionais dentro do sistema jurídico que adota a rigidez constitucional. Este, para Hans Kelsen, seria uma pirâmide, onde todos seus pontos seriam conectados verticalmente, de cima para baixo. Neste modelo, a Constituição se situaria no topo piramidal, irradiando seus mandamentos para o resto do ordenamento jurídico.

Mais uma vez, vale lembrar que, primordialmente fruto do trabalho do Poder Constituinte originário, a Constituição constrói condições de existência aos futuros dispositivos legais. Por isso, a fim de abraçar todo o sistema, o produto do constituinte fornece um arcabouço de normas e princípios genéricos, que, geralmente, necessitam de preenchimento posterior pelas normas infraconstitucionais.

Em conclusão lógica, as cláusulas pétreas, pela presença na Lei Maior, localizam-se, também, no ápice do sistema constitucional. E mais: tendem a maximizar a generalidade expressa deste diploma, já que assenta princípios materialmente fundamentais. No Brasil, por exemplo, estas normas consagram a intangibilidade do modelo de Estado, bem como meios que protegem a democracia e os direitos fundamentais. Este constitui o núcleo material intocável de um Estado Democrático de Direito.

Insta salientar que estas cláusulas de eternidade são intrínsecas ao próprio sistema e não podem, de forma alguma, ser abolidas, sob pena da ruína do próprio ordenamento jurídico. Tal caractere distingue a natureza destas normas das demais normas constitucionais, haja vista que estas últimas podem ser suprimidas ou extintas, por meio do rito especial de emenda constitucional.

Neste desiderato, é válida a indagação: já que as cláusulas imodificáveis possuem máximo grau de proteção, ao contrário dos outros dispositivos do texto constitucional, dispõem de superioridade formal em relação a eles? Pode uma decisão de um tribunal constitucional declarar a inconstitucionalidade de uma norma constitucional, fundada na supremacia das cláusulas pétreas?

Neste sentido, decidiu nossa Máxima Corte na ADI n.º 815/DF, que visava à declaração de inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 45 da Constituição Federal. Tais dispositivos fixavam o número máximo e mínimo de deputados por Estado e Território, sendo esta a razão para o impetrante, o ainda Governador do estado do Rio Grande do Sul, alegar incompatibilidade com o texto fundamental que consagra o igual valor do voto, como dispõe o art. 14, caput, do referido diploma normativo. Segue a decisão do então Ministro- relator, Moreira Alves:

Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas na sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte Originário, e não abarcando normas cuja observância se imponha ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas.

É lúcida a conclusão, portanto, de que as cláusulas pétreas não possuem hierarquia superior às demais normas constitucionais. Destarte, aquelas não podem servir de fundamento à inconstitucionalidade destas, uma vez considerada a originalidade de ambas. Sem embargo, este tipo de cláusula, como também os outros dispositivos da Constituição, pode embasar apenas a inconstitucionalidade das emendas constitucionais.

Entretanto, por possuírem um núcleo reputado pelo Poder Constituinte originário como intangível, que, segundo tal poder, protege um minus existencial do Estado e do indivíduo, as normas petrificadas foram assentadas permanentemente no texto constitucional. Por isso, limitam o poder constituinte reformador.

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Nesta vereda, importa indagar especialmente se esta forte proteção formal resulta em algum risco à democracia do Brasil e se tal redoma basta para limitar futuras deliberações.


3. As cláusulas pétreas são antidemocráticas

Historicamente, a inclusão de cláusulas imutáveis em textos constitucionais resultou do receio pela volta do regime que antecedeu a confecção da Lei Fundamental. Em geral, tais sistemas políticos eram autoritários e faziam do Estado não um instrumento à satisfação das faculdades individuais, mas, ao contrário, uma finalidade, que utilizava, sem reservas, as pessoas como meios. São exemplos disso as Cartas Magnas da Alemanha pós-nazista e a brasileira pós-ditadura, que, temerosas pelo retorno das atrocidades contra o homem, firmaram os direitos individuais em seus textos definitivamente.

De modo distinto, a história também mostra que países com o tecido social firme e homogêneo não necessitam de dispositivos legais imutáveis, haja vista que as regras de sociabilidade gozam de relativa estabilidade consensual, o que afasta o medo das minorias em relação às decisões majoritárias. A título de exemplo, podem ser citadas Inglaterra, Israel, Nova Zelândia e Islândia, que, sequer, possuem uma Constituição rígida.

Nesta seara, a proteção aos direitos fundamentais, longe de qualquer dúvida, é necessária à realização do processo constitucional. Entretanto, a fossilização de tais direitos, sob a fórmula das cláusulas pétreas, impede o exercício pleno da democracia. No Brasil, isto ocorre notadamente pelo fato do congelamento destas normas legais ser inconciliável com o pluralismo e as desigualdades sociais, que demandam deliberações contínuas sobre assuntos importantes da vida em sociedade. Não é outra a intelecção do Ministro da nossa Corte Suprema, Joaquim Barbosa:

Com a devida vênia daqueles que têm outro ponto de vista, eu sempre vi com certa desconfiança a aplicação irrefletida da teoria das cláusulas pétreas em uma sociedade com as características da nossa, que se singulariza pela desigualdade e pelas iniqüidades de toda sorte.

 Em marcha ao seu voto, na ADI n.º 3105/DF, o ex-Ministro do STF afirma que a adoção das cláusulas de eternidade em um país cujas convicções se conflitam de pessoa a pessoa, como o Brasil, restaria, como corolário não desejado, em impedimento da realização das profundas transformações sociais, previstas no art. 3º, incisos III e IV, da Constituição Cidadã.

Neste desiderato, chega-se ao ponto-chave deste trabalho: as cláusulas pétreas retiram o poder de deliberação do povo sobre determinados temas, que como quaisquer outros, admitem o dissenso. Por tal razão, são imprescindíveis novas discussões para firmar novo pacto social.

Portanto, repise-se: esta limitação ao Poder Constituinte reformador limita também a efetivação da democracia, expressada através da supremacia da vontade popular. Como consequência direta, resta ainda aludir ao impedimento das adaptações e correções sociais às novas realidades. Para enrijecer esta ilação, recorre-se novamente às esclarecedoras palavras de Joaquim Barbosa:

Essa teoria [das cláusulas pétreas] é antidemocrática porque, em última análise, visa a impedir que o povo, por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos, promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias à eliminação paulatina das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos.

Ora, é certo que as sociedades modernas continuam em mutação, em metamorfose. É, pois, um contrassenso estabelecer normas que não acompanhem o desenrolar líquido deste progresso social, uma vez que a função precípua do Direito é regular a vida em sociedade, a qual avança como um “rio violento”.

Nesta vereda, quando se opta pela adição de cláusulas eternas no texto constitucional, tenta-se atrelar as opiniões atuais às passadas, as quais foram tomadas em um contexto, por óbvio, distinto.

De acordo com Luis Pietro Sanchís (2003, p. 140), que cita o Projeto de Declaração de Direitos Fundamentais, Civis e Políticos do Homem de 1793, um povo tem sempre o direito de revisar, de reformar e de modificar sua Constituição. Para ele, nenhuma geração tem o direito de submeter às gerações futuras as suas próprias leis.

Insta reiterar a ideia defendida acima com os argumentos de Robert Alexy (2003, p. 38), para quem o viés antidemocrático dos direitos fundamentais está ligado à impossibilidade de alguns assuntos serem objetos de decisão no plano deliberativo das maiorias, resultando na desconfiança do próprio sistema democrático.


Considerações finais

Não há grande divergência quanto à afirmação de que os direitos fundamentais constituem, materialmente, a “coluna vertebral” do Estado Constitucional, haja vista que este, teoricamente, revela-se como um instrumento a realizar, na maior medida possível, os direitos dos indivíduos.

Acentuadamente, como já demonstrado, alguns autores chegam a considerar determinados direitos fundamentais como condições ao exercício da democracia. De modo incisivo, Hans Peter Schneider, citado pelo professor-doutor da UFPR Paulo Ricardo Schier, assinala que “a democracia pressupõe os direitos fundamentais da mesma forma que, ao contrário, os direitos fundamentais só podem adquirir sua plena efetividade em condições democráticas”.

No Brasil, tais direitos fundamentais estão abrigados em uma constituição escrita e rígida. Esta rigidez, expressa no art. 60 CF/88, estabelece pressupostos especiais para alteração do texto normativo. Contudo, repita-se que o referido quilate de direito não pode ser objeto de deliberação que vise à sua abolição.

Destarte, os defensores das cláusulas indeléveis alegam que o grande mérito destas normas é impedir a violação de princípios essenciais ao funcionamento do Estado Democrático de Direito, o qual assegura, em primeiro plano, os direitos e garantias individuais. Assim, de maneira lógica, é possível que alguém conclua: se os direitos fundamentais são percebidos como cerne material de um Estado Constitucional, quanto maior for a proteção destes direitos, maior será o relevo democrático, já que reforçado o resguardo à constituição, que é, para Dworkin (1999, p. 476), “mãe e guardiã da democracia”. Para tanto, faz-se mister a construção de um engenhoso mecanismo que dificulte a penetração no âmago dos direitos escudados por estas cláusulas.

No entanto, o que se estar a questionar não é a imprescindibilidade desta guisa de direitos, nem tampouco sua relativa supremacia formal, mas, sim, a sua “absolutização”, que se perfaz com o engessamento do texto constitucional, sob o molde das cláusulas pétreas. Tal imobilização não se justifica (i) pela pseudoaparência de que o tema está e estará para sempre pacificado, não observando, portanto, a mutação quase diária dos valores sociais e (ii) pela privação do poder deliberativo não somente da maioria, mas de toda a sociedade.

Ora, é impossível que se conceba efetividade ao objetivo das cláusulas de eternidade, haja vista a impossibilidade de estancar a evolução social, que resulta em alterações no comportamento e na maneira de pensar dos indivíduos. Logo, quando este tipo de norma não mais realizar os desejos do povo, de algum modo deverá sucumbir.

Mais brandamente, tais dispositivos podem ser adequados às novas exigências sociais através do instituto da “mutação constitucional”, a qual esteia materialmente a constituição, incorporando novas semânticas aos dispositivos.

Todavia, não seria perspicaz pretender que os juízes conseguissem adaptar as normas constitucionais à realidade sempre que a sociedade demandasse, uma vez que o progresso das relações humanas é constante, contrapondo-se, pois, a um texto estanque, parado.

Neste diapasão, quando a mutação constitucional restar ineficaz, a não satisfação do povo em relação às normas petrificadas acarretará a ruptura do sistema, posto serem estas cláusulas seu ponto fixo. De igual maneira, conclui Rodrigo Brandão (2008, p. 21-22), para quem “a existência de limites materiais ao poder de reforma não impedirão a mudança caso esta seja a vontade efetiva do povo, bem como podem fomentar a ruptura institucional”.

Portanto, decorrido determinado lapso temporal, a opção por enrijecer permanentemente um dispositivo constitucional resulta em conseqüências ainda maiores do que a incompatibilidade com a democracia. Em última análise, faz ruir todo o sistema institucional, devido à radicalização das inevitáveis divergências entre o estabelecido pelas cláusulas eternas e a vigente vontade popular.

Neste ponto repousa grande perigo, pois, da atividade do Poder Constituinte originário, podem resultar decisões de qualquer sorte. Hipoteticamente, isto é dizer que, a busca fervorosa pela adoção da pena de morte poderia ser um pretexto para a fixação, em uma nova constituição, de novos princípios para a Administração Pública ou para o sistema tributário, que nada tem a ver com o dissenso que deu causa a referida ruptura.

Deste modo, é salutar entender que não se pode deixar de submeter temas centrais da vida institucional de um país a procedimentos de adequação à realidade, ainda que estes meios de reforma sejam bem mais dificultosos do que os já conhecidos. Novamente, isto não significa dizer que, por tal motivo, haverá supremacia formal destes dispositivos em relação aos demais da Constituição, mas tão-somente em relação às normas que lhe tomaram como fundamento. 

Insta ressalvar que esta existência de mecanismos mais rigorosos de modificação ou supressão do texto constitucional é suficiente para anular uma possível violação dos direitos fundamentais por maiorias simples. Destarte, torna-se desnecessária a “eternização” de cláusulas legais para afastar o medo das minorias, já que, para tanto, o meio citado é capaz de fazê-lo.

Pelas razões expostas neste trabalho, é de se arriscar a conclusão de que as cláusulas pétreas percorrem três fases dentro do ínterim constitucional: (i) o nascimento, com o fervoroso desejo popular protegido pelo o escudo da eternidade contra o desprezo por direitos imanentes do homem e da sociedade em geral (ii) a tolerância, na qual não mais se verifica a homogeneidade intelectiva sobre determinado tema consagrado dentre as normas indeléveis, o que, paulatinamente, resulta na indesejada (iii) sucumbência não só destas normas, mas de toda a instituição constitucional, posto que, para alterá-las, deve-se inaugurar outro “momento constitucional”. Tal ruptura, reitere-se, é demasiadamente perigosa devido aos motivos já destacados.

Esse modo formal de norma jurídica, portanto, sobeja-se preterível em favor da democracia, efetivada pela reverência à atual vontade popular, aditada à prolongação da vida constitucional. O que há para se eternizar é a própria constituição, através de possibilidades de reforma e adequação às progressivas relações sociais, e não apenas cláusulas, que, inocentemente, almejam à impermeabilidade de determinados temas.    


Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. Los Derechos Fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: Carbonell, Miguel (org.) Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, 10ª ed. atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

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DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Tradução: Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Disponível em: <http://www.saudebucalcoletiva.unb.br/ensino/introducao_a_ciencia_politica/23_Dalh_Sobre_a_Democracia.pdf>

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Sobre o autor
Caio Vinícius Sousa e Souza

Estudante de Direito da Universidade Federal do Piauí. Estagiário de Direito da 4ª Vara Cível de Timon/MA. Ex-estagiário de direito do Ministério Público do Trabalho (22ª Região) e da Defensoria Pública do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Caio Vinícius Sousa. Da incompatibilidade entre Democracia e cláusulas pétreas.: Submissão da "geração dos vivos" ao Direito da "geração dos mortos". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4152, 13 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33775. Acesso em: 22 dez. 2024.

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