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A cidadania brasileira em tempos de globalização.

Repensando o federalismo

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01/11/2002 às 00:00
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INTRODUÇÃO

Vivemos em um período de grandes e profundas transformações, resultado de um fenômeno que alterou substancialmente o nosso modo de analisar o mundo, o qual possibilitou, graças essencialmente à sua faceta tecnológica, além de um incremento gigantesco das transações comerciais e financeiras entre todos os atores do cenário geopolítico internacional, via uma feroz desregulamentação da economia mundial, uma íntima conexão entre gramáticas sociais localizadas e práticas de cunho global, sendo derrubadas as distâncias, os marcos espaço-temporais, permitindo que um número crescente de indivíduos tomem consciência de eventos que, até então, eles não tinham o menor conhecimento.

Esse processo, não obstante o seu nítido aspecto polissêmico, revela-se dominado e moldado por uma linguagem acentuadamente econômica e financeira, a qual modificou substancialmente a figura tradicional do Estado-Nação, pois o mesmo encontra-se agora submetido a uma ordem internacional obcecada por produtividade e alta lucratividade, onde impera a força das grandes corporações empresariais, na qual antigas fronteiras ou barreiras protecionistas são absorvidas e superadas por um suposto mercado livre, questionando, assim, o próprio princípio da soberania. Esse citado fenômeno é popularmente denominado como globalização.

Os efeitos de tal globalização extrapola em muito o plano mercadológico, já que têm fomentado um pensamento de cunho unificador, um discurso único que nega as diferenças e alteridade da modernidade, colocando em segundo plano a participação consciente das pessoas no interior das suas sociedades, pois os mesmos são vistos, nessa perspectiva, como consumidores, e não cidadãos ativos, fato este que atinge, diretamente, os direitos da cidadania em um Estado Democrático de Direito, aprofundando a exclusão social, que torna-se, desse modo, global.

"A força dos conglomerados transnacionais, o surgimento de esferas de decisão política e econômica em torno das diversas pessoas jurídicas de direito internacional público, grupos de Estados ligados por interesses comuns e consórcios regionais, além da hegemonia do pensamento econômico liberal, vêm esvaziando as democracias e conseqüentemente retirando poder de seus cidadãos." (PIOVESAN, 2002: 450)

Daí, que os questionamentos e análises que pretendemos desenvolver vinculam-se, essencialmente, com a seguinte colocação interrogativa: em um mundo globalizado, onde se busca uma unidade sedimentada no mercado, onde as especificidades não são consideradas, que se desregulamenta mais e se governa menos, e, principalmente, onde os sujeitos de direito não são reconhecidos como pólos ativos nas decisões, é ainda possível reconstruir e organizar uma cidadania plena e participativa?

Eis aí, ainda que sucintamente, o pano de fundo de nosso trabalho, o qual pretende demonstrar que o processo de globalização, em sua versão economicista, não é a única via possível para uma integração a nível mundial, existindo outros trajetos, mais transparentes, abertos e plurais, que podem potencializar os ganhos que a alta tecnologia tem produzido, em prol de uma cidadania participativa e democrática, onde o social não é tratado como algo residual, secundário, o que coloca como objetivo central da presente monografia revelar que, sem discutirmos o nosso sistema federativo, visando proporcionar mais força decisória aos municípios, entidades de classe, associações de bairro e outras estruturas ainda menores de integração social local, alcançando o próprio indivíduo em seus relacionamentos intersubjetivos, não há que se pensar em uma positiva inserção do Estado brasileiro nessa competitiva arena global, haja vista que o cidadão global tem como pressuposto necessário a efetivação dos direitos da cidadania no âmbito local.

Para podermos responder ao supra citado questionamento e a outras indagações formuladas no decorrer do trabalho em tela, é que estruturamos a monografia em duas partes.

Inicialmente buscamos demonstrar que o processo de globalização não é algo totalmente novo e de significado único, como as forças econômicas predominantes fazem crer, mas que o mesmo se faz sentir em todos os campos do agir humano, colocando em xeque a própria noção de uma cidadania participativa, consubstanciada esta, em uma provável e desejável autolegislação.

Em um segundo momento, desenvolveremos nossa posição de que uma provável saída para uma inserção mais justa da sociedade brasileira na aldeia global é criarmos canais de comunicação e de política deliberativa o mais abertos possíveis, através de uma descentralização democrática de nosso federalismo, os quais, em tese, permitirão que todos os cidadãos sintam-se responsáveis pelas decisões tomadas, pois todos os temas e assuntos, até mesmo os mais específicos, terão a possibilidade de serem discutidos e problematizados irrestritamente.

Ressalte-se, finalmente, que todas essas observações serão pautadas pela interdisciplinariedade, já que não existem, na maioria das vezes, mais conhecimentos que possam ser construídos sem um diálogo entre as diversas áreas do saber, pois na modernidade predomina a complexidade e a pluralidade de formas de vida, sendo assim, essas mesmas análises serão trabalhadas todo o tempo sob a ótica do paradigma do Estado Democrático de Direito, por entendermos ser este o mais adequado instrumental para lidarmos com todos os questionamentos que aqui serão abordados.


PARTE I – GLOBALIZAÇÃO E CIDADANIA: COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

Globalização é um dos conceitos em voga na atualidade, sendo seu significado na maioria das vezes reduzido ao aspecto econômico-financeiro, fato esse que tem contribuído para ocultar o caráter multidimensional que tal termo apresenta. Essa redução temática não permite que visualizemos, corretamente, inúmeras e profundas transformações que esse fenômeno tem ocasionado em todas as áreas da nossa vida social, ou seja, sem repudiarmos esse discurso único, de lugares-comuns, naturalizado e acrítico, que procura restringir o dinâmico processo da globalização somente ao seu âmbito economicista, será extremamente complicado lidarmos com as conseqüências, incertezas e riscos que essa mesma globalização tem provocado na esfera dos direitos da cidadania.

"O fato de ser uma palavra "da moda" fez com que ela, mesmo tendo surgido para supostamente apontar algo "novo", esteja já desgastada pelo uso excessivo e pouco rigoroso que dela se tem feito. Hoje já há um certo cansaço da idéia de globalização. Na verdade, esse "cansaço" da expressão reflete o fato de que globalização é um termo vazio de novidade, na medida em que o fenômeno a que se refere, não é, de fato, novo."

(NEUENSCHEWANDER MAGALHÃES, 2000: 256) [1]

Ao iniciarmos nossa análise sobre a globalização e seus reflexos na construção da cidadania brasileira, devemos, primeiramente, esclarecer o seu aspecto econômico, pois, como dito anteriormente, predomina uma visão mercadológica desse "novo" fenômeno. Essa faceta da globalização afirma que tal conceito reflete um intricado processo de relativização das fronteiras e soberanias nacionais, com a queda de várias das tradicionais barreiras e tarifas protecionistas, além de uma ampla e irrestrita abertura do comércio internacional, possibilitando que o capital se movimente, livremente e sem quase nenhum controle por parte dos Estados Nacionais e suas legislações internas, em uma escala planetária.

Na perspectiva daqueles que defendem essa posição econômica, a intensificação maciça das trocas comerciais e financeiras em um âmbito global, baseada nessa completa desregulamentação e em uma rede de informações que redefiniu a categoria de espaço-tempo, onde o próximo e o distante estão agora quase unidos, permitiria que o próprio mercado equacionasse os problemas existentes em torno da distribuição de riquezas, pois o aumento da circulação de mercadorias faria com que todos os envolvidos nesse desenvolvimento das transações comerciais acabassem sendo beneficiados. [2]

Essa apologia de uma democracia de mercado global, não consegue compreender, por ser excessivamente restrita, que o "desenvolvimento entendido como simples crescimento econômico nunca foi de per si garantia de direitos, nem civis e políticos, nem econômicos e sociais." (PIOVESAN, 2002: 81)

Ao fato de não ser o crescimento econômico requisito único e suficiente para a conquista e efetivação de direitos, acrescente-se, a título de esclarecimento, que em um país que se inseriu tardiamente no capitalismo industrial, que está na periferia da economia mundial, dependente de recursos externos, como é o caso brasileiro, essa era global é ainda mais trágica, pois, além de provocar um agravamento do alarmante desequilíbrio social encontrado nas estruturas sociais brasileiras, reduz sensivelmente o campo de participação efetiva do cidadão, já que o modo como se tem dado a inserção do Brasil nesse mercado internacional não tem sido pautado por uma prévia e ampla discussão com todos os setores e camadas da nossa sociedade afetados pelos resultados da abertura da nossa economia ao exterior.

Com efeito, os impactos sociais da globalização econômica no âmbito brasileiro têm significado, primordialmente, redução de despesas públicas destinadas a setores como saúde e previdência, flexibilização de direitos trabalhistas, desemprego estrutural e tecnológico, aumentando o fosso que separa ricos e pobres, gerando obviamente, mais exclusão, pois surgem novas desigualdades ao lado daquelas já existentes. [3]

Cabe aqui fazer um pequeno parênteses, para ressaltar que a globalização só se viabilizou em virtude de um aumento, sem precedentes, da técnica e da informação, o que, por si só, não é negativo, na medida em que as necessidades básicas do homem podem ser melhor atendidas, aumentando - se, dessa forma, a disposição e o tempo do indivíduo para dedicar-se a si mesmo e a seu país, sua coletividade. [4]

Nesse sentido, podemos verificar que o que é prejudicial é uma estrutura político-ideológica deturpada, fundamentada em normatizações excessivamente particularistas, de utilização desse considerável avanço tecnológico, bem como a conseqüente reorganização e reacomodação das interações acerca do exercício do poder entre os Estados, isto é, entre os países centrais e os denominados países periféricos, tudo isso configurando o que ousaríamos definir de uma linguagem racionalmente irracional.

Em síntese, essa linguagem do mercado global, que dá os contornos dessa mentalidade dominante, que a todos procura alcançar, em sua característica mais perversa, faz crer que qualquer tipo de manifestação contrária é inútil e contraproducente, não havendo alternativas, buscando erigir uma total uniformização através de um discurso único, no qual não existe uma responsabilidade pelo outro, pois este é encarado como um competidor em potencial, um inimigo a ser derrotado, ou seja, globalização, nessa vertente econômica, designa uma "socialização às cegas, visto ter conseguido de fato englobar o mundo." (THÉLÉNE, 1999: 16)

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Daí que, se nos circunscrevêssemos apenas a esse lado econômico e comercial, perderíamos de vista o foco central do tema, qual seja: esse fenômeno da globalização introduziu uma série nova de variáveis no cenário das relações internacionais, com reflexos profundos também nas nossas esferas internas.

Nesse sentido, vale salientar que o assunto em questão admite uma série inesgotável de linhas de raciocínio, o que denota o caráter interdisciplinar da matéria. Assim, sociólogos, cientistas políticos, economistas, juristas e demais estudiosos enquadram o fenômeno da globalização, bem como seus efeitos, a partir de prismas diferentes e ao mesmo tempo específicos, objetivando, dessa forma, escapar dos estereótipos ingênuos existentes, alguns dos quais nos levam a supor e acreditar que somente existe uma única e exclusiva espécie de globalização, à qual temos de nos submeter, pois inevitável.

Recentes transformações resultantes dessa internacionalização da economia mundial provocaram um deslocamento do pêndulo do poder decisório para o exterior, para organismos internacionais, intérpretes dos anseios dos chamados Estados centrais, esvaziando a importância das políticas locais, o que tem provocado repercussões danosas no nosso já injusto quadro societário, pois muitas das decisões que vêm sendo tomadas não levam em consideração, por exemplo, as especificidades brasileiras, colocando em segundo plano projetos de interesse local.

Existem, portanto, outras facetas da globalização que estão sendo esquecidas, ou ofuscadas pelo domínio de um ponto de vista concentrado, em demasia, em uma ótica do mercado. Por exemplo, o processo de globalização, como dito acima, em sua dimensão político-jurídica, têm modificado, significativamente, os mecanismos de exercício e circulação do poder, já que, tanto externamente quanto internamente, o famoso princípio da soberania tem sido criticado, questionado, chegando alguns teóricos e estudiosos a afirmarem, a grosso modo, que o mesmo não passaria, no presente, de um mero símbolo, mesmo que com uma carga valorativa ainda muito representativa para a maior parte das pessoas. [5]

Quando a análise parte de uma perspectiva mais dogmática da soberania externa ou política, entendida essa como o poder que os Estados possuem de determinar suas próprias políticas em relação aos demais atores internacionais, podemos afirmar que está havendo uma verdadeira transferência de soberania (política e econômica) dos países periféricos para entidades ou instituições, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio, controladas pelos ditos Estados mais capacitados, técnica e economicamente, ou suas enormes corporações empresariais, visando impedir qualquer regulação interna dos países menos desenvolvidos, ou seja, há todo um conjunto de procedimentos que, ao influir no sistema político destes mesmos Estados periféricos, acaba por também atingir o seu aparato jurídico. Em outras palavras, a globalização tem restringido o papel clássico da soberania dos Estados, ainda que, principalmente, dos países do terceiro- mundo, pois tem provocado a perda de poder nacional, corroendo a legitimidade das estruturas decisórias dos mesmos.

Já a soberania interna ou jurídica, tida como o poder que o Estado se utiliza para dar validade e eficácia ao seu ordenamento jurídico, tem sido também caracterizada por modelos procedimentais de exclusão. Não surpreende, portanto, que num cenário globalizado, as relações entre os Estados e, entre estes e seus cidadãos, sejam do padrão periferia/centro.

Desta maneira, podemos assumir que, em ambos os enfoques, o conceito de soberania revela-se por demais defasado perante esse contexto de globalização, já que o mesmo não consegue mais adequar-se aos novos parâmetros normativos impostos por essa mesma globalização, além do fato de que os poderes locais estão, gradativamente, como demonstrado, perdendo ou tendo reduzido a sua capacidade de criar, negociar e decidir a respeito de assuntos de interesse dessas mesmas localidades. [6]

Nessa linha, ensinava o Professor Milton Santos que "como os atores globais eficazes são, em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas realidades nacionais." (SANTOS, 2000: 113)

Tendo em vista essa reconfiguração da distribuição de poder na era global, principalmente num país periférico como o Brasil, podemos dizer que essa visão unicamente econômica, neoliberal, do que seja a globalização tem produzido uma contenção das alterações possíveis, preservando o status quo vigente, já que tem mantido, como já ressaltado, grande parcela dos indivíduos distante das esferas referenciais de seleção e decisão das políticas públicas, tanto a nível externo, quanto interno, o que só faz crescer o déficit de cidadania e a deslegitimação normativa, gerando graves e perturbadoras crises de anomia, como a verificada, atualmente, na Argentina.

Portanto, em razão dessa pouca amplitude e abrangência que um ponto de vista, exclusivamente, econômico-financeiro dá aos questionamentos que gravitam em torno do processo de globalização, negligenciando outras relevantes dimensões e variáveis que o mesmo processo possui, tal como o problema exposto da conformação da cidadania em um ambiente globalizado, é que entendemos ser importante trabalharmos com abordagens que não sejam apenas voltadas para o incremento global das trocas comerciais, já que as conseqüências advindas de tal fenômeno atingem, profundamente, todas as estruturas de nossas sociedades, configurando novos padrões de comportamento social, o que acaba influenciando a formação e participação da cidadania em um Estado Democrático de Direito.

A questão da cidadania na era global torna-se, então, um problema que precisa ser levado em conta quando do estudo da nova ordem internacional. Partindo, ainda que utopicamente, de uma perspectiva sociológica, podemos pensar a globalização como um potencial embrião de uma sociedade mundial, mais solidária, fundamentada em múltiplas e rápidas redes de informações, criando uma linguagem própria em uma sociedade pluralista, isto é, a globalização pode ser extremamente positiva, caso consiga superar essa linguagem do consumo irrealizável, pois o predomínio da técnica, como dissemos e ressaltamos anteriormente, por si só não é algo negativo, já que pode vir a permitir o surgimento de instâncias internacionais críticas de diálogo, desvinculadas, até mesmo, dos ordenamentos estatais e das teias do mercado, contribuindo para uma positiva reconstrução constante da diversidade, reforçando uma cultura de vizinhança e aprofundando a democracia.

"A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa." (GIDDENS, 1991: 69)

Ora, ao traçarmos uma linha de continuidade entre as diversas posições supra elencadas, reunindo e problematizando tanto a vertente economicista mais conservadora, quanto aquelas de caráter sociológico, político e jurídico, verificaremos que nossas sociedades, sociedades de risco, a partir desse domínio hegemônico da tecnologia de informação e de produção, mostram-se cada vez mais complexas e plurais, como resultado de um horizonte infinito de escolhas que a modernidade e sua "racionalidade técnica" têm produzido, fato esse que colocou em xeque o papel tradicional dos Estados-Nação. Essa complexidade nada mais significa do que a intensificação das possibilidades de agir, e a contingencialidade de toda decisão tomada, não sendo mais possível prever todas as conseqüências de uma escolha realizada, o que torna a sociedade global altamente arriscada. Apesar da grande variedade de opções, o que a globalização econômica também traz à tona, da forma como está sendo implementada, é a vinculação da tomada de decisões dos países periféricos a fatores e determinações exógenas, diminuindo assim as alternativas de ação à disposição de tais Estados-Nação.

Estes Estados, assim, não mais conseguem configurar, positivamente, os padrões de cidadania apropriados aos princípios norteadores do paradigma constitucional-democrático, já que estão cada dia mais vinculados a lógicas externas, marcadas por um pensamento pragmático e individualista, o que tem afetado, drasticamente, sua capacidade interna de gerir seu próprio sistema econômico, político e jurídico. Ou seja, o atual aparato jurídico dessas nações menos desenvolvidas não conseguem mais responder aos desafios impostos pela extrema complexidade das relações sócio-institucionais pós-globalização econômica.

Como bem assevera Habermas, "hoje são antes os Estados que se acham incorporados aos mercados e não a economia política às fronteiras estatais." (HABERMAS, 1999: 05)

Essa nova arquitetura do Estado-Nação tem sido muito influenciada e moldada por uma outra conseqüência oriunda desse vertiginoso crescimento tecnológico da modernidade globalizada, que é uma falta completa de parâmetros conceituais fixos para explicar quaisquer dos fenômenos vivenciados no presente, pois os significados de clássicos conceitos, como liberdade, igualdade, soberania, dentre outros, foram demasiadamente relativizados em um época de insegurança e incerteza permanente, onde todos os termos são passíveis de serem questionados. Esta circunstância é inquestionável. Admitirmos e lidarmos com os riscos inerentes dessa moderna e radical globalização, na qual impera um espectro ilimitado de opções para guiar as ações é, em nosso entendimento, a única saída para solucionar, mesmo que transitoriamente, alguns dos problemas que essa mesma modernidade e sua globalização revelaram, haja vista que fomos "lançados num vasto mar aberto, sem cartas de navegação e com todas as bóias de sinalização submersas e mal visíveis..." (BAUMAN, 1999: 94)

É dentro dessa conjuntura complexa que se faz mister repensarmos o que seria realmente uma cidadania democrática, participativa, já que esta, conforme a compreendemos, pressupõe a idéia da autogestão de seu espaço individual, sem que isso signifique egoísmo ou abuso, sendo o meio adequado para possibilitar potenciais divergências e transgressões racionalmente admitidas, isto é, capacidade de ser tratado como igual apesar das diferenças e de se inserir neste mundo globalizado a partir dessas mesmas particularidades. Contudo, o modo como a globalização vem sendo implementada tem traduzido uma redução do espaço de comunicação intersubjetiva dos cidadãos, pois desvaloriza os micro espaços políticos de debates e discussões.

Aqui, já podemos adiantar, ainda que superficialmente, pois pretendemos voltar a essas idéias posteriormente, que só haverá cidadania plena quando as pessoas puderem, consciente e livremente, participar das decisões que afetarão seus próprios destinos, o que transparece a necessidade de valorizar os espaços decisórios e as políticas deliberativas locais, pois esta valorização é, em nossa compreensão, um pressuposto de uma provável cidadania global. [7]

Vemos, por conseqüência, ser necessário redefinirmos a existência em comum, tanto a nível local, quanto global, já que esses dois âmbitos são interdependentes, o que realça a importância de criarmos "canais de informação e intermediação" os mais transparentes possíveis na nossa sociedade, os quais poderão possibilitar o aparecimento de posições mais críticas diante da realidade, podendo resultar em uma genuína conscientização do cidadão.

Cidadão como um indivíduo que vive e pratica cotidianamente a democracia, entendida esta como um projeto sempre inacabado, que necessita constantemente de ser revisto, reconstruído e legitimado, realçando a tentativa de inclusão radical de todos, de modo igualitário, sem significar com isto uma negação das diferenças, das especificidades do outro.

Essa visão de uma cidadania responsável, como uma potencial autodeterminação, em um contexto de intersubjetividade democrática, pressupõe uma mudança do próprio homem, do seu modo atual de vida, de uma recusa ao interesse imediato, aceitando a diversidade, colocando-se contrário a esta ilógica razão predominante que parece desejar abarcar todas as alternativas humanizadoras que porventura sejam propostas.

Além disso, em virtude da pluralidade inerente ao ser humano, o sonho de uma utópica cidadania global, alicerçada em bases locais, não pode nunca significar a imposição de apenas uma espécie de linguagem, ou de uma só forma de vida, pois "os princípios fundamentais ou básicos para uma melhor sociedade, na qual todos possam viver, nem sempre realizam, concretamente, um único tipo de comunidade aceitável para todos, desde que será impossível definir, para todas as pessoas, exclusivo modo de vida e viver." (BARACHO, 1995: 13)

Evidencia-se, então, que em época de globalização, o sentido de cidadania necessita ser reconstruído a partir de uma base não assistencialista, a qual equipara o cidadão a um menor impúbere, como se este necessitasse de um "tutor", que seja oposta a um economicismo desumanizador, reconhecendo a igualdade dos indivíduos enquanto membros plenos, ativos e responsáveis de uma dada sociedade, e ao mesmo tempo valorizando e tematizando o pluralismo existente, os espaços locais mais próximos dos indivíduos e de suas relações intersubjetivas, o que se coadunaria com os fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito.

Essa pretendida constituição de uma nova cidadania só será possível quando o sujeito, tanto na sua esfera privada quanto na pública, sendo ambas entendidas como eqüiprimordiais, tomar consciência de si mesmo e do outro de modo reflexivo, superando o mutismo alienante, a acomodação e o ajustamento, ou seja, o leitmotif dessa cidadania do futuro ainda é a criação e ampliação de espaços públicos não estatais não-coercitivos, os quais possibilitem um agir comunicativo guiado pelo entendimento e respeito recíproco, indo além do mero ato eleitoral em uma democracia representativa como a nossa, tornando os membros de uma comunidade do direito não apenas eleitores, mas cidadãos votantes, já que conscientes dos riscos inerentes em todas as escolhas e decisões que tomarem, assumindo criticamente sua responsabilidade política e social.

Daí o Professor José Alfredo de Oliveira Baracho escrever que:

"A nova versão de cidadania é traduzida pela idéia de uma consciência cidadã no trato com a coisa pública, tanto para a escolha dos dirigentes, como no trabalho social a ser cumprido." (BARACHO, 1995: 104)

É neste ponto que surge, em nossa opinião, uma questão fundamental para entendermos o que é ser cidadão em um mundo globalizado: como esperar que uma pessoa que nem localmente possui ingerência política e poder de decisão possa ser inserida de maneira democrática e não excludente em um cenário internacionalizado?

Refletindo a respeito dessa indagação e de todas as intensas transformações resultantes do processo de globalização, aqui apresentadas, principalmente do seu vetor econômico, sabedores que as mesmas não atingiram apenas as estruturas macroecônomicas, mas também os círculos mais profundos, sociais e individuais, confrontando conceitos e idéias a muito solidificadas, e, fundamentalmente, tendo como pano de fundo as extensas redefinições das consagradas funções e papéis estatais, é que vislumbramos a necessidade de repensarmos, na próxima parte de nosso trabalho, a configuração do vigente federalismo brasileiro, buscando questionar os meios de inserir o cidadão num mundo globalizado e heterogêneo, tentando construir propostas que conciliem os instrumentos de inclusão local como os mecanismos globalizantes, em síntese, a "possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a serem buscadas localmente..." (SANTOS, 2000:113)

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Sobre o autor
Francisco de Castilho Prates

acadêmico de Direito na UFMG, Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRATES, Francisco Castilho. A cidadania brasileira em tempos de globalização.: Repensando o federalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3394. Acesso em: 22 nov. 2024.

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