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A “única resposta correta”, a quadratura do círculo e a razoabilidade da decisão judicial

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21/11/2014 às 10:52
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4. A RAZOABIBILIDADE DA DECISÃO JUDICIAL 

Segundo Fernando Pessoa: “navegar é preciso; viver não é preciso”.

Sem embargo de outras possíveis interpretações da frase acima, pode-se entender que a navegação, no sentido náutico, é precisa; exata. É dizer: baseia-se em instrumentos de precisão espacial, o que permite a localização exata do navegador, além de possibilitar que este possa alcançar seu destino com segurança. A vida, ao contrário, não é precisa. Como afirmava David Hume, ninguém pode assegurar que o sol nascerá amanhã.[30]O que se pode é realizar uma previsão, mais ou menos razoável, da probabilidade disso acontecer, levando-se em conta a experiência acumulada no passado. 

O Direito, por seu turno, que tem por finalidade regular a vida em sociedade, não pode ser exato, pois a vida não o é. Aliado a isso, a interpretação e a aplicação do Direito não se reduzem a mero silogismo lógico-formal, em que a premissa maior seria a lei; a premissa menor, os fatos, enquanto a decisão judicial resultaria da mera justaposição de um sobre o outro. Na realidade, a construção da norma individual e concreta (decisão judicial), não raras vezes, exige de seu intérprete e aplicador uma série de processos mentais, que passam pela investigação exaustiva dos fatos e, na sequência, a seu cotejamento com as normas que compõe o ordenamento jurídico, de modo a formular a solução razoável no caso em pauta. Este processo interpretativo, tanto dos fatos, como do Direito não se realiza de maneira linear, compartimentado e rígido. Ao contrário, há uma série de fatores que interagem simultaneamente entre si, seja de ordem jurídica, seja de ordem extrajurídica, os quais conduzirão à solução encontrada.

Nesse percurso, além da debilidade do sistema processual em reproduzir em juízo em plenitude todos os eventos fáticos e seus detalhes pertinentes, relevantes e úteis à decisão judicial, há uma série de conceitos jurídicos – determinados e não –, que deverão ser interpretados (significados), [31]a partir do contexto em que aconteceram. Isto exige a presença de um “mediador esclarecido”[32]para empreender a passagem da realidade para o texto jurídico e deste para a solução jurídica adequada, sensata e justa que o caso espera. Em uma palavra: solução razoável.                

Neste ponto, deve-se registrar que a interpretação e aplicação do Direito, apesar dos avanços nos estudos sobre inteligência artificial, ainda carece de intervenção humana. É que, muitas vezes, códigos binários próprios de linguagem computacional (“0” e “1”) continuam a ser insuficientes para fornecer soluções sensatas e coerentes – razoáveis – aos casos que são submetidos à análise do Judiciário.[33]

Em simetria com o pensamento de Recasens Siches e Andrei Marmor, antes citados, e com o intuito de comprovar o que aqui se sustenta, basta notar que, se submetido a um computador, um fato que narre a tentativa de subtração para si ou para outrem de cinco barras de chocolate, no valor de R$ 20,00 (vinte reais), seguramente terá como solução a condenação criminal do réu respectivo. Entretanto, quando este mesmo episódio é analisado pelo Supremo Tribunal Federal, o desfecho vem a ser outro. Desfecho, aliás, coerente e consentâneo com os fins e valores jurídico-sociais, presentes no ordenamento e vigentes em sociedade. Isto ocorre porque se reconhece na espécie a incidência do chamado princípio da insignificância, obstando a subsunção mecânica, autômata e algébrica do fato ao disposto no art. 155, “caput”, c/c art. 14, inc. II, ambos do Código Penal. Nesse sentido, a seguinte ementa:

STF. Furto. Princípio da insignificância (bagatela). Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal. Consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material. Tentativa de furto simples de cinco barras de chocolate. “res furtiva” no valor (ínfimo) de R$ 20,00 (equivalente a 4,3% do salário mínimo atualmente em vigor). Doutrina. Considerações em torno da jurisprudência do STF. “Habeas corpus” concedido para absolver o paciente. Intervenção penal mínima do Estado. Considerações do Min. Celso de Mello sobre o tema. CP, art. 155, “caput”. (...) (BRASIL – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC 98.152/2009 – MG - Rel.: Min. Celso de Mello – Julgado em 19/05/2009).  

É bom frisar que não se está aqui a defender um relativismo jurídico absoluto. Está, sim, a defender a interpretação e aplicação do Direito com subjetividade – eis que esta lhe é ínsita –; todavia, isto deve ocorrer do modo mais objetivo possível, o que, s.m.j., afigura-se razoável, eis que passível de concretização.

Mas o que vem a ser razoabilidade? Precisamente: o que vem a ser a razoabilidade na decisão judicial?

Em sentido informal, razoável é palavra ambígua. De modo geral, expressa algo coerente, adequado, congruente, sensato, consentâneo, compatível com a realidade subjacente.[34]Ou seja, algo que faça sentido em determinado tempo e local; que traga implícita a marca da razão, daí por que tem como pressuposto sua inteligibilidade. Afinal, não há como aceitar algo como razoável se não for possível aferir suas contingências, circunstâncias, peculiaridades e justificativas.  

Em sentido jurídico, para alguns a razoabilidade está ligada ao princípio da proporcionalidade, conforme entende Luís Roberto Barroso: “razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”.[35]

O próprio Barroso, no entanto, deixa claro que proporcionalidade e razoabilidade têm origens distintas. Segundo o constitucionalista:

“A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do princípio do devido processo legal substantivo. (...) Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado.”[36]

Humberto Ávila, de sua parte, diverge desta afinidade entre proporcionalidade e razoabilidade. Veja o que ele diz: 

“Com efeito, o postulado da proporcionalidade pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim: o meio leva ao fim. Já na utilização da razoabilidade como exigência de congruência entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre uma qualidade e uma medida adotada: uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela.”[37] 

Sintetizando: na proporcionalidade há uma relação de causalidade, entre meios e fins; na razoabilidade há uma relação de equivalência entre critério e medida.[38]

Tomando esta premissa como linha de partida, pode-se entender que a razoabilidade deve ser aferida a partir da própria decisão; dos motivos nela expostos. Antes de qualquer emissão rotulatória de opiniões sobre alguma decisão judicial, é preciso conhecê-la em suas minúcias e motivações. E, no exame destas, deverá ser aferido se os critérios empregados pelo julgador, tanto fático, como jurídicos foram compatíveis, consentâneos e consistentes de acordo com a Ciência Jurídica para a medida adotada.

Neste sentido, será razoável juridicamente a decisão (medida) que esteja apoiada em bases fornecidas pela Ciência do Direito (critérios). Neste ponto, cabe consignar que, de certo modo, a razoabilidade expressa e materializa a Justiça no caso concreto. Logo, sob este enfoque, as noções de Justiça e Ciência do Direito estariam unidas indissoluvelmente. Afinal, o Direito busca a Justiça, e esta, por sua vez, deve se realizar nos limites do Direito. Contudo, não se pode olvidar que Direito não se restringe a lei, e Justiça é algo mais do que meras convicções pessoais de justo.

Tendo em isto presente, para atingir esse fim – a razoabilidade jurídica da decisão judicial (Justiça) – a Ciência do Direito fornece uma série de parâmetros, standards (critérios), tanto interpretativos, como argumentativos que devem ser observados nas decisões judiciais.

No que alude aos critérios interpretativos – hermenêutica jurídica –, destacam-se contribuições de Ronald Dworkin, Georges Kalinowski, Riccardo Guastini, Emílio Betti, Andrei Marmor, Hans-Georg Gadamer, Giovanni Tarello, Roberto Vernengo, Eros Grau, Inocêncio Mártires Coelho ou Lênio Streck. No âmbito da argumentação jurídica podem ser lembrados Chäim Perelman, Theodor Viehweg, Neil Maccormick, Robert Alexy, Manuel Atienza, Klaus Günther.

Nesta linha de análise, pode ser lembrada, ainda, a lógica e a semiótica jurídicas. A primeira, seja em suas dimensões alética, deôntica ou paraconsistente, ao disponibilizar elementos para se estruturar e organizar as ideias e os argumentos fático-jurídicos. A segunda, com ênfase na linguagem linguística, em seus níveis sintático, semântico e pragmático, viabiliza a significação de fatos e de direito de maneira transparente e apoiada em códigos fortes.

Estes aspectos permitem que se preencha, com rigor, o disposto no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, que exige que toda decisão judicial seja fundamentada.

Como se vê, somente se poderá falar de razoabilidade se a decisão judicial estiver em conformidade com esses critérios fornecidos pela Ciência do Direito. Isto porque são estes que permitem, inclusive, examinar, checar, testar e falsear a decisão judicial (medida), de modo a se averiguar se esta pode ser considerada razoável.

Sem a menor pretensão de esgotar o assunto, o que excede e em muito os limites deste trabalho, mas apenas com o intuito de demonstrar, em linhas gerais, o que foi averbado, pode-se dizer que uma decisão judicial será considerada razoável quando expuser de modo claro e verificável as premissas fáticas e as premissas jurídicas que conduziram ao desfecho do caso. Premissas estas, com o perdão da repetição, que deverão estar em simetria com os critérios científicos aceitos e vigentes na comunidade jurídica.

Em relação às premissas fáticas, a decisão deve apontar, de modo expresso, o fato objeto de subsunção. Deve apontar, além disso, o motivo pelo qual se concluiu por tomar este fato como base para decisão. Significa dizer: o juiz deve indicar quais fatores existentes nos autos o levaram, de acordo com a prova produzida, a concluir pela existência, ou não, de determinada ocorrência fática. Não pode, por exemplo, considerar provado algo que não encontre alicerce probatório nos autos. 

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Ainda no que se refere aos fatos, a avaliação e fixação destes na decisão deve ocorrer  em conformidade com a teoria das provas. Ou seja, não se pode aceitar que uma decisão presuma a má-fé em determinada conduta sem que exista prova firme a respeito, até porque a diretriz teórica acena justamente para o oposto. Como se diz: o ordinário se presume; o extraordinário se prova.

No caso das premissas jurídicas, uma vez estabelecido qual fato deverá ser subsumido, o juiz deverá buscar no Direito, ou melhor, nas fontes do Direito (lei, jurisprudência, doutrina e costumes) qual a solução jurídica adequada (razoável). É importante ressaltar neste ponto que o Direito não se interpreta “em tiras”.[40]Sendo assim, é preciso uma consulta a todas as normas jurídicas (princípios e regras), precedentes jurisprudenciais (estatuidor de sentidos), orientações doutrinárias (densificadora de conteúdos) e, conforme o caso, até recorrer aos costumes para se formular a solução jurídica “in concreto” que aspira à razoabilidade.

Esta solução jurídica deve estar lastreada nos cânones da interpretação jurídica e em um discurso racional possível e aceito pelas bases jurídico-teóricas. Deve se fundar em padrões dotados de universalidade e generalidade, os quais têm função prospectiva, e não “ad hoc”.  Não devem, jamais, se basear em convicções íntimas e casuísticas do que vem a ser o justo.

Com o intuito de evidenciar o que se pretende dizer, retorna-se ao julgado antes transcrito com vistas a demonstrar sua razoabilidade, não obstante, em uma visão apressada, seu desfecho contrarie disposição literal de lei. Nesta empreitada, observa-se, de saída, que referida decisão não se apoiou em convicções íntimas do julgador para estabelecer o que se entendia por insignificância em crimes contra o patrimônio. Muito ao contrário. No corpo da decisão houve referência específica sobre o bem tutelado e a finalidade do dispositivo penal em foco, tudo para saber se realmente se justificava a subsunção do evento ao tipo penal respectivo. Houve, ademais, indicação textual dos pressupostos necessários para a configuração jurídica da insignificância e sua aplicação. Observe o teor do julgado:

“... É importante assinalar, neste ponto, por oportuno, que o princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal - Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, h, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O postulado da insignificância – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano – efetivo ou potencial – causado por comportamento impregnado de significativa lesividade.”

Não bastassem as linhas teóricas que o julgado invocou, a decisão foi expressa na indicação do fato e em dizer o motivo pelo qual se justificava sua inserção nos limites do princípio da insignificância. “Verbis”:

“Vale registrar, Senhores Ministros, em função da própria ‘ratio’ subjacente ao princípio da insignificância, que a tentativa de subtração patrimonial foi praticada, no caso, sem violência física ou moral à vítima e que as ‘res furtiva’, no valor de R$ 20,00 (!!!), equivaliam, à época do delito (outubro/2007), a 5,2% do valor do salário mínimo então vigente (R$ 380,00), correspondendo, atualmente, a 4,3% do salário mínimo em vigor em nosso País.”

Como se percebe, a decisão preencheu os requisitos para ser considerada razoável. Como já dito, num primeiro aporte até poderia indicar uma violação literal de dispositivo legal. No entanto, uma análise detida de seu teor revela exatamente o contrário, vale dizer, sua conformidade com o Direito e com a Justiça. Isto demonstra que a interpretação e a aplicação do Direito é mais complexa do que sugeria Montesquieu e seu juiz “boca da lei”. Comprova que a atividade judicial tem, sim, o compromisso com a Justiça, a qual deve e pode ser empreendida com critérios jurídico-científicos. No caso – repita-se – os Ministros da Suprema Corte Brasileira decidiram a causa com parâmetros universais e generalizantes, aceitos e firmados pela comunidade jurídica. Indicaram, de modo expresso e com base em dado objetivo (salário mínimo), porquê o episódio se amoldava ao princípio da insignificância e, em razão disso, não caracterizava crime, isto sem o menor risco de comprometer a segurança jurídica; ou, de modo extremo, sem revogar tacitamente o crime de furto.  

Ao revés, o julgado afirma-se como sinalizador para nova aplicação do princípio da insignificância em casos futuros, desde que presentes os pressupostos que por ele indicados, o que os Romanos já sabiam de longa data, conforme se extrai do brocardo: “ubi eadem ratio, ubi eadem jus” (“onde houver a mesma razão, haverá o mesmo direito”).  

Em síntese, se, por um lado, o Direito não pode prescindir da busca de uma solução razoável – a qual traz implícita a noção de Justiça –; por outro, não pode dispensar os critérios fornecidos pela Ciência do Direito para atingimento deste ideal. Direito e Ciência, bem como Direito e Justiça devem caminhar juntos, a partir de parâmetros não milimétricos, nem imbuídos de certezas absolutas, mas dotados de razoabilidade; de razoabilidade jurídica.

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Sobre o autor
José Ricardo Alvarez Vianna

Juiz de Direito no Paraná. Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Mestre pela UEL. Professor da Escola da Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, José Ricardo Alvarez. A “única resposta correta”, a quadratura do círculo e a razoabilidade da decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4160, 21 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33981. Acesso em: 29 mar. 2024.

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