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A nova interpretação do Supremo Tribunal Federal acerca do critério miserabilidade no benefício assistencial de prestação continuada

03/02/2016 às 07:18
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A norma que um dia foi compatível com a Constituição, conforme reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal, deixou de sê-lo, principalmente em razão de modificações sociais e econômicas pelas quais passou o Brasil.

O benefício assistencial de prestação continuada tem sido objeto de várias controvérsias em relação aos seus requisitos, sendo certo que a maior delas está ligada ao requisito da miserabilidade.

A jurisprudência tem sido bastante volátil em relação ao tema, ora se inclinando pela validade dos critérios fixados pelo legislador na Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742/93, apegando-se ao Princípio da Separação dos Poderes e à Reserva do Possível, ora declarando que o critério deve ser pautado pelos mandamentos constitucionais, com um enfoque principal no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e do Livre Convencimento Motivado dos juízes.

A controvérsia surgiu logo no início, quando o artigo 20, parágrafo 3°, da Lei Orgânica da Assistência Social foi atacado por uma Ação Direita de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador Geral da República, por suposta incompatibilidade com o artigo 203, V, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Daí veio a primeira manifestação do pleno do Supremo Tribunal Federal sobre a questão da validade do critério estabelecido pelo legislador infraconstitucional acerca do requisito da miserabilidade. A Ação Direita de Inconstitucionalidade número 1.232-1/DF foi proposta em 24 de fevereiro de 1995, menos de dois anos após a entrada em vigor da norma atacada.

O Parquet questionava a validade da norma prevista no parágrafo 3°, do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social, por suposta incompatibilidade com o disposto no artigo 203, inciso V, da Carta Constitucional.

Alegava-se que a norma impugnada, que veio a dar eficácia plena ao texto constitucional, acabou por inviabilizar o direito nela previsto, extrapolando os limites da regulamentação.

Antes de mais nada, se faz necessário trazer a consideração do leitor os termos da Carta Constitucional, que dispõe o seguinte:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(...)

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

É possível observar, portanto, que o próprio constituinte entendeu que caberia ao legislador infraconstitucional a regulamentação da norma.

Ocorre que, segundo alegava-se na petição inicial da ação direita de inconstitucionalidade, o legislador teria extrapolado na regulamentação e, ao fim e ao cabo, inviabilizado o direito previsto na Carta Constitucional.

Pois bem, para uma melhor compreensão da questão, se faz imprescindível trazer a norma impugnada, in verbis:

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário-mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

(...)

§ 3o  Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

A maior crítica era direcionada ao limite de ¼ do salário-mínimo per capta para que se admitisse a impossibilidade de manutenção do individuo idoso ou portador da deficiência. Alegava-se que tal limite era extremamente reduzido, o que acabava por inviabilizar o exercício do direito.

Pois bem, naquela ocasião a Corte Constitucional decidiu que o critério estabelecido pelo legislador pátrio era válido, tendo em vista que o próprio mandamento constitucional remete à lei a fixação dos critérios de garantia de um salário mínimo aos portadores de deficiência física e ao idoso.

Tal entendimento, que validava o critério estabelecido pelo legislador em uma renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, tinha fundamentos jurídicos sólidos e pode ser sintetizado na lição de Ana Paula de Barcellos de que “a limitação de recursos existentes é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado” (BARCELLOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 2002)

Assim, ao estabelecer os critérios para a percepção do benefício de prestação continuada, o legislador pátrio estava acatando um comando da Carta Constitucional e atuando nos limites do razoável para o contexto da época. Isto é, os tidos como miseráveis estavam amparados pelo Estado sem que isso comprometesse a aplicação dos recursos em outras áreas, tendo em vista que os recursos estatais são finitos.

É de se observar que tal decisão, não obstante adotada em ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, com efeitos erga omnes, somente foi cumprida por parte dos Tribunais. Como exemplo disso, é possível mencionar o cancelamento do enunciado 11 da súmula de jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.

Contudo, a grande maioria dos juízes, principalmente os de primeira instância, parece ter ignorado o precedente da Corte Constitucional, continuando a julgar a questão com base naqueles preceitos anteriormente mencionados.

Depois de algum período, tal postura acabou tendo acolhida no Superior Tribunal de Justiça, que passou a entender que outros critérios deveriam ser considerados na análise do requisito ligado à miserabilidade, conforme se extrai do Recurso Especial 1.112.557/MG, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, cujo teor é o seguinte:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1⁄4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. A CF⁄88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742⁄93, alterada pela Lei 9.720⁄98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1⁄4 (um quarto) do salário mínimo.

3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232⁄DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).

4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável.

5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1⁄4 do salário mínimo.

6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.

7. Recurso Especial provido. (REsp. 1.112.557/MG. Terceira Seção. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. J. 28/10/2009).

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Diante das reiteradas decisões contrárias àquela tomada na ADI 1.232-1/DF, a questão acabou retornando ao Supremo Tribunal Federal, que, modificando o entendimento anterior, passou a adotar o entendimento majoritário no sentido de que é possível ampliar os critérios para análise da miserabilidade. Veja-se a conclusão alcançada no julgamento do Recurso Extraordinário número 567.985-3:

Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de se contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE. 567985/MG. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes).

Assim, acabou por prevalecer o entendimento de que o critério objetivo trazido pelo artigo 20, parágrafo 3°, da Lei 8.742/1993 já não mais poderia prevalecer, ante ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

Aqui cabe uma reflexão sobre os motivos pelos quais houve modificação no entendimento jurisprudencial, em especial do Supremo Tribunal Federal.

A primeira decisão, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade número 1.232-1/DF, ocorreu no fim da década de 90, mais precisamente em agosto de 1998. Já o entendimento de que a norma veio a se tornar inconstitucional ocorreu no fim do ano de 2013, aproximadamente 15 anos depois.

Pois bem, não se pode perder de mira que o Brasil passou por grandes mudanças sociais nestes quinze anos, inclusive com o reconhecimento pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação de que o país reduziu a pobreza extrema em 75% no período entre os anos de 2001 e 2012.

Ou seja, é evidente que a situação fática observada na ocasião em que foi editada a norma questionada não mais se sustenta, os parâmetros atualmente são completamente distintos.

Corroborando tal entendimento é possível mencionar que após a fixação do critério equivalente a ¼ do salário mínimo, foram editadas diversas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, como bem asseverou o nobre Ministro Gilmar Mendes.

Portanto, aquela norma que um dia foi compatível com a Carta Constitucional, conforme reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal, deixou de sê-lo, principalmente em razão de modificações sociais e econômicas pelas quais passou o Brasil.

Assim, o que se espera é que a evolução social prossiga e que o benefício aqui debatido se transforme em mero objeto de estudo histórico.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Eduardo Ferreira. A nova interpretação do Supremo Tribunal Federal acerca do critério miserabilidade no benefício assistencial de prestação continuada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4599, 3 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34054. Acesso em: 29 mar. 2024.

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