4. O NASCITURO COMO SUJEITO PASSIVO DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA
Apesar de o Código Tributário Nacional não contemplar, expressamente, o nascituro como sujeito passivo da relação jurídica tributaria, achamos que é perfeitamente admitida a sua condição de contribuinte, tão logo ocorra o fato gerador que desencadeia a relação jurídica tributária.
Como vimos, o nascituro pode receber doação, negócio jurídico este que é fato gerador do imposto previsto no art. 155, I, da Constituição Federal: imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos - ITCMD. Sendo um imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal, é comum a lei destes entes atribuir ao donatário a condição de contribuinte, uma vez que cabe a lei tributária a determinação do sujeito passivo, conforme art. 97, CTN:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. (negritamos)
Em primeiro lugar, ainda que adotada a teoria natalista e o nascituro não ostente a condição de sujeito de direito, faltando-lhe, portanto, a personalidade jurídica, esta não é requisito para a sujeição passiva tributária: a massa falida e o espólio também são entes despersonificados e mesmo assim são sujeitos passivos tributários, conforme a redação dos artigos do CTN abaixo:
Art. 131. São pessoalmente responsáveis:
(...)
III - o espólio, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da abertura da sucessão.
(...)
Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
(...)
V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; (negritamos)
Na hipótese do art. 131, o espólio será responsável pelo tributo deixado pelo falecido, até então contribuinte. Quanto a regra do art. 134, V, temos que diante da impossibilidade do cumprimento da obrigação principal pelo cumprimento da obrigação principal pela massa falida enquanto contribuinte, será responsável tributário o administrador judicial, chamado pela legislação comercial anterior de síndico da massa falida.
Assim, reitera-se que a personalidade jurídica não é requisito para a sujeição passiva tributária: o próprio CTN sinaliza também neste sentido ao determinar, em seu art. 126, III, que “a capacidade tributária passiva independe de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional.” Logo, uma pessoa jurídica de fato pode ser sujeito passivo de obrigação tributária.
Em segundo lugar, o art. 134, I traz a regra de que
“Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores”.
Apesar de não ser ponto principal de nossa pesquisa, não poderíamos deixar de apresentar críticas à redação deste dispositivo do CTN. Apesar da previsão de que a responsabilidade do pai (responsável tributário, art. 121, parágrafo único, II, CTN) é solidária em relação aos filhos menores (contribuinte, art. 121, parágrafo único, I, CTN), o art. 134, CTN estabelece que a responsabilidade tributária dos pais só se dará em caso de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, o que denota que a responsabilidade dos pais é subsidiária e não solidária. Neste sentido, MACHADO (1998, p. 113) leciona que
A responsabilidade de terceiros, prevista no art. 134 do CTN, pressupõe duas condições: a primeira é que o contribuinte não possa cumprir sua obrigação, e a segunda é que o terceiro não tenha participado do ato que configure o fato gerador do tributo, ou em relação a este se tenha indevidamente omitido. De modo nenhum se pode concluir que os pais sejam sempre responsáveis pelos tributos devidos por seus filhos menores.
Em uma interpretação extensiva, o nascituro poderia ser alcançado pelo conceito de “filho menor”. Apesar do apego que o Direito Tributário tem a legalidade, o CTN impõe a interpretação literal apenas nos casos do seu art. 111:
Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I - suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II - outorga de isenção;
III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
Em terceiro lugar, dar ao nascituro o status de contribuinte de tributo não deixaria de resguardar os interesses da Fazenda Pública, uma vez que, como vimos, o nascituro é o contribuinte e seus pais são responsáveis tributários, inclusive subsidiariamente, conforme o já citado art. 134, I, CTN.
Há, ainda, um argumento de cunho teleológico: o objetivo do legislador em prever a capacidade tributária passiva nos moldes do art. 126 e incisos, CTN, foi o de torna-la a mais abrangente possível.
Na hipótese de doação de um bem a um nascituro sujeito a incidência do ITCMD e sua subsequente morte, em se adotando a teoria concepcionista, ainda assim o nascituro teria a condição de contribuinte, e o fisco ficaria resguardado, pois o espólio é pessoalmente responsável pelos tributos devidos pelo “de cujus”(art. 131, III, CTN).
Em uma outra situação, poderíamos ter o negócio jurídico doação condicionado, pela vontade das partes, a evento futuro e incerto, pairando sobre ele uma condição suspensiva. Nesta hipótese, se o aperfeiçoamento do contrato de doação está condicionado ao nascimento com vida e, em ocorrendo o aborto, temos que o fato gerador não ocorreu, não se estabelecendo desta forma a relação jurídica tributária. Neste sentido, o CTN regula a noção de ocorrência de fato gerador nos seguintes termos:
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Art. 117. Para os efeitos do inciso II do artigo anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados:
I - sendo suspensiva a condição, desde o momento de seu implemento;
II - sendo resolutória a condição, desde o momento da prática do ato ou da celebração do negócio. (negritamos)
Percebe-se que neste caso não se trata de alteração de sujeição passiva tributária – do nascituro para os seus pais - por vontade, até porque tal mudança do sujeito passivo é, em regra, vedada:
Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.
Na situação que ora nos debruçamos que um tributo – ITCMD – que tem como fato gerador a doação de um bem, negócio jurídico que não ocorreu porque incidia sobre ele uma condição suspensiva que não se realizou: logo, se não ocorreu a doação pela falta da ocorrência da condição, o fato gerador não se implementou.
Conclusão
À guisa de conclusão, temos que, pelas razões acima expostas, o nascituro, ainda que não seja considerado como ente dotado de personalidade jurídica, como quer a teoria natalista, poderá ser sujeito passivo de obrigação tributária. A lei não exclui tal possibilidade, uma vez que prevê outros entes despersonificados como contribuintes de tributos. Assim, como a Constituição Federal alberga o princípio da isonomia tributária (art. 150, II, CF), não se poderia dispensar tratamento diferenciado a dois sujeitos que estejam em situação equivalente.
Outra situação que poderia obstaculizar a condição de contribuinte ao nascituro seria a falta de previsão legal: cremos que esta é também vencível, uma vez que o nascituro poderia ser abarcado pela expressão “filho menor”. Ademais, a definição e alcance da definição de sujeito passivo não está entre as situações que o CTN impõe interpretação literal – entenda-se restritiva – nos moldes do art. 111, CTN. Por fim, feriria a intenção do legislador ao delimitar de forma tão ampla a capacidade tributária passiva no termos do art. 126, CTN e excluir do seu alcance o nascituro.
Por fim, apesar de não ser objeto principal de nossa pesquisa, nos deparamos com o crescimento da teoria concepcionista no Brasil e em outros países ibero-americanos.
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