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Institutos afins à desapropriação

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01/11/2002 às 00:00
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TOMBAMENTO: ASPECTOS JURÍDICOS

Sumário: a. Colocação do tema; b. Disciplina normativa; c Natureza jurídica; d. Fundamentos; e. Objeto; f. Conteúdo; g. Sujeitos ativo e passivo; h. Espécies; i. Instituição; j. Indenização; k. Controle; l. Cancelamento.

a. Colocação do tema

Junto à opinião pública, o tombamento é cercado de dualismo, porque, ao mesmo tempo que o instituto desperta simpatias, vem despertando, também, antipatias.

No Brasil, é um assunto que se ouve falar, mas se conhece pouco.

Alguns episódios de nossa história, características culturais, artísticas e ambientais se encontram, por vezes, retratadas em monumentos, presentes naturais que os brasileiros tivemos a graça de receber, etc., cuja proteção interessa à manutenção de nosso passado na memória de hoje (e de sempre) e de nosso presente para a posteridade. E é com vistas a conservar esses bens culturais que se justifica a intervenção do Estado na propriedade através do tombamento.

Não se trata de querer viver uma eterna nostalgia, mas viver sem conhecer o passado é como começar a ler um livro a partir da sua metade. E o direito de conhecer a história, que é fundamental para a compreensão de nosso presente, deve ser assegurado também para os cidadãos vindouros.

Sem mais delongas, e para não destoar da metodologia adotada até aqui, vejamos uma boa definição do instituto em tela, nas palavras do mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

"É a intervenção ordinatória e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico, turístico ou paisagístico" [121].

Não há dúvidas de que todas as definições direcionam para uma só, ou seja, a proteção da memória nacional.

De forma bem nítida, tombamento é um ato administrativo realizado pelo poder público com o objetivo de preservar, através da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados.

O vocábulo tombo traz a idéia de registro, inventário e inscrição de bens, isso por conta de sua origem lusitana. Em Portugal, a famosa Torre do Tombo ganhou esse nome em função de abrigar os livros das leis, escrituras públicas, contratos, tratados com nações estrangeiras, etc., todos submetidos ao tal registro no livro tombo [122].

A expressão tombamento provém do direito português, deriva da palavra tombar, que significa, inventariar, arrolar ou inscrever. Uma vez declarado o tombamento, a utilização e conservação da coisa se dá nos termos da legislação vigente. As coisas tombadas permanecem no domínio e posse dos proprietários, contudo, esses bens tombados, em caso algum, poderão ser demolidos, destruídos ou mutilados, tampouco podem ser reformados, pintados ou restaurados, sem prévia autorização especial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob pena de multa pelo dano causado. Não podem, outrossim, sem prévia autorização do referido Instituto, saírem do País ou do Estado ou do Município, nem serem alienados a título oneroso os referidos bens tombados, a não ser proporcionado direito de preferência à aquisição ao Poder Público. Será nula alienação realizada sem observância a esse preceito, quer dizer, de ignorado o direito de preferência.

Assim, tombar determinado bem, sem considerar o aspecto eminentemente jurídico, significa registrá-lo num livro tombo, declarando-o integrante do patrimônio cultural do povo, o que ensejará a sua proteção contra danificações em geral.

Sob o aspecto exclusivamente jurídico, façamos, em princípio, uma análise perfunctória do conceito acima transcrito, para depois entrar nas minúcias nos itens específicos.

O tombamento é uma modalidade de intervenção branda do Estado na propriedade, o que implica em considerar que não se destina a retirar o bem das mãos de seu titular, limitando-se a impor determinados deveres públicos, com vistas a manter a conservação da coisa tombada.

Diz-se concreta essa intervenção, posto que atinge a bens determinados, ao contrário do que acontece com as limitações administrativas, cujos proprietários atingidos não são pessoas certas, mas titulares de propriedades que se amoldarem aos tipos legais consagrados.

A definição transcrita se refere a propriedades privadas. Entretanto, como teremos a oportunidade de verificar, também os bens públicos podem ser tocados por tombamento. Aliás, essa crítica já foi feita, com muita propriedade, pela prof. Maria Coeli Simões Pires [123].

Os limites impostos pelo tombamento atingem, tão-somente, o exercício dos poderes de uso e disposição da propriedade tombada, diferentemente do que ocorre com a servidão administrativa, por exemplo, que confere ao ente interventor o poder de uso, constituindo, pois, um direito real sobre coisa alheia.

Quanto à gratuidade, pode-se afirmar que essa é a regra, de modo que não renderá direito à indenização, como ocorre com todas as intervenções brandas. Mas em determinados casos, como veremos, ficará o ente público obrigado a indenizar o proprietário do bem tombado.

Corretamente se referiu a permanência o autor citado, posto que não significa o mesmo que perpetuidade. O tombamento, assim como a maioria das modalidades de intervenção, estende-se por um período indeterminado de tempo.

A indelegabilidade a que alude a definição ora analisada aponta para a impossibilidade de outro órgão administrativo, que não aquele indicado pela lei, impor restrições a direito de propriedade alheia a pretexto de estar tombando, ainda que fundado o seu ato em eventual delegação de funções.

No que toca à finalidade, já vimos que o tombamento se destina à preservação dos bens que tenham algum significado artístico, cultural, histórico, paisagístico, turístico ou arqueológico, a juízo da autoridade competente.

Analisemos com mais profundidade cada um desses itens, com vistas a esclarecer o conceito desse instituto tão instigante e que apresenta variações também muito interessantes.

b. Disciplina normativa

A Constituição de 1937 foi a pioneira em relação à previsão de medidas públicas voltadas para a proteção do patrimônio histórico e artístico e natural (art. 134), sem, contudo, fazer menção expressa à figura do tombamento, que viria a ser inaugurado na ordem jurídica pátria através do Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937.

A partir de então, todas as Constituições reservaram espaço para a disciplina da preservação do patrimônio histórico, cultural e natural do País: a Constituição de 1946 (art. 175); a Constituição de 1967 (art. 172, parágrafo único); a Constituição de 1969 (art. 180, parágrafo único); e a Constituição de 1988 (art. 216, § 1.º).

Mas foi a Constituição vigente foi primeira a se referir ao tombamento expressamente, no dispositivo anteriormente citado. Vejamos a sua redação:

"Art. 216 -......................................................

§ 1.º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação".

Mediante o tombamento, os poderes públicos se habilitam a proporcionar uma especial proteção a documentos, a obras e a locais de valores históricos, artísticos, aos monumentos, às paisagens notáveis e, até mesmo, às jazidas arqueológicas. O fundamento constitucional é o art. 216, nos seus parágrafos 1° e 5°. Este último diz o seguinte: " Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos". No primeiro parágrafo do aludido artigo fala que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. Essa preservação é realizada fundamentalmente por meio do tombamento, isto é, da inscrição da coisa em livro próprio, denominado Livro do Tombo.

O Decreto-lei n.º 25/37 ainda é hoje o diploma legal disciplinador do tombamento (norma geral) e o procedimento está regulado pela Lei Federal 6292/75, mas Estados, Distrito Federal e Municípios também têm competência para legislar sobre o tema, como se infere do disposto no art. 24, VII e art. 30, I e II, todos da CRFB/88. Portanto, temos neste caso competência legislativa concorrente, o que importa em dizer que a legislação daqueles entes federados deverão se amoldar à legislação federal, mas só no que essas tiverem de geral.

Todos os entes da federação podem efetuar o tombamento, mas o único problema é com respeito à legislação já que o Texto Constitucional quando fala da competência para legislar – art. 23, da Constituição Federal -, diz da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Todos podem providenciar o tombamento, é o que diz o inciso III (exibir documentos, provas contundentes do valor histórico, artístico e cultural...).

Art. 24, inc. VII: compete à União, aos Estados, Distrito Federal, legislar concorrentemente, porém, não fala dos Municípios.

Quanto à proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico, de acordo com o inc. VII, percebe-se que o Município, em questão de competência, aparentemente, não teria condições de legislar. Porém, usando da mesma técnica, exatamente pelo que diz o art. 30, encontramos: compete aos Municípios, incisos I, II, legislar sobre assuntos de interesses locais e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. Podemos somar com o inc. IX que fala, apesar de parecer mais materialização e não legislação, vale promover a proteção do ambiente histórico – cultural local, observada a legislação e ação fiscalizadora federal estadual. O que significa dizer que compete ao Município, com base no art. 30, incisos I, II e IX, legislar suplementarmente à legislação federal e estadual.

Dada a complexidade do tema, analisaremos, aqui, tão-somente a legislação federal, sem fazer referência à legislação dos Estados e Municípios.

c. Natureza jurídica

Discute-se, em doutrina, qual seria a natureza jurídica do tombamento, não sendo de forma alguma pacíficas as conclusões alcançadas pelos administrativistas de peso.

Celso Antônio Bandeira de Mello advoga a tese de que o tombamento seria uma espécie de servidão administrativa [124], ganhando, por incrível que pareça, a adesão da prof. Lúcia Valle Figueiredo, quando esta afirma:

"De conseguinte, o tombamento, além de fato administrativo - ato de inscrever - nada mais é que rótulo inútil no que tange ao regime jurídico. É dizer: ou estaremos diante da figura jurídica da expropriação, ou da servidão administrativa" [125].

De outro lado, o prof. Cretella Júnior [126] pretende equiparar o tombamento às limitações administrativas, no que acompanha Themístocles Brandão Cavalcanti em sua antigas e respeitáveis lições, que transcrevemos:

"Uma das manifestações do poder de polícia cuja influência no conteúdo do direito de propriedade foi mais profunda, é a que se exerce sôbre aquêles bens considerados de valor social, pela sua estimação, artística e histórica" [127].

Em que pese o brilhantismo dos autores citados, não podemos concordar com suas lições. Por isso, refutaremos uma a uma, separadamente.

No que toca ao primeiro posicionamento, que trata do tombamento como verdadeira servidão administrativa, é de se considerar que aquele não confere direito real incidente sobre o poder de uso da propriedade atingida à Administração Pública. E, mesmo que se considere de natureza real o direito de preferência instituído pelo art. 22 do Decreto-lei n.º 25/37 [128], não se poderia, por isso, afirmar tal equiparação, pois este incide (ou incidiria) sobre o poder de disposição do bem (móvel ou imóvel), enquanto as servidões gravam o direito de propriedade no que concerne ao poder de uso do bem (sempre imóvel).

Em relação ao segundo posicionamento, que trata do tombamento como limitação administrativa, é de se verificar que esta é necessariamente genérica e abstrata, atingindo bens indeterminados, enquanto o tombamento, ao contrário, é intervenção concreta, dirigida a um ou mais bens determinados. Mas aqui ainda cabe uma observação.

Hely Lopes Meirelles faz distinção entre tombamento individual e tombamento geral. O primeiro atingiria bem determinado e o segundo uma coletividade de bens. E cita como exemplo de tombamento geral o que atinge locais históricos ou paisagísticos. Nisto parece estar, de alguma forma, pretendendo equiparar o dito tombamento geral às limitações administrativas.

Neste particular, para refutar aquela lição o prof. José dos Santos Carvalho Filho erige os seguinte comentários, in verbis:

"Mesmo quando o tombamento abrange uma determinada área, um bairro ou até uma cidade, os imóveis tombados são apenas aqueles inseridos no local mencionado pelo ato. Dizer-se que todos os imóveis de uma rua estão tombados significa que cada um deles, especificamente, sofre a restrição" [129].

Mas ainda não nos damos por satisfeito!

Veja-se que o exemplo sempre utilizado para ilustrar os ensinamentos acerca do tombamento coletivo é o da Cidade de Ouro Preto. Afirma-se, então, inadvertidamente, que toda a cidade foi tombada e que, portanto, estaríamos diante de um tombamento geral ou coletivo. Entretanto, não é bem assim.

Como teremos a oportunidade de verificar, o art. 216 da Constituição de 1988 prevê a possibilidade de o tombamento atingir bens incorpóreos, assim como já o fazia a Constituição de 1937 em seu art. 134. E foi justamente um bem incorpóreo o atingido pelo Processo n.º 70-T, Inscrição n.º 39, Livro das Belas Artes, f. 8, em 20 de abril de 1938, que tombou o acervo arquitetônico e paisagístico da Cidade de Ouro Preto [130].

Assim, podemos chegar à conclusão de que mister se faz a distinção entre três figuras distintas: a) tombamento de bens incorpóreos, onde se atinge bem determinado, embora incorpóreo; b) tombamento coletivo, onde vários bens determinados são tombados por um mesmo ato administrativo; c) limitação administrativa, intervenção genérica e abstrata que abarca bens indeterminados, porém determináveis.

Mas, então, qual seria a natureza jurídica do tombamento?

Parece-nos lícito afirmar: o elemento marcante, que supera discussões, é o fato da imposição do tombamento em face de preservar o valor histórico, cultural, artístico, etc. O tombamento é uma modalidade distinta de intervenção do Estado na propriedade.

Essa é, também, a lição do consagrado e eminente publicista, prof. José dos Santos Carvalho Filho, senão, vejamos:

"Podemos, pois, concluir que a natureza jurídica do tombamento é a de se qualificar como meio de intervenção do Estado consistente na restrição do uso de propriedades determinadas" [131].

Portanto, não é o tombamento espécie de limitação ou de servidão administrativa. É, isto sim, ao lado destas, uma modalidade independente, autônoma, de intervenção do Estado na propriedade, incidindo sim sobre propriedade determinada, como as servidões, mas sem conferir direito real incidente sobre o poder de uso da propriedade.

Há, portanto, três posicionamentos. O tombamento atinge, primeira e unicamente, o direito de propriedade ou o próprio bem? Quanto ao direito de propriedade, não haveria dúvida de que ela deveria ser tido como limitação; se a este último, o próprio bem mostrar-se-ia como servidão.

Tanto material como instantaneamente, ele alcança tanto um quanto outro. Assim, não se pode afirmar categoricamente ou de maneira absoluta, que o tombamento se reveste de características que o situem, plenamente, como limitação ou servidão, separadamente.

O Professor Queiroz Telles propõe uma posição, a esse respeito, que se resume no seguinte: "Como, por força de um princípio lógico uma coisa não pode ser outra concomitantemente, já que obrigatoriamente uma situação excluiria a outra, o tombamento seria limitação, à medida que sua incidência fosse encarada, exclusivamente, como providência restritiva do direito de propriedade, de natureza primacialmente pessoal". Poderia, segundo o festejado mestre, ser entendido o tombamento como servidão administrativa, de igual forma, quando verificado o reflexo de sua situação, especificamente, sobre o bem atingido.

Os defensores – tombamento é uma servidão administrativa especial – distanciam-se da limitação administrativa em razão da finalidade do destinatário. Aduzem mais: a limitação administrativa é sempre genérica, abstrata; o tombamento é sempre individualizado, personalizado e aproxima-se da servidão porque acarreta um ônus que adere ao bem, quer dizer, o proprietário tem o dever de manter, conservar...

Verdadeiramente, o instituto do tombamento talvez possa estampar-se em um modo autônomo, próprio, de intervenção do Estado na propriedade.

Sobre a natureza do ato administrativo que veicula o tombamento, há uma controvérsia na doutrina, classificando-o uns como ato vinculado e outro como discricionário. Mas não faremos a análise dessa discussão neste ponto. Deixemos para o ocasião em que formos tratar da instituição do tombamento.

d. Fundamentos

Assim como as demais modalidades analisadas anteriormente, a intervenção do Estado na propriedade através do tombamento se funda naqueles dois grandes pilares constitucionais, quais sejam: a) o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (princípio implícito); b) princípio da função social da propriedade (art. 5.º, XXIII e art. 170, III da CRFB/88). Entretanto, podemos vislumbrar, aqui, um diferencial.

Com efeito, não é qualquer interesse público que legitima o tombamento de um bem. Trata-se de um interesse público específico, relacionado com peculiaridades do bem atingido. Vale dizer, deve este bem guardar alguma vinculação com fatos memoráveis da história do Brasil ou ter um excepcional valor de natureza cultural, artística, arqueológica, etc. Só neste caso se justifica a dita intervenção, com vistas à sua preservação.

Não poderá, verbi gratia, o prédio da esquina X, onde funciona o Botequim da Cachaça, ser tombado com a finalidade de ali ser exercida uma atividade pública consistente no cadastramento de pessoas portadores do vírus da hepatite C, pelo Ministério da Saúde. Seria, sem dúvida, essa intervenção motivada por um interesse público. Entretanto, nenhuma relação guardaria com a finalidade de preservação de um patrimônio que traz em si lembranças, por exemplo, de um, fato histórico relevante para a nação. Seria o caso, isto sim, de uma ocupação temporária, como veremos.

e. Objeto

Já vimos que o tombamento se aproxima mais das servidões administrativas por atingirem ambos propriedades determinadas. Mas vimos também que com estas não se confunde, por mais de um motivo, dentre os quais pelo fato de estas incidirem somente sobre bens imóveis, enquanto aquele poderá ter como objeto várias espécies de bens. Vejamos quais são eles.

Bem em sentido jurídico é tudo aquilo que, excluindo-se o homem, interessa ao direito de alguma forma, sendo conveniente estabelecer a distinção entre este conceito e o de coisa. Na lição de Clóvis Beviláqua, "bens são os valores materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação jurídica. É um conceito mais amplo do que o de coisa. Esta, no dizer magistral de Teixeira de Freitas, é ‘todo

objeto material suscetível de medida de valor’" [132].

Por oportuno, as obras de origem estrangeira são bens não alcançados pelo tombamento,consoante determinação do DL 25/37, art. 3º.

Não só as coisas, mas todos os bens, móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, individuais ou coletivos, públicos ou privados (CRFB/88, art. 216, caput), podem ser objeto do tombamento. O indispensável é que os tais bens portem alguma referência à identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como o exige o citado dispositivo constitucional. Esse o rol exemplificativo que nos traz a Constituição: "I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico".

O tombamento pode incidir sobre bens urbanos e rurais, mas a grosso modo, é habitual recair sobre os primeiros, pois é na cidade (capitais) que o homem produz e cria maior percentual de artes.

O próprio Decreto-Lei nº 25 de 30/11/37, caracterizou sobre que modalidade de bens pode recair o tombamento: bens móveis e imóveis de interesse cultural ou ambiental, visando a preservação da memória coletiva, tais como: fotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas etc.

No plano infraconstitucional, o art. 1.º do Decreto-lei n.º 25/37 traz as seguintes exigências para que um bem possa ser tombado: a) vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil; b) excepcional valor artístico, arqueológico, etnográfico ou bibliográfico., artístico ou científico.

Destaque-se, aqui, que o Supremo Tribunal Federal, à vista da diferença existente entre os conceitos do § 1.º do art. 216 da CRFB/88 e do art. 1.º do Dec.-lei n.º 25/37, preferiu distinguir um conceito amplo e um conceito restrito de patrimônio histórico e artístico nacional. Vejamos o trecho que nos interessa da ementa em questão:

"No tocante ao par. 1.º do art. 216 da Constituição Federal, não ofende esse dispositivo constitucional a afirmação constante do acórdão recorrido no sentido de que há um conceito amplo e um conceito restrito de patrimônio histórico e artístico, cabendo à legislação infraconstitucional adotar um desses dois conceitos para determinar que sua proteção se fará por tombamento ou por desapropriação, sendo que, tendo a legislação vigente sobre tombamento adotado a conceituação mais restrita, ficou, pois, a proteção dos bens, que integram o conceito mais amplo, no âmbito das desapropriações" [133].

Ao ver daquela Corte, então, tendo sido prestigiado pela legislação infraconstitucional o conceito restrito, se determinado bem se enquadra tão somente nos moldes constitucionais, mas não nos legais, não poderá ser objeto de tombamento, mas sim de desapropriação.

Não nos parece correto esse entendimento. Acreditamos que a ampliação do conceito adotado pelo legislador de 1937 perpetrada pela Constituição de 1988 legitima o tombamento de bens que somente se enquadrem no conceito do art. 1.º do Decreto-lei n.º 25/37 se este for conjugado com o § 1.º do art. 216 da CRFB/88. Em outras palavras, a Constituição ampliou o conceito, já deferindo à Administração Pública condição de tombar quaisquer daqueles bens.

De qualquer forma, esta uma informação relevante, que não poderia deixar de ser noticiada, posto que poderá servir de fundamento para defesa contra o tombamento em muitas hipóteses.

Mas outras considerações merecem destaque neste item.

Os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana poderão ser objeto de tombamento por expressa disposição legal (art. 1.º, § 2.º do Decreto-lei n.º 25/37).

Autores do porte de Hely Lopes Meirelles e do consagrado José dos Santos Carvalho Filho criticam a promoção de tombamentos de florestas, reservas naturais e parques ecológicos, uma vez que tais bens jurídicos tem uma tutela própria no Código Florestal do Poder Público. Ousamos discordar, pois o tombamento pode incidir sobre um parque, uma área verde, uma reserva florestal, desde que haja valor histórico ou arqueológico, devem ser preservados, protegido pelo instituto do tombamento.

Às vezes, o Código Florestal, ao abordar à reserva florestal, impõe certos deveres, mas não todos os deveres específicos que o tombamento pode impor. O tombamento pode impor até a preservação de certas espécies. Numa reserva florestal, pode-se até admitir a reposição de espécies, permitindo-se, inclusive, cortar e retirar as árvores dentro de certos percentuais, em geral, de até 10% (dez por cento), exigindo-se que haja reposição, é compatível com o regime de reserva. Agora, com uma reserva tombada, já é totalmente incompatível, tendo-se que deixar tudo como está. Portanto, o tombamento agrava e torna mais severo o regime de proteção em relação ao da reserva.

Também os bens públicos poderão ser tombados, como se infere do art. 2.º do mesmo Decreto-lei n.º 25/37. Mas aqui cabe aquele velho questionamento: poderá a União ter seus bens tombados por ato estadual ou municipal ou o Estado por ato municipal?

O tombamento, como intervenção branda na propriedade, via de regra não impede ou embaraça o uso da propriedade atingida, limitando-se a impor a conservação de suas características. Entretanto, grava a propriedade com um direito real de preferência (ao nosso ver), implicando, por isso, na sua classificação como intervenção branda, mas não tanto.

Aliando-se essas considerações àquelas feitas quando tratamos do sujeito ativo da servidão administrativa, concluímos pela negativa da indagação feita. Mas ressalve-se o fato de que poderá a União, por ato próprio tombar seus próprios bens, como, aliás, não raro ocorre.

Entretanto, não nos parece juridicamente possível que ente político algum exija de outro, qualquer que seja, o desembolso de quantias para a conservação do bem tombado, posto que a realização de despesa pública, nos termos do art. 167 da CRFB/88, depende de previsão orçamentária. E como cada ente da Federação é competente para a elaboração de seu próprio orçamento, pretender a União vincular receitas dos Estados ou dos Municípios, bem como os Estados destes últimos feriria o princípio do federalismo.

Por fim, não serão passíveis de tombamento as obras de origem estrangeira que pertençam às representações diplomáticas ou consulares creditadas no País, que adornem quaisquer veículos pertencentes a empresas estrangeiras, que se incluam entre os do art. 10 da LICC, continuando sujeitos à lei pessoal do proprietário, que pertençam a casas de comércio de objetos históricos ou artísticos, que sejam trazidos para o País a fim de serem expostos em comemorações educativas ou comerciais ou que sejam importadas por empresas estrangeiras expressamente para adorno dos respectivos estabelecimentos (art. 3.º do Decreto-lei n.º 25/37.

f. Conteúdo

Neste tópico, analisaremos as conseqüências que acarreta o tombamento de determinado bem. Em outras palavras, vamos nos debruçar aqui sobre que tipos de limites (em sentido amplo) que são impostos aos proprietários dos bens tombados. E para isso, partiremos, novamente, daquele novo conceito de propriedade, já anunciado anteriormente. Vejamos.

a) poderes (uso, gozo, disposição e defesa)

Propriedade:b) limites (p.p. ditos, non facere ou pati)

c) deveres positivos (limites impróprios - facere)

O tombamento impõe, em primeiro lugar, um non facere, consistente em não permitir que o proprietário destrua ou mutile o bem tombado e nem, sem prévia autorização do IPHAN, sob pena de multa de 50% do dano causado, repare-o, pinte-o ou restaure-o (DL 25/37, art. 17). Além disso, em se tratando de bens móveis, não poderá o seu titular retirar o bem do País, senão por curto prazo, para fins de intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do IPHAN (DL 25/37, art. 14). Tentada sua exportação, a coisa fica sujeita a seqüestro e o seu proprietário, às penas cominadas para o crime de contrabando e multa (art. 15, DL 25/37).

Esses limites incidem, assim, sobre o exercício do poder de uso do bem, não constituindo direito real sobre coisa alheia.

Em segundo lugar, com a intervenção em tela fica o proprietário do bem obrigado a algumas condutas positivas (facere), sempre com vistas à conservação da coisa tombada. Se não dispuser de recursos necessários, deverá comunicar, no plano federal, ao Instituto de Patrimônio Histórico Artístico Nacional - IPHAN a carência das obras e a falta de condições para tanto, arcando a União com as despesas, se não preferir a desapropriação, com fundamento no art. 5.º, l do Decreto-lei n.º 3.365/41 (DL 25/37, art. 19, caput e § 1.º). A não comunicação ao órgão competente, o proprietário do imóvel tombado incorrerá em multa correspondente ao dobro da importância em que foi avaliado o dano sofrido pela coisa (art.19, DL 25/37).

Em terceiro lugar, por disposição expressa do art. 20 do Decreto-lei n.º 20/37, as coisas tombadas ficam sujeitas à vistoria da autoridade competente, que poderá inspecioná-lo sempre que achar conveniente. Isso constitui imposição de um dever de sujeição (pati), obrigação de suportar.

Em quarto lugar, e esse ponto merece algum destaque, temos o direito de preferência dado à União, aos Estados e aos Municípios, nesta ordem, um verdadeiro direito real sobre coisa alheia, que incidirá sobre o poder de disposição do proprietário do bem tombado (art.22,DL-25/37).

Analisemos esta questão, iniciando pela leitura do art. 22, caput e §§ 1.º e 2.º do Decreto-lei n.º 25/37, ipsis litteris:

"Art. 22 - Em face da alienação onerosa de bens tombados, pertencentes a pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado, a União, os Estados e os Municípios terão, nessa ordem, o direito de preferência.

§ 1.º - Tal alienação não será permitida, sem que previamente sejam os bens oferecidos, pelo mesmo preço, à União, bem como aos Estados e ao município em que se encontrarem. O proprietário deverá notificar os titulares do direito de preferência a usá-lo, dentro de trinta dias, sob pena de perdê-lo.

§ 2.º - É nula a alienação realizada com violação do disposto no parágrafo anterior, ficando qualquer dos titulares do direito de preferência habilitado a seqüestrar a coisa e a impor a multa de vinte por cento do seu valor ao transmitente e ao adquirente, que serão por ela solidariamente responsáveis. A nulidade será pronunciada, na forma da lei pelo juiz que conceder o seqüestro, o qual só será levantado depois de paga a multa e se qualquer dos titulares do direito de preferência não tiver adquirido a coisa no prazo de trinta dias".

Repare que não se abre aos sujeitos da compra e venda do bem tombado a opção das perdas e danos, ao contrário do que ocorre com o direito de preferência do locatário na alienação do bem locado, previsto pelos arts. 27 e 33 da Lei n.º 8.245/91. Essa possibilidade de resolver-se em perdas e danos é que caracteriza a pessoalidade do direito de preferência do locatário.

Ao contrário, o ente público, seja ele o interventor ou não, titular do direito de preferência, não ficará satisfeito com a mera indenização pela ignorância em face do seu direito. A lei declara a nulidade do negócio jurídico que não observar aquela regra.

Aliando-se essas considerações ao fato de o art. 13 do mesmo Decreto-lei n.º 25/37 prever a necessidade de o tombamento de bem imóvel ser levado a registro no RGI, o que confere eficácia erga omnes àquele direito de preferência, não nos resta dúvida de que estamos diante de um típico direito real sobre coisa alheia.

Diga-se, entretanto, sem medo de ser redundante, que isso não é suficiente para pretender-se equiparar o tombamento às servidões administrativas, pelo simples fato de ambos conferirem direito real ao ente interventor. É que o direito real ora estudado está a incidir sobre o poder de disposição da coisa, enquanto nas servidões é o poder de uso o atingido pelo direito real alheio.

Em tese, no tombamento, o proprietário não perde nem a posse nem o domínio do imóvel. Logo, não há que se falar em impedimento para a venda, aluguel, testamento ou doação. Havendo intenção de alienação onerosa do bem, deverá assegurar o direito de preferência ao ente federativo que efetuou o tombamento, sob pena de nulidade do ato, seqüestro do bem por qualquer dos titulares do direito de preferência e multa de 20 % do valor a que ficam sujeitos o transmitente e o adquirente (DL 25/37, art.22). Uma vez transferido o bem, o adquirente fica obrigado a inscrever a transferência no registro imobiliário, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de pagamento de multa equivalente a 10 (dez) por cento do valor do respectivo bem. Se o bem tombado for público será inalienável, ressalvado a possibilidade de transferência entre União, Estados e Municípios (DL 25/37, art. 11).

Por fim, ainda em tema de conteúdo dos tombamentos, o mais importante é o efeito perante terceiro, previsto no art. 18 do Decreto-lei n.º 25/37. Vejamos:

"Art. 18 - Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não poderá, a vizinhança da coisa tombada, fazer construção que impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se, neste caso, a multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto".

Repare que estamos diante de uma intervenção impositora de limites ao direito de uso de bens, cujos destinatários são proprietários indeterminados. É, portanto, uma imposição genérica e fundada num interesse público. Não é ao proprietário do bem tombado que se dirige essa norma, mas aos seus vizinhos. E tendo sido imposta por lei (lembre-se de que a figura do decreto-lei é equivalente, hodiernamente, à da medida provisória em termos de hierarquia normativa), é instrumento hábil a obrigar os particulares, nos termos do art. 5.º, II da CRFB/88.

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Além do imóvel tombado, o ente da federação poderá impor uma obrigação de "non facere" perante os vizinhos, podendo-se estender, portanto, ao entorno.

O que a lei entende por esta imposição: junto à vizinhança a coisa tombada não poderá fazer construção? Qual a metragem definida na legislação?

A lei federal, em momento nenhum, define a metragem, a extensão dessa faixa. Silencia sobre a distância do bem tombado que poderia levantar uma construção nova, contígua ao prédio tombado, para que não venha descaracterizar, reduzir ou obstruir a visibilidade da coisa tombada e, também, de não se colocar cartazes ou anúncios aos vizinhos proprietários. A ausência da previsão, não amparada na lei, é o principal responsável para eximir as Prefeituras de responsabilidade. Então, é prudente que a entidade, efetuadora do tombamento, estabeleça, logo de saída, tais limites, uma vez que o legislador deixou, a cargo do administrador, em cada caso concreto, essa delimitação.

A este respeito, esclarece Edmur Ferreira de Faria [134], "o proprietário vizinho de prédio tombado sofre profunda restrição em seu direito de propriedade consistente em limitações ao exercício de tal direito. Autores de formação civilista mais conservadora consideram essas restrições verdadeiro atentado contra o direito de propriedade assegurado pela Constituição Federal. Sustentam, por isso, que só mediante desapropriação e justa e prévia indenização poderia o Poder Público interferir na propriedade. Outra corrente entende que a restrição deve ser considerada servidão, podendo gerar direito a indenização nos casos previstos em lei referentes às servidões administrativas. Uma terceira corrente sustenta o entendimento de que a restrição sofrida pelo vizinho de prédio tombado constitui mera limitação administrativa fundada no princípio da função social da propriedade e, por tais motivos, não assegura o direito indenizatório (art. 18 do DL n. 25/37)".

O proprietário de imóvel próximo ao bem tombado depende de prévia autorização do órgão do Patrimônio Cultural para nele edificar, sob pena de demolição.

Entretanto, não é também para se afirmar que, por isso, o tombamento se confunde com as limitações administrativas, pelas razões que já expusemos no item II, C, n.º 3 e pelo fato de que não faz parte do tombamento essa limitação. Aquele, como veremos, é imposto por ato administrativo concreto, enquanto a tal limitação administrativa é veiculada por lei formal e já está desde a sua edição instituída, mas só será, in casu, determinável a partir do tombamento concreto.

g. Sujeitos ativo e passivo

Já vimos anteriormente que a competência para legislar sobre tombamento é concorrente, o que implica em dizer que á União caberá editar normas gerais sobre o tema e aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios caberá complementar essa disciplina através de suas legislações.

Da mesma forma, a todos os entes da Federação é dado tombar bens em defesa do patrimônio histórico, artístico, cultural, paisagístico, paleontológico e arqueológico. Mas cada um pelos seus respectivos órgãos.

No âmbito federal - e lembre-se que não analisaremos aqui as legislações estaduais e municipais sobre o tema - caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN [135], nos termos do art. 4.º do Decreto-lei n.º 25/37, através de ato administrativo do Sr. Diretor do citado órgão, a ordem de tombamento.

Já o sujeito passivo será o proprietário do bem especificado, que deverá, como já vimos, reunir qualidades especiais, de acordo com o disposto no art. 1.º do Decreto-lei n.º 25/37.

O sujeito passivo do tombamento poderá ser tanto determinado quanto indeterminado, mas o normal, na sua grande maioria, é que ele seja determinado.

O tombamento determinado biparte-se em parcial ou total. Um prédio totalmente tombado, em função de seu valor histórico, cultural ou arqueológico, sofrerá imposição severíssima, visto que proíbe seu proprietário alterar até mesmo a cor do prédio, que terá que ser mantida conforme originalmente concedida, ou seja, a cada pintura de conservação ou reparo. Nada poderá ser alterado no tombamento total: portas, janelas, telhados, tudo...

No tombamento parcial, haverá incidência apenas sobre parte do prédio, não incidindo sobre outras partes do imóvel, por exemplo, quando o tombamento incidir tão-somente sobre a faixada do imóvel. Aí, no caso, os fundos do prédio podem ser alterados. O tombamento pode alcançar estátuas, chafariz etc.

Por outro lado, pode-se tombar um bairro inteiro, uma cidade. No caso de tombamento desse porte, como ocorreu em Ouro Preto, Minas Gerais, o sujeito passivo é indeterminado.

O que é importante fixar, neste item, é a necessidade de o bem tombado ser individual ou coletivamente determinado, não apenas determinável. Vale dizer, mesmo quando um mesmo ato tombar vários bens, estes deverão ser discriminados pelo ato.

h. Instituição do tombamento

Na vigência de um Estado de Direito, como é o nosso, a figura do tombamento, para prevalecer diante da proteção que se confere ao direito de propriedade, deve estar amparado, como está, pela Constituição (CRFB/88, art. 216, § 1.º) e por lei formal (Decreto-lei n.º 25/37). No entanto - e isso não se discute - é um ato administrativo que o instituirá.

A discussão que se pode enfrentar neste ponto envolve a seguinte dúvida: seria esse ato administrativo discricionário ou vinculado? A doutrina se divide em três correntes.

Uma primeira parcela da doutrina afirma a vinculação do ato administrativo de tombamento à lei, pelo fato de só os bens de interesse artístico, histórico, cultural e etc. poderem ser objeto desta modalidade de intervenção na propriedade.

Num outro extremo, temos o posicionamento dos que vêem no tombamento um ato discricionário, já que fica reservada ao alvedrio da autoridade administrativa a avaliação da oportunidade e da conveniência da intervenção, bem como pelo fato de ser subjetivo o critério para se classificar um bem como de interesse histórico, artístico, cultural, etc..

Certo é que ambos os seguimentos da doutrina enunciam verdades inabaláveis, aparentemente conflitantes. Mas só aparentemente. E a razão está, ao nosso ver, com uma terceira corrente, que compõe o dissenso apontado afirmando que cada um daqueles posicionamentos destaca um aspecto do ato de tombamento.

Na verdade, focando o ato por um lado, é de se reconhecer a necessidade de se tombar um bem com vistas a defender o patrimônio artístico, histórico, cultural, etc.. Sob esse ângulo, seria um ato vinculado. Mas, de outra forma, se o enfoque se der sobre a valoração do bem como ligado a um fato memorável da história ou de extravagante interesse artístico, cultural e etc., tendo em vista que será tal mister desenvolvido por órgão integrante da Administração Pública, como determina a lei, é inegável a sua discricionariedade. E também se chegará a essa conclusão que é ao Poder Executivo que caberá decidir se determinado bem será ou não tombado, e em que oportunidade.

Neste sentido é a lição de José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

"Sob o aspecto de que o tombamento há de ter por pressuposto a defesa do patrimônio cultural, o ato é vinculado, o que significa que o autor do ato não pode praticá-lo apresentando motivo diverso. Está, pois, vinculado a essa razão. Todavia, no que concerne à valoração da qualificação do bem como de natureza histórica, artística etc. e da necessidade de sua proteção, o ato é discricionário, visto que essa avaliação é privativa da Administração" [136].

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça tem feito prevalecer o aspecto vinculativo, já que têm anunciado a obrigatoriedade de o ato ser motivado, dando a possibilidade de o judiciário o anular por não se vincular a fatos históricos memoráveis da história do Brasil ou por não ser de excepcional valor artístico, bibliográfico, arqueológico etc. (teoria dos motivos determinantes).

Em outras palavras, aquilo que se tem destacado como mérito administrativo por uns tem sido objeto de discussão judicial, com anuência daquela Corte, com base na necessária motivação do que se tem por discricionário no ato de tombamento.

Vejamos, por oportuno, o seguinte trecho do acórdão, que julgou o Recurso Especial n.º 30.519-RJ:

"Se o ato administrativo pode ser imotivado, como é o caso da promoção por merecimento, é um ato político, mas estamos sujeitos a certas limitações, não quanto à escolha, mas quanto à clientela que pode ser promovida. Quanto ao próprio objeto e à motivação, que é o que nos interessa no caso, há uma discricionariedade bastante ampla, porém.

Isto não ocorre no

tombamento, onde a motivação é inerente ao ato, tanto assim que o ato praticado foi motivado, não só na sua origem como depois, à medida em que os processos administrativos e o jurisdicional se desenvolveram, à medida em que a autoridade administrativa foi justificando seu ato.

(...)

O tombamento é ato parcialmente discricionário

, na medida em que envolve alguma margem de aferição do valor histórico, artístico, etc.: mas ele é na sua maior parte um ato vinculado, especificamente, especificamente quanto à sua motivação, que, como vimos, tem de ser considerada com o cuidado, dado àquilo que a lei exige, ou seja, a vinculação a fatos memoráveis da história e a excepcionalidade do valor artístico" [137].

A partir daí, podemos desmembrar o ato de tombamento em duas partes: uma vinculada e outra discricionária; sendo que, esta última, pela necessidade de motivação, se transmuda em vinculada em razão da teoria dos motivos determinantes, tornando-se o ato, por completo, vinculado.

A Administração Pública estará obrigada a agir vinculadamente, no sentido de ser obrigada a tombar determinado bem?

opiniões e opiniões a esse respeito, como a descrita abaixo, de Carlos Augusto A Machado [138]:

"Toda vez que determinado bem for revestido dos requisitos necessários para constituir parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, é dever do IPHAN, fazê-lo, pois, por exigência constitucional".

"O pronunciamento da autoridade, concretizado em ato administrativo, está localizado na esfera discricionária da Administração: pode o administrador reconhecer a qualificação do bem, louvando-se no parecer do órgão competente e, no entanto, não editar o ato, por não achar nem conveniente e nem oportuno tombá-lo" - José Cretella Júnior [139].

Arremata tal entendimento: " não se confunda, pois, a qualificação do bem com o tombamento em si. Qualificar é tipificar, é atribuir ao bem valor histórico, artístico, paisagístico, enquadrando-o de modo preciso em uma das hipóteses legais. Tombar é o momento jurídico concretizado pela edição do ato. Qualificação é a operação de natureza técnica; o tombamento em si é o ato administrativo discricionário que pode ser editado ou não, porque envolve oportunidade, razoabilidade".16

Constitui-se, na verdade, dever da Administração Pública editar o ato administrativo que se traduz pelo tombamento, sempre que ocorrem as condições previstas na referida legislação.

Em igual sentido: "O ato estatal não é discricionário. Há o pressuposto de ter valor artístico ou histórico, ou de beleza natural, o bem que se tomba, como monumento ou documento protegido". [140]

Ou, "o tombamento é um ato administrativo vinculado e constitutivo". [141]

São dignos de tombamento todos os bens ligados a fatos memoráveis da História do Brasil ou, que apresentem excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico, ou, que constituam lugares de feição notável por obra do homem ou da natureza". [142]

Opina professor José Afonso da Silva, quanto a ser discricionário ou vinculado, o ato administrativo do tombamento: "o ato do tombamento é, porém, vinculado no sentido de que não se verificará sem o parecer técnico do órgão competente (IPHAN), ou entidade semelhante nos Estados ou Municípios, aconselhando a medida. O ato está pois, vinculado a este parecer. Mas este não se vincula a autoridade competente para emitir o parecer do tombamento. Quer dizer: mesmo que seja pela expedição do ato, a autoridade goza de competência discricionária para examinar de sua conveniência e oportunidade". [143]

Outros autores de prestígio têm entendido, que o tombamento é, primeiramente, ato administrativo; decorre, vinculadamente, de parecer prévio, acerca das qualidades que justificam a sua materialização. Segundo, o instituto se revela como ato administrativo de natureza discricionária; não vincula o agente administrativo, no sentido da obrigatoriedade de sua homologação.

Preliminarmente, pode-se concluir, se considerado o parecer do ato administrativo e, iniciando o tombamento através dele, pela sua natureza vinculada, pois é dever da Administração Pública, com origem no art. 216, da Constituição, emiti-lo, caso sejam verificados os pressupostos preconizados na legislação específica, Decreto-lei 25/37.

Contudo, se ao Poder Público se atribui a obrigação de qualificar, através do parecer, o bem dotado de características que o tornem suscetível de ser tombado, também é verdade que "ao Judiciário cabe decidir, se o imóvel inscrito no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar apenas se foram observadas as formalidades legais no processo de tombamento". [144]Concluindo: nos parece que inexiste qualquer marca de discricionariedade, quanto à prática do ato inicial do procedimento, ou seja, do parecer.

O tombamento, sem nenhuma perplexidade, revela-se como procedimento, do qual o parecer é o ato vestibular, como observa Antonio Queiroz Telles, vinculado quanto à obrigatoriedade de sua edição e, a homologação que, embora vinculada ao parecer, é, na verdade, discricionária quanto a sua efetiva concretização.

Observe-se o seguinte esquema, que bem representa a conclusão alcançada:

Ato administrativo de tombamento:

1.ª parte: vinculada à lei.

2.ª parte: vinculada ao motivo fático determinante.

i. Espécies

Compulsando a legislação antes mencionada, podemos identificar, como em geral o faz a doutrina, algumas espécies de instituição do tombamento, que podem ser assim classificadas:

i) Quanto à titularidade do bem tombado:

a) de bem público

b) de bem particular

Quanto aos bens públicos, é de se mencionar a regra contida no art. 5.º do Decreto-lei n.º 25/37, que reza sobre a possibilidade de se inscrever ex officio o tombamento, sem necessidade de anuência do sujeito passivo, que somente será notificado do ato, com vistas à regular produção de efeitos. Não precisa, conseqüentemente, de procedimento. Tomba-se e notifica-se a entidade a que o bem pertencer ou sob cuja guarda estiver, a fim de produzir os necessários efeitos.

O significado que Maria Coeli Simões Pires extrai do citado dispositivo legal é que sempre será definitivo o tombamento de bem público, não sendo possível qualquer impugnação na via administrativa [145]. Entretanto, com base no disposto no art. 5.º, LV da CRFB/88, não nos parece merecer recepção aquela regra, posto que o princípio da ampla defesa e do contraditório inequivocamente têm aplicabilidade também na esfera administrativa. De modo que, se não há procedimento previsto para tal impugnação, deverá ser adotado o do art. 9.º, a ser analisado oportunamente.

E não se argumente com a inaplicabilidade do dispositivo constitucional citado, por se tratar de ente público o beneficiário, já que, nesta hipótese, estará figurando na relação jurídica como qualquer outro proprietário, merecendo, pois, tal favorecimento.

Quanto aos bens particulares, sempre haverá, como veremos, a oportunidade de defesa administrativa, o que é expressamente previsto pela legislação citada, em seu art. 9.º. Sobre essa questão, trataremos mais adiante.

ii) Quanto à manifestação de vontade do sujeito passivo:

a) voluntário

b) compulsório

Prevê o Decreto-lei n.º 25/37 a possibilidade do próprio proprietário de determinado bem, por reconhecer o seu valor histórico, artístico, cultural, etc., oferecê-lo ao tombamento. Neste caso, deverá ser ouvido o Conselho Consultivo do IPHAN, para que se manifeste sobre as características do bem ofertado, informando se preenche ou não os requisitos para que se configure patrimônio histórico e artístico nacional. Sendo positivo o parecer, proceder-se-á ao tombamento (DL n.º 25/37, art. 7.º).

Qualquer pessoa física ou jurídica pode solicitar, aos órgãos responsáveis pela preservação, o tombamento.

Também será considerado voluntário, de acordo com a legislação em análise, o tombamento cuja motivação encontrar origem em atos do próprio IPHAN, quando o sujeito passivo não se opor à intervenção. Observe-se, entretanto, que essa anuência deverá ser escrita, informando expressamente o proprietário do bem que concorda com a sua inscrição no livro tombo.

Caso não seja observada tal conduta, deverá o Diretor do IPHAN aguardar o decurso do prazo para impugnação. E somente se correr in albis tal interregno temporal é que se poderá inscrever o bem no livro próprio.

Poderá ainda ser compulsório o tombamento, configurando-se essa hipótese se o proprietário do bem objeto da intervenção discordar da mesma, dentro do prazo de 15 (quinze) dias, contados da notificação [146], através de impugnação escrita e fundamentada (DL n.º 25/37, art. 9.º I).Neste caso, o tombamento terá procedimento mais complexo.

Tendo sido oferecida tempestivamente a cabível impugnação, abrir-se-á vista ao órgão de que houver emanado a iniciativa do tombamento, que sustentar-lhe-á no prazo de 15 (quinze) dias também, sendo remetido o processo em seguida ao Conselho Consultivo do IPHAN, para proferir a decisão no prazo de 60 (sessenta) dias.

Interessante notar que o art. 9.º, III do Decreto-lei n.º 25/37 diz que não caberá recurso contra a decisão a que nos referimos no parágrafo anterior. Mas tal regra não há de prevalecer diante do já mencionado art. 5.º, LV da CRFB/88, que prevê, sempre, a possibilidade de pelo menos um recurso no âmbito administrativo também.

Em função disso, há de ser aplicado o disposto no artigo único do Decreto-lei n.º 3.866/41 [147], que prevê a possibilidade de recurso ao Presidente da República, para pleitear o cancelamento do ato de tombamento.

Assim também se manifesta José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

"Anote-se, por fim, que ao proprietário do bem tombado é conferido o direito de recorrer contra o ato de tombamento. O recurso é dirigido ao Presidente da República, que, atendendo a razões de interesse público, pode cancelar o tombamento" [148].

E acrescenta:

"Esse recurso, considerado como impróprio, tem previsão no Decreto-lei n.º 3.866, de 29.11.41" [149].

Hely Lopes Meirelles, embora reconhecendo a juridicidade desse recurso, ao qual faz expressa menção, critica veementemente a competência do Presidente da República para o exercício dessa competência. Vejamos, por oportuno, as suas palavras:

"A autoridade deste órgão do mais alto gabarito técnico e artístico, não deveria ficar sumariamente anulada pelo julgamento político, do Chefe da Nação, em matéria estranha às suas funções governamentais. A instituição deste recurso se deve, naturalmente, à origem ditatorial do diploma que o estabeleceu, em cujo regime o Chefe de Estado absorvia todos os poderes e funções inclusive os de julgamento artístico e histórico, nada condizentes com o governo da Nação" [150].

Por mais que se possa criticar a conferência daquela competência ao Chefe do Executivo, que exerce função política, não merecerá, ao nosso sentir, o mesmo tipo de comentário o fato de a legislação prever tal recurso, posto que está a atender o importante princípio da ampla defesa e contraditório.

iii) Quanto à duração da eficácia do ato:

O tombamento compulsório faz nascer mais outros dois tipos de tombamento:

a) definitivo

b) provisório

Será considerado definitivo o tombamento quando não for regularmente oferecida a impugnação ou quando esta for julgada improcedente, sem recurso ou com decisão do Presidente da República favorável à intervenção. Portanto, quando concluído pela sua inscrição no competente Livro de Tombo.

Maria Coeli Simões Pires, com base nos arts. 5.º e 10 do Decreto-lei n.º 25/37, afirma a impossibilidade de se considerar definitivo o tombamento de bem público [151]. Entretanto, considerando-se a crítica que tecemos anteriormente àqueles dispositivos legais, à luz do art. 5.º, LV da CRFB/88, não nos parece merecer sucesso essa observação.

No que tange ao tombamento provisório, este se configurará enquanto pender decisão (administrativa) capaz de cancelar o ato administrativo anterior, seja do Conselho Consultivo do IPHAN, por ocasião do julgamento de impugnação administrativa, seja do Presidente da República, por ocasião do julgamento de recurso administrativo.

Urge frisar que, quando o particular recebe a notificação e a resiste, o tombamento, automaticamente, já é provisório, para evitar a ação rápida do proprietário em demolir ou desfazer da coisa antes do término do procedimento (DL 25/37, art. 10º).

Eis as fases do procedimento:

1. Manifestação do órgão sobre o valor do bem para fins de tombamento;

2. Notificação ao proprietário para anuir ao tombamento dentro do prazo de quinze (15) dias, a contar da data do recebimento da notificação ou para, se quiser, impugnar e oferecer razões dessa impugnação;

3. Se o proprietário anuir, por escrito, à notificação, ou não impugnar, tem-se o tombamento voluntário, com a inscrição no Livro do Tombo;

4. Havendo impugnação, será dada vista, no prazo de mais quinze (15) dias, ao órgão que tiver tomado a iniciativa do tombamento, a fim de sustentar as suas razões;

5. A seguir, o processo será remetido ao Conselho Consultivo do IPHAN, que proferirá decisão a respeito, no prazo de sessenta (60) dias, a contar da data do recebimento;

6. Se a decisão for contrária ao proprietário, será determinada a inscrição no Livro do Tombo; se for favorável, o processo será arquivado;

7. A decisão do Conselho Consultivo terá que ser apreciada pelo Ministro da Cultura (Lei nº 6.292, de 15.12.75, o qual poderá examinar todo o procedimento, anulando-o, se houver ilegalidade, ou revogando a decisão do órgão técnico, se contrária ao interesse público, ou, finalmente, apenas homologando-a;

Obs: Art. 9º, III, foi revogado pelo DL – 3866/41, cabendo recurso ao Presidente da República.

8. O tombamento só se torna definitivo com a sua inscrição em um dos Livros do Tombo que, na esfera federal, compreende, nos termos do art. 4º, do DL – 25/37:

Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;

Livro do Tombo das Belas Artes;

Livro do Tombo das Artes Aplicadas;

Livro do Tombo Histórico.

Feitas essas observações, que muito ajudam a compreender pragmaticamente o instituto em tela, analisemos agora o ato instituidor do tombamento em si.

iv) Quanto à quantidade de bens atingidos:

a) individual

b) coletivo

Quanto ao tombamento individual não há dúvida, já que o mesmo ato administrativo atingirá um único e determinado bem. O problema está no tombamento coletivo, que os doutrinadores preferem chamar geral.

Não nos parece correto ou, até mesmo, conveniente chamar de geral qualquer tipo de tombamento, isto porque poderá dar a idéia de que incidirá sobre uma generalidade de bens indeterminados, o que não é possível, como já tivemos a oportunidade de ver. Por isso, parece-nos mais correto dizer tombamento coletivo, caso em que dois ou mais bens são tombados por um mesmo ato administrativo, mas todos devidamente discriminados.

v) Tombamento de uso

Tem-se denominado tombamento de uso aquele pretenso tombamento que é instituído com o fim de limitar a utilização de determinado bem imóvel, destinando-o exclusivamente a atividades artístico culturais.

Obviamente que é ilegítima essa intervenção, por duas razões: a) o tombamento não pode ir além do que o Decreto-lei n.º 25/37 prescreve em termo de conteúdo, e isso não encontra amparo na legislação, como tivemos a oportunidade de conferir linhas atrás; b) esse tipo de exigência acaba por retirar das mãos do proprietário a titularidade do bem, por vias transversas.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal rechaçou a possibilidade de se instituir o chamado tombamento de uso no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 219.292-MG. Confira-se a ementa do acórdão:

"Tombamento de bem imóvel para limitar sua destinação à atividades artístico-culturais. Preservação a ser atendida por meio de desapropriação. Não pelo emprego da modalidade do chamado tombamento de uso. Recurso da Municipalidade do qual não se conhece, porquanto não configurada a alegada contrariedade, pelo acórdão recorrido, do disposto no art. 216, § 1.º, da Constituição" [152].

j. Indenização

Figurando o tombamento como espécie de intervenção branda na propriedade, é de se dizer que, em regra, não merecerá o proprietário do bem tombado, como anunciado no conceito dado ao instituto pelo prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (item II, C, a infra), qualquer indenização.

Além de se poder invocar essa regra como fundamento para a gratuidade do tombamento, podemos reforçar a argumentação com mais dois motivos.

Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorre em relação às limitações administrativas, o tombamento de determinado bem não tem o condão de impedir que o seu proprietário exerça qualquer atividade nele ou com ele - e, lembre-se, nem por isso as limitações administrativas geram, em regra, o dever de indenizar. Os condicionamentos impostos são tão somente o dever de conservação, a vedação à destruição ou desfiguração e a necessidade de se pedir autorização ao IPHAN para retirar o bem móvel e objeto de tombamento do País.

Desde que, assim, o uso da propriedade tombada não implique em infração àqueles limites, qualquer atividade poderá ser exercida nela ou com ela, de modo que não há falar em prejuízo merecedor de reparação.

Confirmando essas considerações, assim se manifestou o Supremo Tribunal Federal:

"A finalidade do tombamento é conservar a coisa, reputada de valor histórico ou artístico, com a sua fisionomia característica.

Mas essa preservação não acarreta necessariamente a perda da propriedade, o proprietário não é substituído pelo Estado; apenas se lhe retira uma das faculdades elementares do domínio, o direito de transformar e desnaturar a coisa" [153].

Em segundo lugar, ao contrário do que ocorre com as servidões - que nem por isso geram o dever de indenizar -, o tombamento não confere à Administração Pública o direito de usar a propriedade, chegando, no máximo, a impor ao proprietário do bem atingido o dever de suportar a fiscalização das autoridades competentes, o que, também, não causa qualquer prejuízo concreto.

Lembre-se, ainda, de que o tombamento de uso é figura estranha ao nosso ordenamento jurídico, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal já noticiada anteriormente (item II, C, i infra).

Assim, não existindo probabilidade de dano, pelo menos em tese, com a instituição do tombamento de um bem, seja ele móvel ou imóvel, material ou imaterial, não há que se falar, em regra, de indenização por tombamento.

Celso Antônio Bandeira de Mello não se pronuncia expressamente sobre essa questão em relação especificamente ao tombamento. Entretanto, por considerar esta uma espécie de servidão administrativa - com o que não podemos concordar - afirma a necessidade de o Poder Público indenizar o proprietário do bem tombado, sempre que houver prejuízo efetivo, traduzido num real declínio de sua expressão econômica ou numa subtração de utilidade fruída por seu titular [154].

Até aí, tirando o fato de o mestre paulista considerar o tombamento espécie de servidão administrativa, teoricamente não apresentou qualquer distinção em relação ao que pensamos sobre o tema. Mas se no âmbito teórico discrepância não há, o mesmo não se pode dizer do plano prático. Expliquemos o motivo.

A regra para as servidões administrativas é a de que não gerará dever de indenizar, salvo se resultar num real e concreto prejuízo para o proprietário do bem gravado. Todavia, as situações práticas em que esse prejuízo se verifica não são raras, sendo lícito, talvez, afirmar constituem a maioria dos casos.

Diferentemente, embora a regra teórica quanto ao dever de indenizar seja a mesma das servidões administrativas, no tombamento difícil fica vislumbrar hipóteses em que prejuízos decorram de sua instituição. De modo que se pode afirmar que, geralmente, não se verificará o dever de indenizar o particular em decorrência de tombamento de seu bem.

Não obstante o que se afirma como regra, hipóteses há em que, a pretexto de se estar instituindo um tombamento, o Poder Público desapropria o bem de forma indireta, por esvaziar todo o seu conteúdo econômico. Vejamos, para ilustrar, o seguinte trecho do acórdão do Supremo Tribunal Federal em que se enfrentou caso dessa natureza:

"Embora de extração constitucional, o tombamento não pode - e não deve - ser invocado pelo Estado como causa de exoneração de seu dever de indenizar aqueles que, como os particulares ora agravados, expondo-se à ação desenvolvida pelo Poder Público na defesa do patrimônio cultural, vêm a sofrer prejuízos materiais de ordem econômica resultantes da utilização governamental desse instrumento de limitação ao uso da propriedade privada" [155].

Esses casos têm sido apreciados inclusive pela doutrina mais conservadora, como a de Hely Lopes Meirelles, que afirmava:

"O tombamento não obriga a indenização alguma, salvo se as condições de conservação da coisa acarretarem despesas extraordinárias para o proprietário, caso que deverão ser suportadas pelo Poder Público, ou realizada a desapropriação do bem tombado (art. 19)" [156].

Portanto, somente o caso concreto definirá a situação da intervenção estatal na propriedade através do tombamento no tocante à questão da indenização, sendo esta devida sempre que ficar provado o dano efetivo.

A característica básica do tombamento é a sua gratuidade, porque, a princípio, não se retira do titular do bem tombado nenhum direito. Por causa disso, o ato de tombamento não pode obstar ou tornar economicamente inviável a posição do bem.

A título de ilustração, vamos supor que determinado palacete, de inegável valor arquitetônico e histórico, o Poder Público ao tomba-lo, determina o direito de visitação pública, de 8h às 18h. Não obstante, entretanto, a importância e a relevância de que se reveste a medida, o Poder Público não pode transformar, o que é do proprietário-particular, em bem de todos. Aqui, está inviabilizando e retirando, do proprietário, o direito de propriedade, consagrado constitucionalmente, inc. XX, art. 5º. Eis uma caso típico em que a indenização do proprietário do bem tombado seja totalmente reconhecido, impondo-se a desapropriação, sob pena de prosperar uma demanda judicial, segundo inciso XXXV, art. 5º, do Texto Constitucional.

O tombamento é uma intervenção branda na propriedade, via de regra, não acarreta indenização.

Nossos Tribunais têm decidido, por reiteradas vezes, se o tombamento suprimir a utilização da atividade econômica, por exemplo, causando prejuízo, cabe indenização. Indenização, no tombamento, portanto, só se acarretar esvaziamento econômico do bem, dano.

O tombamento constitui-se, inegavelmente, numa contribuição que o proprietário deve dar para a preservação da memória cultural, histórica. Então, alguns tribunais passaram a seguir uma orientação da Suprema Corte, hoje já superada, de que não cabe indenização, mesmo que o tombamento seja total, até porque o proprietário não tem o domínio afetado, continua sendo dono e tendo à livre disposição do seu bem, só não podendo altera-lo naqueles aspectos efetivados pelo tombamento.

A partir da década de 90, começou uma enorme discussão, batalha judicial, pretendendo a revisão desta orientação. Por quê? Porque começaram a ocorrer, com maior freqüência, tombamentos coletivos, bairros inteiros tombados, cidades, áreas litorâneas. Esses tombamentos coletivos começaram a despertar os estudiosos do tema. Uma coisa é um proprietário suportar, sozinho, os encargos decorrentes da preservação do imóvel tombado, singularmente; outra coisa, é o proprietário suportar os encargos de preservação de imóveis tombados coletivamente. Logo, não poderia ser dispensado o mesmo tratamento indenizatório. Surgem vários autores propondo a seguinte solução: no caso do tombamento coletivo, é admissível manter a tese do descaimento da indenização. Se toda uma cidade é tombada, todos os imóveis desta cidade sofrerão, por igual, as conseqüências do tombamento e, aí, nenhum proprietário poderia argüir quem está em situação de desigualdade, perante os demais proprietários. Conseqüentemente, não cabe indenização, porque não houve perda ou diminuição em relação ao mercado. Mas, no tombamento singular, deveria ser revista a posição de alguns tribunais e da própria doutrina, para que se possa admitir a indenização. Supondo que um prédio é escolhido para ser a lembrança de uma determinada fase da história ou de um certo estilo arquitetônico ou de um episódio da história local ou nacional. Nenhum outro é alcançado por este tombamento. Então, isto está impondo, isoladamente, a um proprietário uma eventual depreciação, o que causaria uma situação de injustiça, pois desigualaria este proprietário em relação aos demais proprietários. Só este deveria responder pela preservação da memória. A enfocada proposta, que tem sido feita de 10 anos para cá, não encontra pacífico entendimento. Hodiernamente, há juízes entendendo que não há o cabimento de indenização, quando se tratar de tombamento, seja coletivo, seja singular.

k. Controle

Esse item mereceria análise sob duplo aspecto: a) controle do ato de tombamento; b) controle da preservação do patrimônio cultural brasileiro. Entretanto, nos fixaremos, aqui, no segundo deles, deixando o primeiro para ser analisado no ponto final.

Sabidamente, não basta tombar o bem histórica ou culturalmente significante para que esteja garantida a sua preservação. Necessário se faz um acompanhamento a ser desenvolvido pelas autoridades administrativas competentes. E não foi por outro motivo que previu o art. 20 do Decreto-lei n.º 25/37 o dever jurídico negativo do proprietário do bem tombado consistente em ter de permitir a vigilância permanente pelo IPHAN, com vistas à verificação do cumprimento dos demais deveres impostos por ocasião da instituição do tombamento. Mas não é somente essa a modalidade de controle da preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Ao lado desse controle efetivo e concreto a ser realizado pelos agentes públicos, as sanções previstas pela legislação se nos afiguram como instrumentos de intimidação, principalmente a contida no art. 21, ipsis litteris:

"Art. 21 - Os atentados cometidos contra os bens de que trata o art. 1.º desta lei são equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional".

No mesmo diapasão, a norma do art. 15, § 3.º do mesmo Decreto-lei n.º 25/37 impõe conseqüências de ordem criminal aos infratores da legislação protetora dos bens tombados, nos seguintes termos:

"Art. 15 -....... ................................................

§ 3.º - A pessoa que tentar a exportação de coisa tombada, além de incidir na multa a que se referem os parágrafos anteriores, incorrerá nas penas cominadas no Código Penal para o crime de contrabando" [157].

Impondo sanções tão graves, que chegam a por em jogo até a liberdade do transgressor da norma protetiva do patrimônio cultural, o Decreto-lei n.º 25/37 institui um controle psicológico, que compele à sua fiel observância.

Por fim, temos ainda o controle realizado pela sociedade civil, através das ações populares (CRFB/88, art. 5.º, LXXIII e Lei n.º 4.717/65) e do exercício do direito de petição (CRFB/88, art. 5.º, XXXIV), e pelo Ministério Público, através das ações civis públicas (CRFB/88, art. 129, III e Lei n.º 7.347/83).

Repare, entretanto, que, dentre os citados, os instrumentos processuais propriamente ditos (que desencadeiam processo judicial) não poderão ser utilizados antes de o Poder Público promover o tombamento do bem. Vale dizer, não se poderá exigir que o Executivo, através de seu órgão competente, tombe determinado bem por ordem judicial, pois, como vimos, é discricionário o tal ato administrativo, somente se podendo falar em vinculação naquelas duas hipóteses vistas anteriormente, nunca no que se refere ao momento de se proceder ao tombamento. Burlar esse limite equivaleria a atentar contra a independência dos Poderes (art. 2.º da CRFB/88).

Questão interessante do tombamento é a que incita seu controle judicial. Pode-se ou não submeter ao Poder Judiciário a revisão do ato de tombamento? O Poder Judiciário pode rever o ato de tombamento, como qualquer outro ato administrativo, quanto a dois aspectos:

No dever do devido processo legal, a legislação que rege o tombamento, seja a nível federal, estadual ou municipal. Não há tombamento, sem se prever um processo administrativo, inclusive, com oportunidade para manifestação do proprietário. Logo, se o ato final do tombamento materializou-se sem ou com supressão de etapas, há anulação e isso é suscetível ao Poder Judiciário, porque não se observou as etapas do processo administrativo previsto em lei.

O outro espaço concerne ao plano da validade, ou seja, os elementos estruturais do ato. È dever da Administração Pública expedir o ato de tombamento com uma estrutura íntegra. Não se pode admitir que o ato de tombamento eventualmente seja maculado por vícios em um ou mais desses elementos. O vício mais freqüente, que atualmente vem sendo controlado pelo Poder Judiciário, refere-se ao motivo. Qual o motivo do tombamento? O componente motivo deve ser informado por fatos e pelo próprio direito. O tombamento, como ato administrativo que é, requer motivação obrigatória, isto é, a exposição das justificativas, das razões de sua edição e, ainda, se os motivos forem insuficientes, ambíguos, obscuros, incorretos, o tombamento será inválido. E para se aferir o motivo, o magistrado determinará perícia, para ouvir técnicos-historiadores, pois é preciso efetivamente certificar-se de que há valor histórico, por exemplo, para fundamentar o controle do ato. Não é o agente administrativo só que fará esse exame. Se ficar demonstrado que houve o motivo alegado, o assunto está encerrado do ponto de vista do controle judicial.

l. Cancelamento

Como se pode extrair de tudo o que disse até aqui, o cancelamento do tombamento poderá se dar tanto pela via administrativa como pela via judicial, quer por vício de legalidade, quer por questões de oportunidade e conveniência.

No primeiro caso, caberá ao próprio IPHAN tal revogação ou ao Presidente da República, nos termos do disposto no artigo único do Decreto-lei n.º 3.866/41, quer por vício de legalidade (anulação), quer por juízo de oportunidade e conveniência (revogação). Veja-se a regra de direito positivo citada:

"Artigo único - O Presidente da República, atendendo a motivo de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto por qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos Municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de acordo com o Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937".

É certo que a lei só fala em motivo de interesse público, o que remete a um controle meramente político. Entretanto, como não deixa dúvidas a leitura da Súmula n.º 473 do Supremo Tribunal Federal, poderá a Administração anular seus atos sempre que neles verificar vício de legalidade, senão vejamos:

"473 - A Administração pode anular seus próprios atos eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".

No que toca ao controle judicial do ato de tombamento, já vimos que haverá essa possibilidade, não só no que se refere ao controle de legalidade, mas também quanto à valoração do bem tombado como de interesse histórico e ou cultural, conforme polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal anteriormente transcrita, com apoio na obrigatoriedade de motivação e na teoria dos motivos determinantes. Essa é uma das quatro hipóteses em que se admite a invasão do mérito administrativo pelo Poder Judiciário.

Em sentido contrário, entretanto, posiciona-se o professor José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

"Quanto ao motivo do ato, repetimos, é importante distinguir os ângulos de que se reveste. Se o proprietário provar que não existe qualquer fator que implique a necessidade da intervenção protetiva do Estado, o ato estará eivado de vício e poderá ser invalidado na via judicial.

Não cabe, porém, nessa via discutir os aspectos administrativos que conduzem à valoração do sentido cultural do bem e à necessidade de sua proteção. Essa parte do ato é insindicável pelo Judiciário" [158].

D. Ocupação Temporária

Sumário:

a. Conceito; b. Fundamentos; c. Natureza jurídica; d. Objeto; e. Conteúdo; f. Sujeitos ativo e passivo; g. Instituição; h. Indenização; i. Extinção.

a. Conceito

Denomina-se ocupação temporária a espécie de intervenção branda na propriedade através da qual o Estado se apossa momentaneamente de bem particular (ou, com algumas restrições a mais, públicos) para executar serviço ou obra pública.

Ousando um pouco mais, abandonamos aqui a conceituação de outros autores e formulamos a nossa mesma. Mas isso não muda a nossa opinião sobre a necessidade de explorar as características do instituto sem se prender à tola tentação de reuni-los todos em uma única e simplificada sentença.

Portanto, passemos a explorar com mais liberdade esse instituto de tamanha importância.

b. Fundamentos

Mais uma vez deparamo-nos com o choque entre o interesse público e o direito de propriedade, devendo, como se sabe, prevalecer o primeiro, já que é superior e está a compor também o patrimônio do titular do direito de propriedade atingido pela intervenção, além de prestar auxílio a toda a coletividade, enquanto o uso exclusivo da propriedade somente prestigia o interesse privado de seu dono.

Além da supremacia do interesse público, porque não lançar luzes aqui também sobre a consagrada fórmula função social da propriedade, já que as obras e serviços públicos contemplados pela intervenção serão fruídos, em tese, por toda a coletividade? Obviamente não há razão para essa exclusão, razão pela qual aqui também se faz alusão aos arts. 5.º, XXIII e 170, III, ambos da Constituição da República.

Especificamente sobre a ocupação temporária, é a norma infraconstitucional que está a prever a sua existência. E, embora sua evocação se faça com algumas reservas, por razões várias, é o art. 36 do Decreto-lei n.º 3.365/41 que lhe respalda menos abstratamente, ipsis litteris:

"Art. 36 - É permitida a ocupação temporária, que será indenizada, a final, por ação própria, de terrenos não edificados, vizinhos às obras e necessários à sua realização".

Embora não seja o único dispositivo legal que faça referência à ocupação temporária, é geralmente este o que se aponta como fundamento específico dessa modalidade de intervenção branda na propriedade.

Derradeiramente, verifique-se que o art. 136, § 1.º, II da Constituição, apesar de usar a expressão "ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos" institui verdadeira requisição, como teremos a oportunidade de verificar. De modo que não seria muito correto pretender fundamentar o instituto em apreço no citado dispositivo constitucional.

c. Natureza jurídica

A ocupação temporária é forma independente de intervenção branda do Estado na propriedade. Não obstante, alguns doutrinadores tentam, mas sem sucesso, equipara-la ora às servidões administrativas, ora às requisições e ora à desapropriação.

José Carlos de Moraes Salles chega a afirmar que a natureza jurídica da ocupação temporária, seguindo a linha de raciocínio de Seabra Fagundes, é de arrendamento forçado [159]. Equivocada a lição, entretanto. Aqui, o ente interveniente não realiza contrato com o proprietário do bem ocupado. O Estado entra com a sua força, subjugando a vontade do particular.

Não se confundem a ocupação temporária e a servidão administrativa, posto que esta institui um direito real sobre a coisa alheia, dando uma idéia de permanência daquela situação; enquanto a ocupação temporária só defere a posse (exercício do poder de uso) de determinado imóvel, por período curto de tempo.

Não se confunde a ocupação temporária também com a requisição, ao contrário do que nos faz crer a lição da prof. Lúcia Valle Figueiredo, in verbis:

"Consoante se nos afigura, a ocupação temporária do imóvel tem, sob outro rótulo, idêntico regime ao da requisição, vertendo-se, todavia, sobre bem imóvel" [160].

Para chegar a essa conclusão, baseia-se, também, a citada autora no disposto no art. 136, § 1.º, II da CRFB/88, que chama de ocupação temporária o que, na verdade, é uma requisição.

A ocupação temporária, entretanto, somente incide, como veremos adiante, sobre bens imóveis, enquanto as requisições poderão ter como objeto bens móveis, imóveis ou até mesmo serviços. Mas ainda não é esse o ponto crucial da distinção.

Marca, como veremos, o instituto da requisição o fato de ser instituída em ocasião de necessidade urgente, o que justifica uma informalidade na sua instituição. Diferentemente, essa urgência não marca a ocupação temporária, razão pela qual deverá obedecer a algum formalismo para ser instituída.

Por fim, não se confundem a ocupação temporária e a desapropriação, ao contrário do que afirma Luiz da Cunha Gonçalves [161], por mais de uma razão.

Em primeiro lugar, a desapropriação retira do particular (ou, em determinados casos, de outro ente público) a propriedade, transferindo-a compulsoriamente para o patrimônio do ente interveniente; o que não ocorre com a ocupação temporária, que apenas concede direito de exercício de um dos poderes que integram o conceito de propriedade (uso).

Além disso, a ocupação temporária, como o próprio nome já diz, é instituída por pequeno prazo, enquanto a desapropriação é definitiva, importando na aniquilação perpétua do direito alheio.

Por todas essas razões, não nos parece haver lugar para dúvidas quanto ao fato de que a ocupação temporária é forma autônoma de intervenção do Estado na propriedade.

d. Objeto

Neste ponto, três perguntas serão respondidas, a saber: a) somente os bens imóveis, ou também os móveis, serão atingidos pela ocupação temporária? b) Quanto aos imóveis, somente os não edificados podem ser temporariamente ocupados? Somente por ocasião de uma desapropriação é que as ocupações temporárias serão instituídas?

Analisando a questão com os olhos voltados somente para o art. 36 do Decreto-lei n.º 3.365/41, a resposta seria, tranqüilamente, no sentido de somente os imóveis não edificados poderem ser objeto de ocupação temporária, por ocasião de uma desapropriação. Mas não é bem assim.

Para iniciar, diga-se que não encontramos registros, dentre os autores nacionais mais conhecidos [162], de opinião no sentido de ser possível a ocupação temporária de bem móvel. Ao contrário, o prof. José dos Santos Carvalho Filho afirma que "a ocupação temporária é instituto típico de utilização da propriedade imóvel" [163].

Mas ainda persistem as outras duas dúvidas.

Embora a maioria da doutrina já entenda ser possível a ocupação temporária completamente desvinculada da desapropriação, ainda se afirma com alguma freqüência que somente terrenos baldios poderão ser objeto de ocupação temporária. Neste sentido é a lição da prof. Odília Ferreira da Luz Oliveira, que transcrevemos:

"... a ocupação temporária pode ser definida como a utilização temporária e direta pelos agentes da Administração Pública de terrenos baldios de domínio privado, próximos de obras públicas ou de locais onde se realizam outras atividades públicas, com a finalidade de instalar depósitos de material, mediante indenização posterior" [164].

Repare que a redação acima não utiliza uma vírgula após "obras públicas", de modo que quando fala em "locais onde se realizam outras atividades públicas" está se referindo a terrenos baldios próximos desses locais. Mas não nos parece correto restringir o alcance da ocupação temporária dessa forma, por apego excessivo àquele dispositivo legal, ainda mais se considerarmos que não é o único que trata do assunto em tela.

O prof. Hely Lopes Meirelles dizia que, normalmente, o fundamento dessa modalidade de intervenção na propriedade é a necessidade de local para funcionar como canteiro de obras. Portanto, ao se utilizar do termo normalmente, está dizendo que quase sempre, mas nem sempre. E, ao definir o instituto não fazia essa restrição, senão vejamos:

"Ocupação temporária é a utilização transitória, remunerada ou gratuita, de bens particulares pelo Poder Público, para a execução de obras, serviços ou atividades públicas ou de interesse público" [165].

Diógenes Gasparini, por sua vez, admite que haja no terreno pequena construção ou aproveitamento qualquer. O importante é que não haja alteração substancial ou ocupação do bem. Vejamos as suas palavras:

"Embora se fale em espaço ou área livre, admite-se a ocupação temporária, mesmo que no interior da área haja pequena construção ou um aproveitamento qualquer" [166].

Ao nosso ver, não importa se a ocupação temporária se dá sobre bem imóvel edificado ou não, a despeito do que se lê no art. 36 do Decreto-lei n.º 3.365/41. E, a npartir do seguinte exemplo, procuraremos evidenciar a verdade do que se afirma.

Nas eleições para cargos políticos, como de Presidente da República, Deputados, etc., muito comum é que se utilize o Tribunal Regional Eleitoral (vide Lei n.º 4.737/65 - Código Eleitoral) de prédios públicos ou particulares, geralmente escolas, para a realização do escrutínio. Essa utilização é por tempo determinado e não é caracterizada por motivo de urgência, já que as eleições têm data certa para acontecer.

Portanto, esse modo de intervenção do Estado na propriedade é, nada mais nada menos, do que uma ocupação temporária sobre bem imóvel edificado. Aliás, essa é também a opinião do prof. José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

"Exemplo típico de ocupação temporária de terrenos particulares contíguos a estradas (em construção ou em reforma), para a alocação transitória de máquinas de asfalto, equipamentos de serviço, pequenas barracas de operários etc. É também caso de ocupação temporária o uso de escolas, clubes e outros estabelecimentos privados por ocasião das eleições; aqui a intervenção visa a propiciar a execução de serviço público eleitoral" [167].

Portanto, não se pode negar a possibilidade de se instituir ocupação temporária sobre bens imóveis edificados, autorizando o exercício, pela Administração Pública, do poder de uso da propriedade atingida por prazo certo.

e. Conteúdo

Ao distinguirmos a ocupação temporária das servidões administrativas, quando falávamos da natureza jurídica do instituto em tela, afirmamos que a primeira, ao contrário da segunda, não confere ao Poder Público um direito real sobre a coisa alheia.

As servidões administrativas, como tivemos a oportunidade de ver (item II, B, c infra), conferem ao Poder Público a titularidade do poder de uso da propriedade (o que não se confunde como direito real de uso), o que se justifica pela necessidade de permanência na utilização daquele bem.

Diferentemente, a ocupação temporária, que é instituída para suprir necessidade transitória da Administração Pública, somente lhe confere direito ao exercício do poder de uso do bem atingido, figurando o Poder Público como mero possuidor do imóvel, nos termos do art. 485 do Código Civil.

Portanto, a ocupação temporária tem conteúdo muito menos denso e muito mais suave do que as servidões administrativas.

f. Sujeitos ativo e passivo

Qualquer pessoa integrante da Federação poderá se beneficiar da propriedade particular (ou, em determinados casos, das públicas também) através da ocupação temporária. É a mesma regra aplicável às servidões administrativas.

Mas por que meios se fará essa intervenção?

José Carlos de Moraes Salles vinculando a idéia de ocupação temporária à realização de uma obra pública, diz que sempre será a intervenção autorizada por decreto, baixado pela entidade de direito público interno que houver determinado a execução da obra. E, se fosse essa a única hipótese de ocupação temporária, estaria plenamente correto.

Entretanto, não só o chefe do Poder Executivo, através da edição de decreto declaratório de utilidade pública, poderá concretizar a intervenção, como também outros Poderes.

O exemplo sempre utilizado para demonstrar essa verdade é o da ocupação temporária para fins eleitorais, hipótese em que a instituição da ocupação temporária se faz por ato do Poder Judiciário, que obviamente não pode nunca ser um decreto.

No caso de ocupação temporária para fins de estudos arqueológicos, como previsto no art. 13 da Lei n.º 3.924/61, a intervenção se fará via decreto, como não deixa dúvidas o disposto no respectivo parágrafo único:

Art. 13 -....... .................................................

Parágrafo único - À falta de acordo amigável com o proprietário da área onde situar-se a jazida, será esta declarada de utilidade pública e autorizada sua ocupação pelo período necessário à execução dos estudos, nos termos do art. 36 do Decreto-lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941".

Quanto às concessionárias de serviço público, empresas públicas e sociedades de economia mista, valem aquelas mesmas considerações feitas por ocasião do estudo das servidões administrativas (item II, B, f, infra). Vale dizer, poderão essas entidades se beneficiar com a ocupação temporária, mas desde que a declaração de utilidade pública se faça pelo chefe do Executivo do poder concedente.

Neste sentido é a lição de José Carlos Moraes Salles, in verbis:

"As autarquias, empresas concessionárias de serviço público e entidades paraestatais autorizadas a simplesmente promover desapropriações (art. 3.º do Dec.-lei 3.365/41) só poderão ocupar temporariamente terrenos não edificados e necessários à execução das obras desde que haja ato, baixado pela entidade (União, Estados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios) a que estejam vinculadas, autorizando a ocupação" [168].

Passando, agora, a análise para o lado passivo da relação que se estabelece, verificamos, inicialmente, que a ocupação temporária deverá atingir a imóvel certo, perfeitamente discriminado no decreto declaratório de sua utilidade pública (ou no ato de outra autoridade competente).

Agora aquela velha e conhecida pergunta: poderá recair sobre bem de pessoa jurídica de direito público? E em que hipóteses?

Poderá, sim, recair sobre bem de pessoa jurídica de direito público, e nas mesmas hipóteses em que se houver de admitir a instituição de servidão administrativa. Por isso remetemos, aqui também, o leitor ao item em que tratamos desse assunto (item II, C, f), para não ser repetitivo.

g. Indenização

Imagine as duas situações a seguir narradas:

a) Um terreno não edificado num bairro residencial, para o qual não há qualquer projeto de construção por parte do proprietário, que o tem como forma de investimento, é ocupado pelo Município para funcionar como canteiro de obra pública realizada por este último no terreno ao lado. Ao final de 1 (um) ano, as obras terminam e, com elas, a ocupação temporária;

b) Num clube, onde existem vários campos de futebol, muito bem conservados e freqüentados, um grupo de pesquisadores, calcados em decreto declaratório de utilidade pública, ocupam temporariamente o terreno para fins de pesquisa arqueológica, acreditando existir por ali fósseis. E acabam por proceder a escavações na área, concluindo, ao final de 4 meses, que suas expectativas falharam, nada havendo de importante no local.

No primeiro caso, salta aos olhos que nenhum prejuízo teve o proprietário do terreno com a sua utilização pelo Poder Público, já que estava inutilizado e sem qualquer perspectiva de oferecer, a curto prazo, frutos.

Diferentemente, na segunda situação, o proprietário do clube amarga sensível prejuízo com a sua utilização nas pesquisas, já que, durante o tempo em que são realizadas, perde com a ausência da clientela e, ao final, ainda tem despesas com a reconstituição dos campos, dever não cumprido pelos pesquisadores [169].

Inegável a distinção entre as duas situações. E, para ser coerente, deve o Direito tratá-las com regras díspares, para que não seja injusto.

Assim, há de se aplicar aquela velha e, ao nosso ver, correta regra: causando prejuízo a ocupação temporária, emerge o dever de indenizar; não o causando, não há que se falar em indenização.

Não obstante, o prof. José Carlos de Moraes Salles, por considerar - equivocadamente ao nosso ver - a ocupação temporária um arrendamento forçado, entende que o ocupante deve, "durante todo o tempo pelo qual perdurar a ocupação, pagar uma renda ao proprietário do bem ocupado" [170].

E se baseia, também, para afirmar esse dever, no art. 36 do Decreto-lei n.º 3.365/41, que fala, expressamente, no dever de indenizar.

Conclui, então o citado autor da seguinte forma:

"Nada impede, portanto, que, baixado o decreto declaratório da necessidade de ocupação de determinado terreno não edificado, acordem as partes interessadas sobre o valor do arrendamento, que poderá ser pago semanal, quinzenal, mensal, trimestral, semestral ou anualmente, conforme se avençar" [171].

Permissa maxima venia, não podemos concordar com essa conclusão, não só pelo fato de discordarmos, como já tivemos a oportunidade de dizer, dessa natureza da ocupação temporária atribuída pelo mestre citado, mas também à vista da cláusula constitucional da função social da propriedade.

Se o proprietário do terreno não lhe dá a destinação que se pode esperar (de acordo com o plano diretor, nos termos do art. 182 da CRFB/88), omitindo-se quanto ao valor social que tem seu imóvel, não poderá exigir que a sua utilização pelo Poder Público, por necessidade ou utilidade pública, seja remunerada. É o que pensamos.

Diferente é a situação em que, a pretexto de se instituir uma ocupação temporária, o Estado se utiliza permanentemente do imóvel, instalando ali serviço público contínuo. Neste caso, configurar-se-á verdadeira desapropriação indireta, a ser indenizada pela via ordinária, ainda que se esteja em frente a situação semelhante àquela primeira por nós narrada. A única hipótese de confisco autorizado pela Constituição é a do art. 243, no caso de terreno utilizado para o cultivo de plantas psicotrópicas.

E, com razão, o mesmo prof. José Carlos de Moraes Salles diz que se a ocupação perdurar, injustificadamente, por tempo superior ao necessário para a conclusão da obra (o que será apreciado de acordo com o princípio da razoabilidade), poderá ser ajuizada ação de reintegração de posse, por constituir aquela conduta verdadeiro esbulho possessório [172].

Mas, ainda aqui, advirto: só será possível o sucesso nessa ação possessória se não for instalado no local serviço público contínuo. Do contrário, incidirá a regra do art. 35 do Decreto-lei n.º 3.365/41, resolvendo-se a questão em perdas e danos.

Diga-se, por fim, que não nos parece correto o critério adotado pelo prof. José dos Santos Carvalho Filho, consistente em afirmar a necessidade de indenizar somente se a ocupação temporária for vinculada à desapropriação; não o sendo, não seria exigível a reparação [173].

Podemos utilizar os mesmos casos narrados no início deste item para evidenciar a fragilidade desse critério, posto que, no primeiro deles, onde pode-se vislumbrar a vinculação a uma desapropriação, nenhum prejuízo houve para o proprietário do terreno ocupado. E, no segundo, onde não há a tal vinculação, o prejuízo é evidente, merecendo reparação.

h. Extinção

Se para a instituição da ocupação temporária somos daqueles que entendem necessária a declaração de utilidade pública do bem (por decreto ou não), para a extinção parece-nos despicienda qualquer formalidade. Vale dizer, a extinção da ocupação temporária será um mero fato administrativo.

Neste sentido é a opinião do prof. José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

"Quanto à extinção, não haverá muita dificuldade em identificar a situação que a provoca. Se a ocupação visa à consecução de obras e serviços públicos, segue-se que a propriedade deve ser desocupada tão logo esteja concluída a atividade pública. Prevalece, pois, o princípio de que, extinta a causa, extingue-se o efeito" [175].

Embora não se utilize da expressão fato administrativo, é o que prega o citado mestre, como não deixam dúvidas as sua palavras transcritas.

E. Requisição

Sumário:

a. Conceito; b. Fundamentos; c. Natureza jurídica; d. Objeto; e. Conteúdo; f. Sujeitos ativo e passivo; g. Instituição; h. Indenização; i. Extinção.

a. Conceito

Muito comum nos filmes de Hollywold é a cena do heróico policial que, na busca ao transgressor das leis penais, se utiliza do carro de um cidadão, que passeia calmamente pelas ruas da violenta cidade. Eis aí um típico caso de requisição, que também encontra amparo no direito brasileiro.

Nos dizeres de Hely Lopes Meirelles,

"requisição é a utilização coativa de bens ou serviços particulares, pelo Poder Público, por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante e indenização ulterior, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias" [176].

Trata-se de uma modalidade de intervenção branda na propriedade, em regra, mas que pode se converter em intervenção drástica nalgumas hipóteses. Sempre será drástica, no entanto, quando incidir sobre bens de consumo imediato, isto é, aqueles que se desintegram com a sua utilização normal.

b. Fundamentos

Além dos fundamentos genéricos utilizados para todas as modalidades de intervenção do Estado na propriedade, quais sejam, a supremacia do interesse público e a função social da propriedade, as requisições encontram dois outros fundamentos específicos também no corpo da Constituição, a saber:

"Art. 5.º........ ...............................................

XXV - No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano".

Este tem sido o único citado pela grande maioria dos doutrinadores como fundamento específico das requisições. Entretanto, apesar de não se utilizar dessa nomenclatura, é típico caso de requisição o previsto pelo art. 136, § 1.º, II da Constituição. Vejamos:

"Art. 136 -....... ..............................................

§ 1.º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - omissis;

II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes".

A expressão "ocupação e uso temporário" é impreciso, como bem leciona o prof. José Maria Pinheiro Madeira em suas aulas transcritas e de publicação autorizada. E isso se afirma por dois motivos básicos: a) em primeiro lugar, a premência que marca a intervenção em tela é típica das requisições, o que não ocorre nas ocupações temporárias; b) além disso, a incidência sobre bens móveis e serviços não pode ocorrer, como vimos, nas ocupações temporárias.

Por tudo isso, é de se admitir a desnecessidade de a Constituição consagrar esse instituto no capítulo que trata do estado de defesa, posto que, se o disposto no seu art. 5.º, XXV é suficiente para legitimar tal modalidade de intervenção em épocas de normalidade institucional, com maior razão será evocável em períodos de legalidade extraordinária.

c. Natureza Jurídica

Aqui, dois pontos devem ser analisados, para que se afaste a possibilidade de as requisições serem confundidas com outras espécies de intervenção do Estado na propriedade.

Em primeiro lugar, já vimos anteriormente que as requisições não se confundem com a ocupação temporária, muito embora a prof. Lúcia Valle Figueiredo advogue essa tese (vide item II, D, c infra). Dada a anterior análise da questão, não nos alongaremos desnecessariamente nesse ponto.

Em segundo lugar, ainda quando as requisições chegarem a retirar do particular a sua propriedade, não poderão ser confundidas com a desapropriação, posto que estas não estão marcadas pela urgência e necessidade transitória e devem ser previamente indenizadas. Além disso, é de se observar que a desapropriação nunca poderá recair sobre os serviços de alguém.

Cite-se ainda o fato de que a indenização pela desapropriação é sempre prévia, enquanto na requisição, só será devida se houver dano efetivo, sendo paga posteriormente.

Assim, a requisição é uma modalidade autônoma de intervenção do Estado na propriedade, que poderá ser branda ou drástica, mas sempre para suprir necessidade premente e transitória da Administração Pública, podendo recair sobre bens móveis ou imóveis, assim como sobre os serviços.

Merece algum destaque a questão da transitoriedade nas requisições supressivas, já que se poderia vislumbrar aí uma incompatibilidade, pelo fato de haver transferência da propriedade, com caráter de definitividade. Mas incompatibilidade não há.

Forçosamente transitória é a necessidade da Administração Pública e não a situação de privação da utilização do bem requisitado que experimenta o proprietário. De modo que a coisa pode lhe ser arrancada do patrimônio definitivamente, quer pelo consumo normal, quer por fato estranho à vontade do agente público encarregado de sua utilização. Mas, em qualquer caso, não haverá desapropriação.

Na desapropriação, o que a Administração Pública visa, imediatamente, é a transferência da propriedade, para desenvolver com ela alguma atividade de interesse público. Já nas requisições supressivas, a transferência da propriedade é uma conseqüência da intervenção e não um fim (ainda que imediato).

Neste sentido é a lição de José Carlos de Moraes Salles, que cita Pontes de Miranda, senão vejamos:

"Nem mesmo quando os bens requisitados são consumíveis ou fungíveis ocorre desapropriação. Neste caso, o bem se extingue pelo simples fato do consumo e não porque tenha havido expropriação. Daí a afirmação de Pontes de Miranda no sentido de que ‘o Estado, requisitando gêneros, pode devolvê-los; se são consumidos, a perda da propriedade foi pelo consumo’" [177].

d. Objeto

A requisição, como amplamente divulgado pela doutrina, poderá recair sobre a propriedade, móvel ou imóvel, ou sobre serviços particulares.

Imagine que uma chuva forte provoque o desmoronamento de várias casas de uma determinada região, configurando uma situação de calamidade pública. Os sobreviventes ficam, além de feridos, desabrigados. Na cidade, de interior, só há um hospital, particular, com capacidade para atender à necessidade pública e urgente que se instala. O prefeito, então, requisita à empresa proprietária do hospital não só as suas instalações, como também os seus serviços médicos, para dar assistência aos feridos e demais necessitados. Eis aí um caso típico de requisição, abrangendo, também, os serviços como objeto.

Importante destacar, todavia, uma distinção feita pelo art. 2.º, III da Lei Delegada n.º 4/62, ipsis litteris:

"Art. 2.º - A intervenção consistirá:

I - omissis;

II - omissis;

III - na desapropriação de bens, por interesse social, ou na requisição de serviços, necessários à realização dos objetivos previstos nesta lei".

Note-se que a redação do dispositivo legal transcrito dá a entender que as requisições somente poderiam recair sobre os serviços; enquanto que, se a intervenção tivesse por objeto um bem, seria caso de desapropriação. Entretanto, não é esse o significado que se tem atribuído a esse diploma legal.

Embora seja verdadeiro que não pode a desapropriação recair sobre os serviços, não significa que as requisições não possam recair sobre bens, móveis ou imóveis. Aliás derruba esse entendimento a redação do inciso XXV do art. 5.º da CRFB/88, antes transcrito.

Para confirmar esse entendimento, antes da nossa última Constituição, o Decreto-lei n.º 2/66, em seu art. 1.º, já confirmava o que aqui dizemos. Vejamos:

"Art. 1.º - A Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB), na qualidade de órgão incumbido de aplicar a legislação de intervenção do Estado no domínio econômico, poderá, quando assim exigir o interêsse público, requisitar bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população".

Também na doutrina, essa é a orientação consagrada. Cite-se, por todos, Diógenes Gasparini:

"Em situação de urgência, ou não, e quase sempre sem o caráter de definitividade, a Administração Pública, com ou sem indenização posterior, pode utilizar bens e serviços particulares... " [178].

e. Conteúdo

O conteúdo das requisições varia de acordo com a situação concreta e de acordo com a natureza do bem que figurar como objeto da intervenção.

Assim, de início, já podemos identificar a necessária distinção entre os casos de requisição branda e os de requisição drástica. Na primeira hipótese, o conteúdo da intervenção será, coerentemente, leve, restringindo-se ao exercício do poder de uso da propriedade alheia. Já na segunda, haverá a transferência plena da propriedade.

Quanto à requisição de serviços, não há que se falar em poderes da propriedade, porque não incide sobre esse tipo de bens. O conteúdo, será, aqui, sempre bastante sereno, até porque não se pode admitir a desapropriação de serviços.

f. Sujeitos ativo e passivo

Em primeiro lugar, há de se distinguir, no que tange ao sujeito ativo da modalidade de intervenção em tela, entre competência para legislar sobre requisição e competência para requisitar bens ou serviços.

Nos termos do art. 22, III da Constituição da República, é competência exclusiva da União legislar sobre requisições civis e militares, senão vejamos:

"Art. 22 - Compete privativamente à União legislar sobre:

I - omissis;

II - omissis;

III - requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra".

Entretanto, qualquer esfera de governo poderá requisitar bens ou serviços particulares, tendo em vista que o inciso XXV do art. 5.º da Constituição fala em "Poder Público", não discriminando que entes da Federação poderão se beneficiar com a intervenção.

Todavia, as requisições que funcionem como meio de intervenção do Estado no domínio econômico, somente à União será deferida a competência.

Quanto ao sujeito passivo, este será devidamente individualizado, podendo ser um particular ou até mesmo o Poder Público, sempre com a ressalva de que, neste último caso, deverá ser observada aquela conhecida hierarquia de interesses de que trata a já transcrita decisão do Supremo Tribunal Federal.

g. Instituição

A requisição será instituída sempre com suporte legal, mas por ato administrativo.

Discute-se se o ato de requisição é ou não discricionário. E, aqui, esbarramos, mais uma vez naquela situação de dúvida, como aconteceu como estudávamos o tombamento. E de forma semelhante se resolve a questão.

A doutrina tem feito a distinção entre dois aspectos do ato de requisição. E a conclusão alcançada é a seguinte: trata-se de ato vinculado, se relacionarmos esse ato com a necessidade de existência de uma situação emergencial e de perigo público. De outra forma, haveremos de admitir a discricionariedade da Administração na valoração desse perigo público.

Diferentemente do tombamento, entretanto, haverá hipóteses em que o ato, dada a iminência de um resultado negativo da situação que justificar a requisição, não se materializará num documento formal. Seria, a título ilustrativo, esdrúxulo exigir do policial que vai em busca do marginal a comunicação à sua chefia que este, por ato próprio ou de outro superior, autorizasse a intervenção.

Entretanto, a legalidade do ato interventivo, bem como a arbitrariedade, disfarçada de discricionariedade, poderão ser apreciadas pelo Judiciário, utilizando-se, no segundo caso, o juiz do princípio da razoabilidade, que funcionará como instrumento legitimador da invasão do mérito administrativo.

h. Indenização

Inicialmente, é de se fazer, também aqui, a distinção entre a requisição branda e a requisição drástica. No último caso, sempre haverá a indenização, seja pela destruição do bem requisitado, seja pelo seu total consumo, pela utilização normal. Já na hipótese de intervenção branda, o dever de indenizar somente se verificará no caso concreto, aplicando-se aquela regra comum a todas as outras formas de intervenção do Estado na propriedade.

Assim, se houver dano efetivo à coisa, a indenização será devida. Do contrário não. Mas outras hipóteses serão indenizáveis também.

Tomemos como exemplo aquela situação do policial na busca do bandido em fuga. Se o sujeito passivo é um empresário que está se dirigindo ao aeroporto para tomar o avião do Rio de Janeiro para São Paulo e, por conta do ato interventivo, se atrasa perde a passagem, também esse valor deverá integrar o montante a ser indenizado.

Tem-se, assim, que será coberto pelo Estado todo o prejuízo causado ao particular por ocasião da requisição, por mais amplo que seja.

Analise-se em separado a questão da requisição de serviços. Aqui, absolutamente, não temos caso de intervenção do Estado na propriedade, mas da mesma forma será cabível indenização pelos prejuízos causados aos particulares que tiverem seus serviços requisitados. Mas, importante que se diga, a indenização não será uma forma de remuneração pelos serviços prestados.

Naquela situação hipotética do hospital, por exemplo, o que se indenizaria seria o custo do material utilizado no atendimento dos feridos e os lucros cessantes, pela ocupação dos leitos pela população necessitada.

Em qualquer caso, entretanto, a indenização será posterior, ao contrário do que ocorre com a desapropriação, como se infere da disposto no art. 5.º, XXV da CRFB/88.

i. Extinção

À semelhança do que ocorre com a ocupação temporária, a extinção das requisições decorrem de mero fato administrativo, não sendo necessária a edição de ato administrativo para que ocorra, embora nada impeça que se dê dessa forma.

Assim, esvaindo-se a situação de perigo que justificou a requisição, deverá o Poder Público cessar a intervenção, liberando o particular do ônus de solidariedade. E se, ainda depois disso, o Poder Público mantiver a intervenção, poder-se-á recorrer ao Judiciário para fazer cessar a arbitrariedade. Mas, à vista da necessidade de se produzir prova complexa, não será remédio eficaz o mandado de segurança.

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Sobre o autor
José Maria Pinheiro Madeira

professor da pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estácio de Sá, professor do Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos, professor do CEPAD (Centro de Estudos Pesquisa e Atualização em Direito), professor palestrante do IBEJ (Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MADEIRA, José Maria Pinheiro. Institutos afins à desapropriação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3433. Acesso em: 24 nov. 2024.

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