O princípio da boa-fé objetiva.

Uma visão civilista do princípio da boa-fé aplicada aos contratos civis

28/11/2014 às 14:57

Resumo:


  • O princípio da boa-fé objetiva é um conceito amplo, relacionado à ética e valores como lealdade e veracidade.

  • A boa-fé objetiva é um dever de conduta nos contratos, abrangendo desde as tratativas até a execução, impondo padrões de cooperação e lealdade entre as partes.

  • Na legislação brasileira, a boa-fé objetiva está presente no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, sendo um importante elo entre as relações privadas e os preceitos constitucionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Trata-se de uma análise do conceito e características do inovador e tão falado princípio da boa-fé objetiva.

O primeiro princípio a ser analisado será o da boa-fé objetiva, o qual não pode ser entendido por apenas um conceito simplista, haja vista que vários autores adotam, cada um, uma definição para defini-lo.

  Com efeito, o princípio da boa-fé aproxima-se muito do conceito de ética, pois seu núcleo normativo contém valores como a lealdade, correção e veracidade. Verifica-se que o sentido do princípio é bastante abrangente, havendo quem defenda que o princípio do equilíbrio do contrato e o da função social derivam dele. O que se pode constatar é que todos esses princípios, juntos, repudiam o abuso na liberdade de contratar, ícone do individualismo.

  O seu fundamento constitucional assenta-se na ideia de que a pessoa não vive isolada, mas é parte integrante de uma comunidade e por isso sua vontade não pode ser soberana às demais vontades sociais. Ou seja, esse princípio de Direito Civil deriva do objetivo fundamental da Federação que é construir uma sociedade solidária, que prima pelo respeito ao próximo em qualquer relação jurídica. Segundo Teresa Negreiros, a

 “incidência da boa-fé objetiva sobre a disciplina obrigacional determina uma valorização da dignidade da pessoa, em substituição à autonomia do indivíduo, na medida em que se passa a encarar as relações obrigacionais como um espaço de cooperação e solidariedade entre as partes”.

 A boa fé incide desde as tratativas até a fase posterior de execução do contrato , sendo ainda considerada uma fonte de obrigação de ambos os contratantes. A doutrina defende uma tripartição das funções da boa-fé, que são: função interpretativa e integrativa, norma de criação de deveres jurídicos e norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos. Essas três funções da boa-fé traduzem que a relação contratual é hoje considerada uma relação de cooperação e respeito mútuo, e não mais de satisfação pessoal.

  No entanto, há que se diferenciar a boa-fé como novo princípio contratual, pautada no princípio constitucional da solidariedade, daquela outra boa-fé, baseada na análise subjetiva do estado de consciência do agente por ocasião de um certo comportamento ocorrido, chamada de boa-fé subjetiva. O Código Civil de 2002 trata dela no artigo 1201, que dispõe ser de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Resumindo, sob a ótica subjetiva, a boa-fé é analisada através das intenções da pessoa cujo comportamento se queira qualificar. 

  No entanto, quando transportada para os contratos, a noção de boa-fé ganha sentido diferente daquele entendido por boa-fé subjetiva, pois caracteriza-se como verdadeira norma de conduta, não sendo apenas uma qualificação do comportamento do sujeito. Em vista disso, é chamada de boa-fé objetiva.

  Desta forma, a boa-fé objetiva caracteriza-se por ser um dever de conduta, ao invés de um estado psicológico do agente, e impõe um padrão de conduta aos contratantes no sentido da recíproca cooperação, de lealdade de conduta.

  No entanto, pode-se dizer que os conceitos de boa-fé objetiva e subjetiva possuem um elo no conceito, que é o chamado “dever de correção”.

  No direito positivo brasileiro, a boa-fé objetiva aparece expressamente no Código de Defesa do Consumidor, artigo 51, inciso IV, e no Código Civil de 2002. Dispõe o Código de Defesa do Consumidor.

 “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

...

 IV-"estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade...”

 Já o Código Civil dispõe no seu artigo 422:

  “Art. 422. Os contraentes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé.”

A introdução do princípio da boa-fé no CDC tornou-o uma legislação inovadora, sendo o primeiro a prever a boa-fé após a promulgação da Constituição Federal, promovendo uma mudança de mentalidade na interpretação dos contratos, sejam esses consumeiristas ou não.

  Assim, como o Código de Defesa do Consumidor todo o sistema jurídico brasileiro passou a contar com a cláusula geral de boa-fé positivada, tornando-se esta cláusula um importante elo entre as relações de negócio privado e os preceitos constitucionais, o que possibilitou a aplicação do princípio da boa-fé para outros campos do direito privado, que não as relações de consumo.

 Ademais, a boa-fé objetiva atua como um liame de intercessão entre vários ramos do direito, seja como critério de interpretação e integração, seja para impor deveres entre contratantes, ou limitar seus direitos.

  No Código Civil de 2002 a boa-fé refere-se à interpretação dos negócios jurídicos (art.113), ao exercício de direitos (art.187) e impõe norma de conduta aos contratantes (art. 422).

  A boa-fé objetiva, como visto, possui três especializações: a equidade, a razoabilidade e a cooperação.

  A equidade pode ser definida como a retidão, o correto agir, avaliado de acordo com o caso concreto. De acordo com o artigo 127 do Código de Processo Civil, a equidade somente pode ser utilizada quando houver expressa autorização legal. Um típico exemplo é o artigo 413 do Código Civil, que dispõe claramente o dever do juiz reduzir o montante da penalidade quando claramente excessivo.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

  Contudo, observa-se que nos tribunais brasileiros há decisões pautadas na equidade que não encontram permissão legal, mas justificam os julgadores a sua utilização através do artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil  ( Decreto Lei n° 4657/42), que dispõe que o juiz deverá buscar os fins sociais ao qual a lei pretende buscar.

  No entanto, utilizando a função interpretativa-integrativa da boa-fé, os julgadores poderiam resolver muitas questões relacionadas à equidade, pautando-se apenas nesse princípio, sem que haja necessidade de ferir o art. 127 do Código de Processo Civil.

  A razoabilidade demonstra-se presente quando as partes estipulam, por exemplo, uma cláusula contratual que se torna, durante a execução do contrato, extremamente onerosa para uma das partes. Ou seja, não é razoável que uma das partes suporte um ônus ao qual não poderia prever quando firmou a obrigação.

  Cumpre salientar que essa tripartição da boa-fé atende apenas uma classificação ideal, pois na realidade essas três funções se complementam, podendo ser difícil definir no caso concreto qual tipo de boa-fé está incidindo.

  Já a função da boa-fé relacionada com a teoria do abuso do direito significa que esta limita ou até mesmo impede o exercício de direitos que surgem da relação contratual. O abuso de direito está previsto no Código Civil no artigo 187 que dispõe:

“Art. 187. Comete ao ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente s limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes.”

  A boa-fé e o abuso de direito relacionam-se na medida em que aquela torna-se parâmetro para valoração do comportamento. Desta forma, um comportamento lícito será considerado abusivo se causar a quebra da confiança ou frustrar legítimas expectativas, o que contraria a boa-fé dos contratantes.

  Na Europa, a restrição do exercício de direitos subjetivos, decorrente do princípio de boa-fé, resulta da teoria dos atos próprios, teoria essa que reconhece a existência de um dever por parte dos contratantes de adotar uma linha uniforme de atuação. Se o comportamento posterior e inconsciente de um dos contratantes for incompatível com as atitudes tomadas no decorrer do contrato e causar um desequilíbrio contratual (chamado de tu quoque) ou se, embora o comportamento não seja incompatível com o contrato, mas determina a quebra de confiança entre os contratantes, (chamado de venire contra factum proprium), está presente a teoria dos atos próprios.

  A teoria do adimplemento substancial também tem por base o princípio da boa-fé, e prescreve que ainda que a lei ou o contrato prevejam a possibilidade de rescisão do contrato, se um dos contratantes houver realizado em parte substancial a sua prestação, o credor está vedado de rescindir o contrato. Percebe-se nesse caso uma limitação ao exercício de um poder jurídico.

  No caso do venire contra factum proprium, difícil é definir critérios que valores quais os atos humanos devem ser considerados contrários à boa-fé, eis que no decorrer da execução do contrato pode haver eventuais imprevistos, causando a alteração do comportamento dos contratantes. Esse é um ponto que deve ser analisado caso a caso, e só ferirá a boa-fé objetiva quando não for justificável o comportamento.

  Nota-se nos dias atuais que a delimitação do sentido da boa-fé objetiva vem sendo traçado pela doutrina e jurisprudência, tendo em vista os conceitos vagos trazidos pelo Código Civil. Constata-se que  princípio da boa-fé impõe um padrão de conduta leal, correta e honesta, que se materializa em exigências de acordo com o caso concreto, que não podem ser definidas de antemão.

 É evidente, no entanto, que algumas relações contratuais a noção do que seja boa-fé pode variar de acordo com a posição jurídica dos contratantes, pois se nenhuma das partes é vulnerável ou legalmente merecedora de tutela, a ideia de boa-fé difere daquela existente entre um conglomerado de lojas e um consumidor.

  De fato, o que ocorreu foi a amplitude de deveres das partes para além do que está escrito nas cláusulas dos contratos.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Maira Cauhi Wanderley

Procuradora Federal, membro da AGU.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos