Não é demais, ainda que prefacialmente, salientar que o neoconstitucionalismo, já imbricado no ordenamento jurídico, tem como um de seus pilares de sustentação a Constituição Federal no centro do sistema, e, ainda, carga valorativa nodal – axiológica – na dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
Está-se diante, portanto, do pós positivismo em que há destaque certeiro no princípio da força normativa (Konrad Hesse).
Desta feita, qualquer lei hierarquicamente inferior à Constituição Federal que com esta colida acaba por incorrer na acoimada inconstitucionalidade material ou nonoestática que nos dizeres do constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso “expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou o ato normativo e a Constituição Federal ou princípio constitucional1.
Pois bem.
Tecidas tais, resumidas, considerações mister se faz mencionar que são princípios do direito constitucional de família inerentes à guarda: dignidade da pessoa humana2, melhor interesse da criança3 e afetividade4.
Dignidade da pessoa humana nos dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet é “o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana5”.
Da mesma sorte, o melhor interesse da criança6, atualmente expresso no Estatuto da Criança e Adolescente em seu inciso IV7 do parágrafo único do art. 100, também, desde 1989, já era preconizado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança do qual Brasil é signatário89.
Preconiza seu art. 3º, 1., que “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.
Não menor importante salientar, da mesma forma, que a afetividade é princípio entrelaçado nas relações familiares e precipuamente interligado com a dignidade da pessoa humana.
Ultrapassada explanação dos princípios constitucionais que regem não só as relações afetas à guarda como em todo o direito de família é curial, neste passo, mencionar algumas diretrizes relacionada à sua espécie compartilhada ou joint custody como é denominada no direito alienígena.
Referida modalidade teve início na Inglaterra há mais de 20 anos e tem aplicação em outros países europeus e da América do Norte, entretanto, em todas as hipóteses, tão somente, quando há consenso entre o casal e sempre visando o melhor interesse da criança10.
Lado outro, digno de nota é que em nosso país, mesmo com as alterações promovidas pela Lei nº 11.698, de 2008 na legislação substantiva civil, apenas, 5,4% dos casais optaram pela modalidade de guarda compartilhada dos filhos segundo recente pesquisa divulgada pelo IBGE11.
Tal, parca minoria, reflete a dificuldade de, a partir das peculiaridades e contextualização do caso concreto, o magistrado, lançando mão dos princípios constitucionais, decidir que a guarda compartilhada seja a melhor solução para o casal separado/divorciado, no exercício do poder familiar, mesmo por que a ruptura dos casamentos, em sua acaçapante maioria, é conflituosa.
A propósito, Pablo Stolze Gagliano12 e Rodolfo Pamplona Filho asseveram que “na esmagadora maioria dos casos, quando não se afigura possível a celebração de um acordo, muito dificilmente poderá o juiz “impor” o compartilhamento da guarda, pelo simples fato de o mau relacionamento do casal, por si só, colocar em risco a integridade dos filhos. Por isso, somente em situações excepcionais, em que o juiz, a despeito da impossibilidade do acordo de guarda e custódia, verificar maturidade e respeito no tratamento recíproco dispensado pelos pais, poderá, então, mediante acompanhamento psicológico, impor a medida”.
Neste viés, inclusive, já decidem os Tribunais Pátrios conforme se infere da jurisprudência, respectivamente, dos Egrégios Tribunais de Justiça de Goiás, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. GUARDA COMPARTILHADA. RELAÇÃO CONFLITOSA ENTRE OS GENITORES. IMPOSSIBILIDADE. RISCO DE OFENSA AO PRINCÍPIO QUE TUTELA O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. IMPROCEDÊNCIA. 1 - A guarda compartilhada não pode ser exercida quando os genitores possuem uma relação conflito, sob o risco de se comprometer o bem-estar do menor e perpetuar o litígio parental. 2 - Na definição da guarda de filhos menores é preciso atender, antes de tudo, aos seus interesses, retratados pelos elementos informativos constantes dos autos. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.(TJGO, APELACAO CIVEL 418671-93.2012.8.09.0087, Rel. DES. ALAN S. DE SENA CONCEICAO, 5A CAMARA CIVEL, julgado em 15/05/2014, DJe 1547 de 22/05/2014)
TJSP. Relator(a): Erickson Gavazza Marques Comarca: Presidente Epitácio Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 11/11/2009 Data de registro: 24/11/2009 Outros números: 006.54.515400-0 Ementa: MODIFICAÇÃO DE GUARDA - DECISÃO QUE DEVE SER TOMADA DE MODO A ATENDER O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA - DEFERIMENTO DA GUARDA COMPARTILHADA QUE NÃO SE MOSTRA VIÁVEL DIANTE DA AUSÊNCIA DE CONSENSO ENTRE OS GENITORES - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO Relator(a): Alexandre Lazzarini Comarca: São Paulo Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 04/02/2014
Data de registro: 05/02/2014 Ementa: GUARDA. TUTELA ANTECIPADA. COMPARTILHADA OU UNILATERAL. INTENSA LITIGIOSIDADE. 1- Decisão não acolheu, em tutela antecipada, pedido do pai de guarda compartilhada. 2- O alto grau de litigiosidade entre os pais da criança não autorizam, pelos elementos trazidos no agravo, a modificação da guarda unilateral da mãe para a forma compartilhada. 3- Recurso não provido TJMG: Relator(a): Des.(a) Raimundo Messias Júnior Data de Julgamento: 08/10/2014 Data da publicação da súmula: 17/10/2014 Ementa: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - DIVÓRCIO - GUARDA DOS FILHOS - INCONFORMISMO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - PRETENSÃO DE GUARDA COMPARTILHADA - INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS PARA O DEFERIMENTO - MANUTENÇÃO DA GUARDA UNILATERAL ACORDADA ENTRE OS DIVORCIANDOS E HOMOLOGADA NA SENTENÇA - INTELIGÊNCIA DO ART. 1584, § 2º DO CPC - DECISÃO MANTIDA. 1. Conforme entendimento remansoso na doutrina e na jurisprudência, a chamada guarda compartilhada é subsidiária à guarda acordada entre os pais(CC, art. 1284, § 2º), e só deve ser instituída quando for a vontade dos genitores. Além disso, é necessário que exista um amistoso relacionamento e potencial capacidade de diálogo para o exercício conjunto da guarda. 2. Uma vez que a guarda unilateral das filhas foi alvo de acordo entre os genitores e homologada em Juízo, infundada a pretensão recursal, notadamente se o genitor não demonstra interesse em compartilhar a guarda, e se o pleito não vem respaldado em estudos social e/ou psicossocial indicativo da pertinência da medida. 3. Recurso não provido.
Processo: Agravo de Instrumento Comarca de Origem: Comarca de Santa Cruz do Sul Tribunal: Tribunal de Justiça do RS Seção: CIVEL Classe CNJ: Agravo de Instrumento Assunto CNJ: Busca e Apreensão de Menores Relator: Luiz Felipe Brasil Santos Decisão: Acórdão Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA. BUSCA E APREENSÃO. GUARDA COMPARTILHADA. Mesmo reconhecendo a necessidade do contato da filha com o genitor, não é recomendável o deferimento, pelo menos por enquanto, da guarda compartilhada, modalidade sabidamente de dificílimo êxito na sua aplicação prática e somente viável quando fruto do consenso, o que não se verifica na presente demanda, cujo clima de litígio entre o ex-casal é intenso. A menina, atualmente com 2 anos de idade, sempre esteve na guarda materna, mantendo, no entanto, contato com o pai e a família paterna, o que deve ser preservado. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70060973567, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 20/11/2014)
Destarte, nas situações em que o casal não está alinhado com a forma de educar a criança e em que não dispõe a tomar decisões conjuntas, mantendo um relacionamento marcado por rivalidade e desavenças, referido ambiente não é o mais propício ao exercício da guarda compartilhada.
Demais disso, na seara da psicologia jurídica, a guarda compartilhada é vislumbrada com, inúmeras ressalvas se delimitada no dissenso, pois, se houver a emissão de orientação contraditória e de duplo vínculo, poderá aumentar a incerteza, a ansiedade e a insegurança da criança/adolescente13.
Psicólogos de diversos países apontam que para eficácia da referida guarda alguns requisitos devem, necessariamente, estar presentes na relação entre os genitores, a saber141516:
1) necessidade de entender claramente o que é a guarda e ajustarem um acordo entre eles;
2)certo grau de flexibilidade psicológica e de maturidade que permita se submeterem aos sacrifícios e aos compromissos necessários para o exercício dessa tarefa comum, compartilhando responsabilidade;
3)ambos devem mostrar uma forte capacidade parental;
4) capacidade de efetivamente um cooperar com o outro;
5) estabelecer entre eles um modo de vida que respeite eventuais problemas e não os transformem em impedimentos, reais ou presumidos, para o cumprimento do acordo sobre a guarda.
Outros estudos17, ainda, sinalizam para o mesmo norte:
1) se houver dificuldade de comunicação entre os pais para cooperar conjuntamente na solução dos problemas dos filhos;
2) se os filhos forem “usados” como “armas” ou “expiação” dos conflitos parentais;
3) alto nível de hostilidade e conflitualidade parental;
4) a guarda compartilhada pode desencadear a falta de disposição dos pais em assumir a responsabilidade pelas crianças e construir um compromisso;
5) expõe os filhos a um impacto psicológico devastador, caso um dos genitores não queira mais este modelo de guarda;
6) não minimiza o impacto negativo do divórcio sobre as crianças nos primeiros anos depois da ruptura conjugal;
7) não há provas de que a guarda conjunta seria o melhor para todas as fases, ou para a maioria dos envolvidos.
A partir destes premissas, é possível, ainda sob o viés psicológico, fulcrar pela impossibilidade da guarda compartilhada como regra18:
a) porque em direito de família, cada caso é um caso, com suas peculiaridades e exige uma decisão baseada em dados concretos;
b) porque em direito de família não há possibilidade de criar fórmulas prontas para solução de litígios, haja vista ser incompatível com o principal princípio orientador do direito de família: a dignidade da pessoa humana , valorizada dentro de uma perceptiva de repersonalização das relações de família.
Considerando todos os preceitos firmados pelos campos científicos do direito e psicologia, é apropriado afirmar que a imposição legislativa ou a tentativa de tornar a guarda compartilhada ope legis no dissenso, além de colidir frontalmente com preceitos constitucionais, retroage à idéia, há muito superada, de que o magistrado e é la bouche de la loi, ratificada por Montesquieu19.
Ao contrário, segundo Gadamer “a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa da aplicação. A complementação produtiva do direito que se dá aí está obviamente reservada ao juiz” (GADAMER, 2005, p. 452).
Igualmente foi abandonada a ideia de que há subsunção imediata dos fatos à norma.
Como dito por Haft “o dogma da subsunção é insustentável. A aplicação do direito é – também – um trabalhar criativamente a lei. A lei é apenas a possibilidade do direito. Só na aplicação ao caso concreto ela se torna direito real. O direito é histórico. À margem do processo metódico de descoberta do direito aplicável não pode existir uma correção objetiva do direito” (KAUFMANN [org.], 2002, p. 315-316).
Por tais motivos caberá ao magistrado, a partir das peculiaridades apresentadas no caso concreto, baseando-se no nó górdio dos princípios valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, melhor interesse da criança e afetividade decidir se a melhor solução para a criança/adolescente será a guarda unilateral, alternada ou mesmo compartilhada e não, ao contrário do que propõe a alteração legislativa tornar, o que nos dias que correm corresponde a, apenas, 5,4 %20 dos casos, a ultima opção (compartilhada) como regra no dissenso.
1BARROSO. Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2ª ed., p.29.
2Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III - a dignidade da pessoa humana;
3Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
4Nas diretrizes firmadas por Maria Berenice Dias in Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. pag. 66.
5Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.Pag. 124.
6O Enunciado n. 102 da I Jornada de Direito Civil, prevê que “a expressão ‘melhores condições’ no exercício da guarda, na hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança”.
7Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.(...) Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas: IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto
8Decreto Lei nº 99.710, de 21 de novembro de 1990.
9§3º do art. 5º da Constituição Federal: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
10LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias Monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 269.
11http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/12/17/ibge-guarda-compartilhada-de-filhos-dobra-em-2011-mas-ainda-representa-so-5,4-do-total.htm
12GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família. São Paulo: Saraiva. 2011, pág. 600
13TRINDADE. Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. 7º ed. 2014. Livraria do Advogado. Pag. 398-399
14GARDENER. R.A. Family Evaluation in Child Custody Litigation, Creative Therapeutics. New Jersey: Cresskill, 1982.
15FERRACUTI, F.; GIARRIZZO, C. L'affidamento conguio o alternato dei menori. Valutazione psichiatrico-forense dei vintage e delle problematiche. In: Criminologia, medicina criminologica e Psichiatria Forense. Vol. IV. Milano: Giufrré, 1987.
16GULOTA, G.; V,; SANTI, G. Separazione, Divorzio e Affidamento dei Figli. Milano: Giuffré, 1983.
17WALLERSTEIN, Judit S.; BLAKESLEE, Sandra. Sonhos e realidade no divórcio: marido, mulher e filhos dez anos depois. Saraiva: 1991.
18CARBONERA. Silvana Maria. Guarda de Filhos: na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000, p. 151.
19 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
20 Como já explanado anteriormente segundo dados do IBGE.