Sumário: 1. Dever-poder discricionário no regime jurídico-administrativo. 2. Elementos dos atos administrativos. 3. Mérito do ato administrativo. 4. O problema dos "conceitos jurídicos indeterminados". 5. Considerações finais
1. Dever-poder discricionário no regime jurídico-administrativo
A lei estabelece as competências que permitirão aos agentes públicos desempenhar as funções e observar os fins que a mesma contém. Dentro dessas competências, caberão aos agentes públicos atuar no sentido de satisfazer os interesses da coletividade de forma concreta e efetiva.
Quando as circunstâncias e a matéria tratada permitem, a lei procura prever com maior precisão possível as necessidades e problemas com os quais se depararão o agente público. Tenta ainda impor o comportamento que este deve manter, assim como as soluções que devem ser escolhidas.
Todavia, decorre dos preceitos que norteiam o Estado de Direito o princípio de que as normas integrantes do sistema jurídico devem pugnar por conceitos gerais e abstratos, haja vista a repulsa à exceção, ao favoritismo, às perseguições e à tutela de interesses individuais em detrimento aos interesses da coletividade.
O legislador é incapaz de apresentar normas que em seu seio estejam presentes todos os elementos de fato dos problemas enfrentados pela administração pública. E, causa temeridade à sociedade que se estabeleça normas por demais específicas, enfim, riscos aos direitos e garantias individuais e da própria coletividade.
Portanto, se a lei pode definir comandos específicos, sem que isso ameace os princípios básicos do Estado de Direito, assim o fará. Caso a instituição dessas diretivas se mostrem possivelmente danosas ao interesse público ou insuficientes para a sua satisfação, caberá à lei criar o necessário espaço à administração pública poder atuar com eficiência(1).
No âmbito do regime jurídico-administrativo, o dever-poder discricionário consiste na prerrogativa concedida pelo ordenamento jurídico à administração pública, de modo implícito ou explícito, para a prática de atos administrativos, com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo(2).
Existindo espaço para o administrador em optar por um comportamento adequado à resolução do problema posto, ou melhor, para fazer uma apreciação subjetiva do caso concreto, sustentado por critérios de conveniência e oportunidade, há discricionariedade.
O espaço para o emprego do juízo de oportunidade pela administração pública somente é admitido se houver uma norma jurídica que lhe confira tal poder. Em face das imposições do princípio da legalidade administrativa, o dever-poder discricionário deve estar previsto em lei ou pela própria Constituição em vigor. Todos os instrumentos de ação administrativa tributam sua existência ao ordenamento jurídico. Se este não o estabelecer, não há dever-poder discricionário.
As omissões legislativas nem sempre implicam em dever-poder discricionário. Se disserem respeito a algum elemento do processo de formação do ato administrativo material, há espaço para a utilização do juízo de oportunidade na ação administrativa. A Administração não cria instrumentos através do dever-poder discricionário, mas sim do dever-poder regulamentar, meio adequado para a integração e concretização do regime jurídico-administrativo.
Nesse caso, não estaremos diante de discricionariedade administrativa, mas sim de discricionariedade legislativa no âmbito da Administração. O espaço de discricionariedade no bojo do dever-poder regulamentar variará consoante o estabelecido na a lei, ato legislativo material que lhe é indiscutivelmente superior (a Constituição rejeitou os regulamentos autônomos). Mas não deixa de ser uma discricionariedade diversa da administrativa, mais ampla, mais profunda, haja vista lidar não com a constituição de preceitos individuais e concretos, mas sim, com a de preceitos genéricos e abstratos.
A lei institui a discricionariedade quando verifica que a administração pública, mais próxima dos problemas por ela enfrentados, evidentemente, mostra-se melhor preparada para tomar as decisões e escolhas mais adequadas ao uso concreto.
Também sua existência fica, necessariamente, na dependência, ao nosso ver, das circunstâncias do caso concreto, onde o interesse público se torna mais visível. Como instrumento da ação administrativa, o dever-poder discricionário está subordinado ao interesse público, sua razão ideológica de ser. A opção da administração deve ser a melhor, a que melhor supra o interesse público na situação jurídica subjetiva. É uma obrigação oriunda do princípio constitucional da eficiência.
Se há dúvida quanto à melhor solução, há espaço para o emprego do juízo de oportunidade pelo administrador. Caso contrário, a eficiência administrativa, conjugada com os demais princípios constitucionais, desconstitui in concreto o que a norma abstratamente admitiu.
Se o caso concreto, assim permitindo as circunstâncias e o próprio ordenamento jurídico, admitir mais de uma decisão, confirma-se o espaço que a lei abstratamente admitiu.
Para identificarmos a zona da discricionariedade no ato administrativo, é preciso antes definir seus elementos. O modo de como a lei os define determinará a possibilidade do emprego ou não do juízo de oportunidade na concretização do regime jurídico-administrativo pela norma individual e específica que tradicionalmente vem se denominando ato administrativo.
2. Elementos dos atos administrativos.
Ato administrativo material consiste em uma norma jurídica, individual e concreta, expedida pela administração pública (ou por quem detiver competência administrativa), que se destina à formação e determinação das situações jurídicas subjetivas que serão regradas pelo regime jurídico-administrativo. Destina-se a constituir, modificar, extinguir ou reconhecer uma relação jurídica de direito administrativo, a ser regida por esse sistema de princípios e regras de direito.
O desenvolvimento da atividade administrativa é uma sucessão de atos e fatos jurídico-administrativos, onde se busca a concretização do interesse público tutelado pela norma de direito administrativo positivo.
Fato jurídico-administrativo compreende toda e qualquer ocorrência, social ou física, reconhecida pelo regime jurídico-administrativo como geradora de efeitos jurídicos. O ato administrativo também é um fato jurídico, que difere dos demais por representar uma norma jurídica, que passa a integrar o regime jurídico-administrativo a partir de sua existência material.
Embora não haja unanimidade na doutrina, no que concerne a questões terminológicas, os atos administrativos são formados por cinco elementos: competência, motivo, objeto, forma, e finalidade.
A competência consiste na atribuição legal de deveres-poderes para o desempenho da função estatal, o impulso gerador do ato(3). A regra de competência define o órgão ou agente público habilitado para produzir o ato administrativo(4).
O motivo compreende os pressupostos fáticos e jurídicos que autorizam a edição e concretização do ato(5). Subdivide-se em motivo material e motivo legal.
O motivo material é a situação jurídica subjetiva que ensejou a expedição do ato administrativo. Já o motivo legal, advém da previsão legal abstrata do fato jurídico-administrativo(6).
O motivo não se confunde com a motivação, pois esta compreende a exteriorização daquele. Na motivação, expõe-se a regra de direito que habilita a ação administrativa concreta (motivo legal), a situação jurídica subjetiva que serviu de base para a decisão (motivo material), bem como a enunciação da relação de pertinência lógica entre o motivo material e o motivo legal(7)
O objeto corresponde ao conteúdo do ato administrativo, isto é, "a criação, modificação, ou comprovação de situações jurídicas concernentes a pessoas, coisas ou atividades sujeitas à ação do Poder Público"(8), ou, como prefere José Cretella Júnior(9), "efeito prático na ordem administrativa que o sujeito pretende alcançar mediante ação direta ou indireta".
A forma representa o revestimento exterior do ato administrativo(10), através do qual o ato administrativo ingressa no ordenamento jurídico.
A finalidade representa o interesse público específico a ser atingido ou tutelado com a edição e concretização do ato administrativo, "o resultado prático que se procura alcançar pela modificação trazida à ordem jurídica"(11), ou, nas precisas palavras de Caio Tácito(12):
"(...) é o sentido teleológico do ato, é o objetivo jurídico material a que se dirige, em última análise, a ação administrativa".
Como bem leciona José Cretella Júnior(13):
"No ato, parte-se do motivo, passa-se pelo objeto, para atingir-se determinado fim".
Os elementos do ato administrativo serão construídos, no caso da discricionariedade administrativa, pela convivência do juízo de juridicidade com o juízo de oportunidade do administrador.
3. Mérito do ato administrativo
A ordem jurídica constitui a fonte dos poderes administrativos. Tanto pode esgotar todas as condições de seu exercício como remeter a apreciação subjetiva da Administração. A distinção das formas de atribuição legal dos poderes administrativos corresponde aos conceitos de vinculação e discricionariedade. A distinção entre atos vinculados e atos discricionários representa um ponto significativo na questão do poder discricionário.
Nos atos vinculados, a lei constrói o ato administrativo com todas as especificações necessárias a sua aplicação, devendo o administrador ater-se ao seu enunciado e aos requisitos e elementos indispensáveis a plena eficácia jurídica da medida prevista, sob pena de invalidade, pois:
"A legalidade do ato administrativo, cujo controle cabe ao Poder Judiciário, compreende não só a competência para a prática do ato e de suas formalidades extrínsecas, como também de direito e de fato, desde que tais elementos estejam definidos em lei como vinculadores do ato administrativo"(14).
Todo o ato administrativo tem um mínimo de vinculação. A lei não abdica de indicar a competência, a forma e nem a finalidade dos atos administrativos materiais. Mas também é difícil um ato inteiramente vinculado(15).
Só há uma escolha para o agente público, quando investido no poder vinculado: a que a lei objetivamente determinar, e tipificada de modo a não causar qualquer dúvida ou controvérsia na concretização da lei. Predominam as especificações da norma jurídica sobre os elementos deixados livres aos agentes públicos.
O administrador tem o poder discricionário na medida do disposto em lei, restrito naqueles elementos deixados livres pela mesma. A administração pública está incondicionalmente a ela subordinado, devendo observar no exercício do poder discricionário o mínimo de juridicidade, e o interesse público(16). As prerrogativas discricionárias estão sujeitas à mensuração imposta pela lei. A remissão legal ao juízo subjetivo do administrador não pode ser mais do que parcial, e não total:
"En efecto, si resulta que el poder es discrecional en cuanto que es atribuido como tal por la Ley a la Administración, resulta que esa Ley ha tenido que configurar necessariamente varios elementos dicha potestad y que la discrecionalidad, entendida como libertad de apreciación por la Administración, sólo puede referirse a algunos elementos, nunca a todos, de tal potestad"(17).
A discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Nesta o poder público exorbita a esfera de sua competência e utiliza-se de instrumentos proibidos ou inadequados no cumprimento da finalidade legal, ou mesmo, ignora-a seguindo finalidades estranhas ao interesse público. O exercício do poder discricionário pressupõe a severa obediência aos parâmetros legais e a correta subsunção do caso concreto às categorias impostas pela lei. Seria uma incoerência se o Estado de Direito edificasse um poder, um instrumento, sem limites e, danoso ao ordenamento jurídico, para a administração pública.
E bem lembra José Cretella Júnior(18):
"Denomina-se discrição a faculdade outorgada ao agente público de decidir ou deixar de decidir dentro do âmbito demarcado pela norma jurídica, entendendo-se por arbítrio a faculdade de operar sem qualquer limite, em todos os sentidos, com inobservância de qualquer norma de direito".
A competência é sempre um elemento vinculado nos atos administrativos, objetivamente fixado pelo legislador. Não seria concebível, no Estado de Direito, a atribuição de prerrogativas e objetivos à administração pública sem a precedência da lei(19).
A forma não enseja apreciação discricionária, pois ao contrário do direito privado, onde esse elemento é deixado à autonomia da vontade do particular (quando a lei não prescreve nenhum), no direito administrativo, a forma usualmente é predeterminada pela lei. Não cabe à administração pública criar forma através da discricionariedade administrativa, mas pode faze-lo pelo exercício da atividade legislativa que lhe foi conferida com o reconhecimento legal do poder regulamentar.
Celso Antônio Bandeira de Mello(20) e Weida Zancaner(21), colocam a forma, junto ao conteúdo (ou objeto), como elemento do ato administrativo, ambos condicionando a sua existência. Esses juristas separam-na da formalização, que seria o pressuposto formalístico do ato administrativo, que indicaria o modo específico que a lei impõe para a exteriorização do mesmo. Este seria um dos elementos que determinaria a validade.
A distância entre a forma do ato e a forma legal pode ou não levar à invalidade, dependendo de sua relevância para a garantia do administrado. Se não houver prejuízo à esfera de direitos do cidadão, o ato administrativo viciado em sua forma pode ser convalidado. Mas isso não significa dizer que haja espaço discricionário na exteriorização do ato administrativo, pois a convalidação é um meio juridicamente aceito para a restauração da juridicidade do ato administrativo. Não há discricionariedade administrativa na quebra consciente de um requisito de validade.
Quanto à finalidade, a matéria é controvertida.
Parcela da doutrina aceita a influência de juízo de oportunidade na apreciação da finalidade. Poderia haver, o emprego desse critério na qualificação do interesse público, embora este sempre constitua elemento vinculado(22).
Caberia o juízo de oportunidade no fim imediato e específico do ato administrativo, desde que corroborasse o fim genérico expresso na lei(23).
Comentando o voto do jurista Miguel Seabra Fagundes, em acórdão proferido na ap. Cível nº1.422 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Victor Nunes Leal(24) expõe a posição do administrativista potiguar: "Entretanto, segundo esclarece o des. Seabra Fagundes, apoiado nos melhores autores, ‘no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o ato discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro’. Quanto à finalidade dos atos administrativos (discricionários ou vinculados), está ela sempre expressa ou implícita na lei; por isso mesmo, o fim legal, que é necessariamente um fim de interesse público, também constitui aspecto vinculado dos atos discricionários, susceptíveis, portanto, de apreciação jurisdicional".
Quanto aos atos administrativos materiais, não se pode falar efetivamente numa apreciação discricionária da finalidade legal, se ela foi univocamente expressa no texto legal, esgotando a formação do juízo de oportunidade. Já em se tratando de um fim político-econômico posto no texto normativo, a questão se torna mais complexa.
Podem estar abrigados nos atos administrativos, tanto formais quanto materiais, fins relacionados com a política econômica do Estado. Nos atos administrativos materiais, a competência, forma e finalidade permanecem vinculadas, sendo vedada a apreciação subjetiva do administrador do que foi politicamente esgotado pelo legislador ou pela própria Administração, quando aqueles desencadeiam a concretização normativa do ato administrativo dotado de força de lei material.
Já nos atos administrativos formais com conteúdo legislativo, há espaço para o emprego de juízo de oportunidade quanto à finalidade específica ou imediata. A discricionariedade legislativa constitui um processo de integração entre as demandas sociais, políticas e econômicas, e o sistema de direito positivo, garantindo sua efetividade social. Ao legislador compete qualificar o interesse público contido no preceito constitucional, como ao administrador-legislador, ao mensurar o interesse público contido na lei. Na legislação, juridiciza-se o fato social.
Na discricionariedade administrativa é inadmissível questionar ou mensurar o interesse público contido no preceito legal através do juízo de oportunidade, de modo algum, pois o exercício da função administrativa orienta-se para a concretização normativa do texto legal, à revelação do interesse público nele contido para torná-lo realidade. O ato administrativo está subordinado à lei, nele inexistindo espaço para a qualificação do interesse público contido no ato legislativo, do contrário, poderia licitamente o administrador fixar um interesse estranho, mesmo sendo de relevância coletiva, ao estabelecido em lei. O que viola, sem sombra de dúvida, os princípios da legalidade administrativa e da impessoalidade.
Deve ser lembrado ainda que apesar do interesse público não possuir um sentido inteiramente acabado na lei, sua concretização decorre do emprego do juízo de juridicidade, no âmbito da atividade administrativa. Quando se menciona a finalidade de um ato administrativo posto, refere-se ao resultado de um processo de densificação dos enunciados teleológicos da lei.
O motivo e o objeto constituem a residência natural da discricionariedade administrativa, quando admitida em lei(25). Na dinâmica realidade na qual está inserida a administração pública, em se omitindo a lei, o juízo de oportunidade é imprescindível para garantir a proximidade entre a norma e o fato, a providência normativa e a demanda da coletividade, atribuindo-se ao administrador poder para selecionar os fatos enquadráveis na hipótese da lei, e para formar a avaliação político-jurídica que servirá de embasamento para o ato administrativo.
A oportunidade do ato é vinculada ao motivo, à identificação e formação dos pressupostos fáticos e jurídicos que justificam a inserção do ato administrativo no ordenamento jurídico. Já a conveniência incide sobre o objeto do ato, isto é, o conteúdo do provimento estatal.
Não há discricionariedade para a avaliação do motivo legal, pois trata-se de matéria restrita ao juízo de juridicidade. Será uma atividade de interpretação, e não discricionária, que fixará o pressuposto legal do ato administrativo. Portanto, embora o motivo fático possa constituir elemento discricionário, o motivo legal sempre será vinculado.
No conteúdo do ato administrativo, tem-se o uso do juízo de oportunidade pela administração pública ao se consolidar a conveniência, justiça e oportunidade da providência administrativa, na omissão da lei em fazê-lo. Mas a ausência da prescrição legal do objeto não implica em liberdade plena para sua fixação. O objeto deve ser lícito e possível para a não rejeição do ato administrativo como ato jurídico válido(26).
E numa assertiva que se tornou clássica, Caio Tácito(27) encerra tal questão:
"Não basta, porém, que a autoridade seja competente, o objeto lícito e os motivos adequados. A regra de competência não é um cheque em branco concedido ao administrador. A administração serve, necessariamente, a interesses públicos caracterizados. Não é lícito à autoridade servir-se de suas atribuições para satisfazer interesses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro interesse público estranho à sua competência. A norma de direito atende a fins específicos que estão expressos ou implícitos em seu enunciado. A finalidade é, portanto, outra condição obrigatória de legalidade nos atos administrativos".
Tanto a discricionariedade quanto a vinculação não podem ser vistas numa visão absoluta. Compreendem elementos que devem existir em harmonia no regime jurídico-administrativo, sob pena de ou eliminar a criatividade e dinamismo indispensáveis à gestão dos interesses públicos, ou impossibilitar a fiscalização dos atos administrativos.
Embora haja forte resistência quanto ao emprego da expressão(28), podemos conceituar o ato discricionário, no âmbito do regime jurídico-administrativo, como o ato administrativo que possui elementos construídos sob a influência do juízo de oportunidade do administrador. Será ato vinculado o ato administrativo em que essa influência esteja restrita ao momento da sua expedição.
A ininterrupta torrente dos fatos trazidos à administração pública inviabiliza os esforços do legislador em produzir normas que cubram, de modo minucioso, todos os seus aspectos da ação administrativa. Faz-se então necessária a concessão de uma margem de liberdade decisória nos agentes e órgãos públicos para que estes possam apresentar as soluções exigidas pela lei e segundo sua finalidade maior, o interesse público(29). A interpretação nem sempre é suficiente para a concretização do regime jurídico-administrativo.
Nesses espaços abertos pela lei, a conveniência e a oportunidade para a prática do ato, a configuração do motivo do ato e o objeto a ser edificado no ato, tudo consoante a juridicidade, navega a discricionariedade. Compreende uma concessão legal ao Poder Público.
A norma jurídica que enseja a "opção discricionária", quando é confrontada com o caso concreto levado à apreciação da administração pública, tem suas imprecisões, "conceitos indeterminados", faculdades, concessões, proibições e soluções, propostas ou impostas, colocadas diante do administrador.
Perante o caso concreto, constitui dever irrenunciável ao agente ou órgão público apresentar as medidas cabíveis para a satisfação do interesse público, ou mesmo nenhuma em virtude deste. Tomada a decisão conforme a forma, competência e finalidades legais, em regra, é vedada a intervenção dos outros poderes do Estado no chamado "mérito do ato administrativo". A sua formação passa pela compreensão do conteúdo da norma jurídica a qual se atribui a cessão da discricionariedade.
O mérito do ato administrativo abrange um aspecto do procedimento da Administração, relacionado com circunstâncias e apreciações só perceptíveis ao administrador, dados os processos de indagação de que dispõe e a índole da função por ele exercida, vedado a incidência do controle jurisdicional(30). O mérito tem um sentido político, vinculado ao dever da boa administração, compreendendo todos os aspectos de conveniência e oportunidade edificados por um juízo comparativo na adequação da lei ao caso concreto(31). No processo civil, entende-se por mérito o "conteúdo substancial da lide"; enquanto que no direito administrativo, constitui um elemento que eventualmente pode compor o ato administrativo(32).
Inexiste mérito nos atos vinculados sendo elemento privativo dos atos discricionários(33). Nos atos vinculados, o juízo de oportunidade já foi analisado e definido pelo legislador, e, por conseguinte, inexistindo espaço para uma avaliação subjetiva de conveniência e oportunidade da ação estatal no caso concreto(34).
A conveniência e a oportunidade são os elementos utilizados na técnica discricionariedade na formação do mérito, seu resultado final, a fim de satisfazer um interesse público específico contido no texto normativo. Enfim, a discricionariedade define os aspectos que devem ser deixados ao juízo de oportunidade da administração, passando o mérito a conter todos os aspectos edificados pelo binômio conveniência-oportunidade(35).
O mesmo não acontece no processo administrativo, onde o mérito tem sentido similar a do processo civil, ou seja, o conteúdo da lide, como entende José Cretella Júnior(36). O mérito do processo administrativo está sujeito a amplo exame judicial(37).
A competência poderá estatuir que, dentre vários atos legalmente possíveis, "tenha o administrador a faculdade de escolher aquele que julgue mais conveniente e oportuno, bem como de determinar a feição concreta que o ato deverá ter"(38).
O poder de escolha está relacionado com o "se" e o "como" da ação administrativa ou com ambos(39). O poder discricionário sempre se manifesta no âmbito da conseqüência jurídica, existindo uma forma de poder discricionário que se identifica na decisão relativa à adoção ou não de uma medida determinada; e outra, que se refere apenas com a escolha do ato a ser praticado, dentre as alternativas cabíveis(40).