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Sìndrome da Alienação Parental: uma iníqua falácia

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Resumo:


  • A alienação parental (AP) e a síndrome da alienação parental (SAP) são conceitos recentes no vocabulário jurídico brasileiro, tendo sido positivados pela Lei n. 12.318 de 2010, apesar de serem amplamente criticados e rejeitados pela comunidade científica internacional.

  • A SAP é vista como uma ferramenta que pode ser usada para mascarar abusos sexuais contra crianças, promover preconceito de gênero e violar os direitos das mulheres e crianças, sendo parte de um movimento conservador de reação contra os avanços dos direitos das mulheres.

  • No Brasil, a aplicação da lei de alienação parental tem sido questionada por seu uso acrítico e potencialmente prejudicial, com decisões judiciais baseadas em "indícios" que podem resultar na aplicação de penalidades severas e mudanças de guarda sem o devido suporte de estudos ou laudos técnicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4 QUESTIONAMENTOS QUANTO AO PRECONCEITO DE GÊNERO, ADULTISMO E VULNERABILIDADE DA MÃE DETENTORA DA GUARDA. BACKLASH?

Entidades internacionais de defesa das mulheres e das crianças têm há muito alertado acerca da prática de preconceito de gênero (em geral contra as mulheres), evidenciado em casos envolvendo acusações de violência doméstica e alienação parental. Denunciam que as Cortes de Justiça (entre elas as norte-americanas), mesmo hoje, tendem a minimizar as acusações de violência sejam elas físicas, sexuais ou psicológicas em desfavor de mulheres e crianças, privilegiando pais e maridos agressores. Alertam para a posição ainda agora fragilizada das mulheres, normalmente em desvantagem financeira e emocional perante seus ex-maridos e parceiros, o que acaba por ser determinante em discussões envolvendo divórcio, guarda e pensão alimentícia.

Elenca a literatura, assim, as inúmeras vantagens que possui o agressor quando da disputa judicial acerca da guarda e pensão alimentícia dos filhos, pois lançará ele mão, se necessário, dos argumentos relativos à alienação parental,  destacando-se (1) sua normalmente maior capacidade econômico-financeira de custear um processo judicial (ao mesmo tempo que, paradoxalmente, diz não possuir condições para pagar uma pensão alimentícia adequada à criança), (2) a vantagem marcante sobre sua vítima em testes psicológicos, já que ela (a criança e/ou a mãe) é a única que foi traumatizada pelo abuso, (3) a capacidade de manipular os peritos judiciais (normalmente, dada a escassez de recursos humanos e financeiros, restringe-se a equipe de auxiliares do juízo,  na melhor das hipóteses, aos assistentes sociais e  psicólogos, assoberbados de demandas urgentes), que se tornam assim solidários  para com o agressor, e (4) sua capacidade de manipular e intimidar as crianças a respeito das declarações prestadas ao perito (assistentes sociais, psicólogos)[34]. Muitos dos agressores, diz-se, são hábeis manipuladores, apresentando-se como pais carinhosos, cooperativos, apontando o outro genitor (a vítima) como um incitador de conflitos, impulsivo ou excessivamente protetor[35].

Com efeito, um dos principais argumentos utilizados pelos pais agressores, diante de mães "protetoras", é a de estarem elas alienando seus filhos. The National Organization for Women Foundation denuncia que as acusações de transtorno de alienação parental feitas por pais (ex-maridos) abusadores se dá com o claro propósito de que os Tribunais desconsiderem a denúncia materna de abuso sexual ou físico praticado contra a criança e, com isso, buscam "negociar" pensão alimentícia e  guarda compartilhada dos filhos[36].

Observam os argutos críticos de Gardner que, nos últimos anos, o uso da expressão SAP tem sido estendida de forma dramática para incluir todos os casos nos quais a criança se recusa a visitar o genitor que não possui a guarda, mesmo que a recusa ou resistência tenha como origem suspeitas de abuso sexual. Nada disso aparentemente importava a Gardner, porém, pois seu objetivo era verificar se o genitor-alienante (?) e o filho estavam mentindo, e não se o outro genitor-alienado (?) era mendaz ou possuía comportamento que pudesse explicar a aversão da criança. O "tratamento" prescrito por Gardner para o caso consistia em transferir a guarda da criança – do genitor "alienante" ao rejeitado –, a fim de proceder à "desprogramação" do infante (utilizava ele também a expressão "lavagem cerebral reversa")[37].

De fato, vítimas de violência doméstica (mulheres e crianças) as mais das vezes mostram-se menos estáveis emocionalmente, pois são elas, justamente, as que sofrem os efeitos psicológicos do trauma do abuso, possuindo ainda, em grande parte dos casos, menor capacidade financeira (inclusive no que se refere à moradia)[38].

Os escritos de Gardner, inclusive sobre a SAP, dizem autores de nomeada, são claramente discriminatórios e preconceituosos contra a mulher. Esta parcialidade de gênero infecta a síndrome, mostrando-se poderosa ferramenta para desqualificar a credibilidade das mulheres que denunciam abuso sexual infantil. Isto porque a SAP perpetua e exacerba a discriminação de gênero contra a mulher, colocando muito mais sombra do que luz sobre este difícil tema[39], uma vez que ideologiza o conceito, desvinculando o direito de convivência da vontade dos filhos. Quer dizer, há uma forte ênfase nos direitos do pai, em detrimento dos direitos de proteção dos filhos que possam ser exercidos pela mãe[40].

No contexto, revelam abalizadas pesquisas científicas que o litígio judicial pode tornar-se, ele próprio, um veículo de ampliação-manutenção do controle e autoridade praticados pelos agressores e abusadores de crianças em face de suas vítimas. Embora não haja qualquer evidência de uma maior incidência de falsas acusações de abuso infantil e violência doméstica quando da disputa da guarda/visitação há, por parte dos operadores do sistema de justiça (juízes, advogados, promotores, servidores, peritos), excessiva desconfiança acerca da veracidade de tais denúncias promovidas pelas vítimas (talvez até devido à inimaginável brutalidade dos atos), o que as revitimiza novamente, agora com o beneplácito ou conivência do próprio sistema de justiça[41].         

Tanto assim que, conforme literatura especializada, 97% das mães afirmam ignorarem ou minimizarem os Tribunais as denúncias de abuso sexual praticado pelo genitor-agressor contra a criança, sendo elas (as mães) punidas por tentar proteger seus filhos, ao passo que significativos 45% das genitoras se dizem rotuladas como portadoras da SAP[42]. E mais e assustadoramente: embora falsas acusações de abuso sexual praticadas pelas mães no decorrer de processos judiciais relativos à guarda de crianças não sejam comuns, tendem os advogados a aconselhar as mulheres a não levantar acusações de abuso sexual, mesmo que verdadeiras, a fim de não colocar em risco suas chances de permanecer com a guarda dos filhos[43]. Assim, são as mães orientadas por seus advogados e pelo juiz a não se oporem à visitação dos pais, mesmo quando se sentirem inseguras em relação a isso ou até diante do protesto dos filhos[44].

Bem a propósito, colhe-se o posicionamento da American Psychological Association:

"Neste contexto, o genitor não violento pode ficar em desvantagem quando o comportamento protetivo por ele exercido contra o genitor que abusa dos filhos for interpretado como um sinal de instabilidade. Avaliadores psicológicos não treinados em violência doméstica podem contribuir para este processo, ignorando ou minimizando a violência e conferindo inadequados rótulos patológicos para as respostas femininas à vitimização crônica. Termos como ‘alienação parental’ podem ser usados para culpar as mulheres pelo fundado medo das crianças ou pela raiva sentida contra seu violento pai"[45].

O preconceito de gênero aí existente vem fortemente criticado pela Associação Espanhola de Neuropsiquiatria, a qual se manifesta clara e fragorosamente contra a adoção clínica e legal da SAP. Deveras, o "viés de gênero" mostra-se escancarado na origem da SAP. Cônjuges "mães alienantes" são, na visão de seus defensores, as mulheres que odeiam homens, e qualquer tentativa da mulher de se rebelar  implica o risco de retirada da guarda de seus filhos, constituindo-se eventual resistência materna em mais uma prova da alienação por ela patrocinada e da "programação" a que submetida a criança. Qualquer ensaio de protesto caracteriza o diagnóstico inventado por Gardner, pois constitui (o protesto) amostra dos sintomas da "programação" utilizada pela mãe para afastar o filho do pai. Como concebida, a SAP jamais poderá ser refutada, porque qualquer movimento de refutação por si só confirma o diagnóstico, "a verdade". Trata-se de uma engrenagem perversa, pois qualquer ação visando a proteção da criança do outro genitor se converte em mentira da mãe e em nova tentativa de "programação"[46].

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Com efeito, inúmeras instituições têm denunciado a propositura de litígios visando a alteração da guarda, instaurados sob a alegação de AP ou SAP mas que, na verdade, buscam forçar acordos a respeito de bens,  visitação e pensão alimentícia.

As mães, de forma geral, têm entre seus maiores temores a perda da guarda dos filhos. Já aqueles pais que as requerem como tática de barganha (bens, alimentos, visitas) nada têm a temer ou perder. Aliás, ao contrário da percepção pública, os homens são muito bem-sucedidos quando de fato procuram o Poder Judiciário com a sincera intenção de obter a guarda dos filhos do casal, nomeadamente quando a mãe não apresenta condições para tanto[47]. Doutro lado, pesquisas revelam que a adoção acrítica e generalizada da SAP tem implicado a violação sistemática dos direitos humanos pelos próprios Tribunais, inclusive a falha na proteção de mulheres vítimas de violência e crianças vítimas de abuso, dispensando-lhes tratamento discriminatório e degradante e negando-lhes o "devido processo legal"[48].

E a desconsideração/mitigação das manifestações de contrariedade das crianças à visitação – tomando-se como regra a negativa desfundamentada – em consequência da alienação parental traz à tona, no meio acadêmico, além das discussões a respeito do preconceito de gênero e da maior vulnerabilidade das mães detentoras da guarda, o debate acerca de dois outros fenômenos, o adultismo e o que se conhece por backlash.           

Diz-se adultismo

"o sistema de crenças que, introduzindo uma estrutura rígida de hierarquias entre adultos e crianças, entende  estas (as crianças) como objeto de adestramento, e não como sujeitos de direitos. A ‘síndrome de alienação parental’ pressupõe meninos e meninas como entidades passivas suscetíveis de serem moldados em seus pensamentos e sentimentos por adultos mal-intencionados que lhes ‘introduzem’ ideias sem que conte sua própria percepção da realidade. Esta imagem da infância não vai somente na direção oposta de todos os estudos cientificamente validados dentre da psicologia evolutiva, mas contradiz profundamente o espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança"[49].

Denuncia Corsi, também, forte tendência ao backlash[50], o conhecido movimento conservador, impulsionado por facções mumificadas da igreja e políticos de direita, intolerantes com o avanço das reivindicações dos direitos dos setores tradicionalmente marginalizados, como as mulheres, os meninos e as meninas.

De fato e como sabido, trata-se de um movimento político que nasce como resposta às conquistas alcançadas pelo feminismo no reconhecimento dos direitos das mulheres e na visibilidade e sanção pública da violência baseada no gênero. Em outras palavras, sobressai como uma reação tendente a manter o status quo promovido pela ideologia patriarcal, empregando para isso o questionamento das garantias outorgadas ao gênero feminino. Cuida-se de uma reação extrema, produto do descontentamento de certos grupos de homens diante das mudanças produzidas pelo feminismo não só  em torno do tradicional papel destinado às mulheres, como também da discussão respeitante ao abuso sexual infantil.

Nestes casos (de abuso sexual infantil), diz a literatura que na década de 1990, especialmente nos Estados Unidos, consolidaram-se posicionamentos ideológicos reacionários à defesa dos direitos humanos das crianças, havendo dois grupos distintos: (1) o primeiro grupo que integra o backlash inclui pais que foram acusados de cometer abuso sexual contra seus filhos, alguns peritos (especialmente da área privada) e pais divorciados. Neste grupo também se encontram alguns advogados que recebem altas somas em dinheiro para reunir bibliografia que apoie seus argumentos e lhes permitam defender os abusadores; (2) o segundo grupo que integra o backlash é composto por alguns experts que reúnem alguma literatura não científica (argumentos estandardizados) mas veem esses argumentos como científicos[51].

O backlash tem-se expandido por meio de diversas derivações, como o surgimento das associações de pais separados, a SAP e a síndrome de falsas memórias (SFM), estas últimas incursionando na esfera judicial de muitos países, gerando enorme confusão nos casos de abuso sexual e culminando, em muitas ocasiões, na absolvição dos ofensores sexuais.

Enquanto se tratava de hipóteses envolvendo setores socioeconômicos excluídos, a reação não se fez sentir. Mas começa a adquirir virulência quando os casos denunciados passam a envolver pessoas próximas ao centro do poder (hierarcas da igreja, empresários, políticos). E é a estes setores que as teorias pseudocientíficas de Gardner têm servido como anel ao dedo. Permite-lhes justificar seus abusos, contra-atacando com denúncias de falsas denúncias, com insistência no conceito de "alienação parental" (que na realidade fica limitada a uma "alienação marental"), desqualificando os testemunhos dos meninos e meninas acerca das violações de que são vítimas. Nem mais nem menos que uma reação tendente a conservar um poder que percebem minguante. E este inadjetivável retrocesso encontra-se em pleno vigor também em nosso sistema legal no que se refere aos "pais protetores", aqueles que agem no sentido de preservar seus filhos de abusos, sejam eles físicos ou sexuais. Em torno disso, e para desmoralizá-los, foi-se construindo o mito de que as mães apresentam falsas alegações de abuso sexual ou físico (ou violência doméstica), o que se daria, curiosamente, em milhões de casos, e apenas com o intuito de privar os pais da convivência com os filhos, alienando-os[52].

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Sobre os autores
Claudia Galiberne Ferreira

Advogada em Santa Catarina, pós-graduada em Direito Processual Civil pela CESUSC/Florianópolis-SC. Coautora do livro "Curso de Direito Médico", São Paulo: Conceito Editorial, 2011. Coautora do texto "O novo CPC e a oportunidade desperdiçada", publicado pela Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, v. 20, n. 26, 2013, p. 29-44.

Romano José Enzweiler

Juiz de Direito e mestre em relações econômicas e sociais internacionais pela Uminho, Portugal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Claudia Galiberne ; ENZWEILER, Romano José. Sìndrome da Alienação Parental: uma iníqua falácia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34731. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Este texto é dedicado ao Juiz de Direito Edson Luiz de Oliveira, titular da Vara da Família da Comarca de São Bento do Sul/SC, ser humano de qualidades raras e que tanto enobrece a Magistratura, incentivador presente e, de muitas formas, corresponsável pelo resultado da nossa pesquisa. A versão final deste ensaio contou com a generosa leitura e argutas observações do Juiz de Direito Hélio do Valle Pereira, titular da Vara dos Feitos da Fazenda da Comarca de Florianópolis/SC e hoje no TRE/SC, seguramente uma das mentes mais brilhantes e espetaculares que há no Judiciário brasileiro. Revisão gramatical realizada pela competentíssima Profa. MSc. Maria Tereza de Queiroz Piacenti.

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