As regras de direito intertemporal sempre são revisitadas quando surge uma nova lei. É este o espírito do presente artigo, que busca examinar a nova Lei n. 13.043/2014 e sua aplicação no tempo.
A Lei n. 13.043/2014, publicada no Diário Oficial da União em 14 de novembro de 2014, acabou com a competência delegada da justiça estadual para processar e julgar os executivos fiscais promovidos pela Fazenda Pública Federal, nos casos em que o domicílio do devedor não fosse sede de vara federal, já que houve a revogação expressa do inciso I do art. 15 da Lei n. 5.010/66 pelo art. 114 da referida Lei.
Diante da inovação legislativa, fica a discussão sobre sua aplicação. São as regras de direito processual civil intertemporal. Importante, para nortear a solução acerca da incidência temporal da modificação legislativa, a leitura do art. 6º do Decreto-Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil):
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
Extrai-se do referido normativo que a lei terá efeito imediato, entretanto deverá respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, garantias fundamentais previstas no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. Cândido Rangel Dinamarco ensina:
Na projeção dessas regras gerais de direito intertemporal sobre a vida dos processos, tem-se por certo que: a) a lei processual nova não se aplica aos processos já findos quando ela entrou em vigor, cujos atos se regeram pela lei anterior e cujas decisões têm a eficácia já conseguida antes da passagem da lei velha para a nova – rigorosa aplicação da máxima tempus regit actum; b) a lei processual nova aplica-se inteiramente aos processos instaurados na sua vigência, visto que as previsões contidas na velha já não existem e, obviamente, as consequências jurídicas dos atos futuros não são as que ela ditara no passado[1].
Com este entendimento, vê-se que os processos que tramitaram perante a justiça estadual, mas já findaram, tem sua validade resguardada, estando acobertados sob o manto da coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF/88).
Noutro giro, naqueles processos que se iniciaram a partir de 14 de novembro de 2014, data da publicação da lei, que entrou em vigor na data de sua publicação, conforme previsão expressa do art. 113[2], incide a nova lei, do que se conclui afastada a competência delegada a partir de 14 de novembro de 2014. Destarte, o aforamento dos executivos fiscais a partir da publicação da Lei n. 13.043/2014 deve ser feito obrigatoriamente perante a Justiça Federal com competência sobre o local do domicílio do devedor, conforme art. 109, I, da Constituição e art. 578 do Código de Processo Civil.
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a aplicabilidade imediata da lei processual no tempo em sede de julgamento de Recurso Especial sob o rito do recurso repetitivo (art. 543-C do CPC):
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. VERBAS REMUNERATÓRIAS. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA DEVIDOS PELA FAZENDA PÚBLICA. LEI 11.960/09, QUE ALTEROU O ARTIGO 1º-F DA LEI 9.494/97. NATUREZA PROCESSUAL. APLICAÇÃO IMEDIATA AOS PROCESSOS EM CURSO QUANDO DA SUA VIGÊNCIA. EFEITO RETROATIVO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Cinge-se a controvérsia acerca da possibilidade de aplicação imediata às ações em curso da Lei 11.960/09, que veio alterar a redação do artigo 1º-F da Lei 9.494/97, para disciplinar os critérios de correção monetária e de juros de mora a serem observados nas "condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza", quais sejam, "os índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança".
2. A Corte Especial, em sessão de 18.06.2011, por ocasião do julgamento dos EREsp n. 1.207.197/RS, entendeu por bem alterar entendimento até então adotado, firmando posição no sentido de que a Lei 11.960/2009, a qual traz novo regramento concernente à atualização monetária e aos juros de mora devidos pela Fazenda Pública, deve ser aplicada, de imediato, aos processos em andamento, sem, contudo, retroagir a período anterior à sua vigência.
3. Nesse mesmo sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, ao decidir que a Lei 9.494/97, alterada pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que também tratava de consectário da condenação (juros de mora), devia ser aplicada imediatamente aos feitos em curso.
4. Assim, os valores resultantes de condenações proferidas contra a Fazenda Pública após a entrada em vigor da Lei 11.960/09 devem observar os critérios de atualização (correção monetária e juros) nela disciplinados, enquanto vigorarem. Por outro lado, no período anterior, tais acessórios deverão seguir os parâmetros definidos pela legislação então vigente.
5. No caso concreto, merece prosperar a insurgência da recorrente no que se refere à incidência do art. 5º da Lei n. 11.960/09 no período subsequente a 29/06/2009, data da edição da referida lei, ante o princípio do tempus regit actum.
6. Recurso afetado à Seção, por ser representativo de controvérsia, submetido ao regime do artigo 543-C do CPC e da Resolução 8/STJ.
7 Cessam os efeitos previstos no artigo 543-C do CPC em relação ao Recurso Especial Repetitivo n. 1.086.944/SP, que se referia tão somente às modificações legislativas impostas pela MP 2.180-35/01, que acrescentou o art. 1º-F à Lei 9.494/97, alterada pela Lei 11.960/09, aqui tratada.
8. Recurso especial parcialmente provido para determinar, ao presente feito, a imediata aplicação do art. 5º da Lei 11.960/09, a partir de sua vigência, sem efeitos retroativos.
(REsp 1205946/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/10/2011, DJe 02/02/2012)
A dúvida ao operador do direito pode surgir nos casos em que o processo está pendente. Nesta situação, Dinamarco afirma que prevalece o entendimento de “isolamento dos atos e situações processuais, pelo qual a lei nova, encontrando um processo em curso, respeita a eficácia dos atos processuais já realizados e portanto as situações já estabelecidas, disciplinando os atos de todos os sujeitos processuais e as situações das partes somente a partir de sua vigência” [3].
A aplicação da regra de isolamento dos atos e situações processuais traz, para a análise da questão, a aplicação do art. 87 do Código de Processo Civil, abaixo transcrito:
Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.
Ora, se a competência é determinada no momento do ajuizamento da ação, se o processo foi intentado antes da Lei n. 13.043/2014, ou seja, até 13 de novembro de 2014, a competência para processar e julgar a causa fica fixada na justiça estadual, quando a comarca do devedor não for sede de vara federal, aplicando-se a regra do tempus regit actum.
Nessa linha, a própria Lei n. 13.043/2014 trilhou, como se vê do art. 75, a seguir transcrito:
Art. 75. A revogação do inciso I do art. 15 da Lei no 5.010, de 30 de maio de 1966, constante do inciso IX do art. 114 desta Lei, não alcança as execuções fiscais da União e de suas autarquias e fundações públicas ajuizadas na Justiça Estadual antes da vigência desta Lei.
Indene de dúvidas, assim, que a Lei n. 13.043/2014, seguindo as regras de direito processual civil intertemporal, definiu de forma indefectível a questão.
Por esta razão, incabível que a justiça estadual, nos processos pendentes antes de 14 de novembro de 2014, decline de sua competência, remetendo os autos de execução fiscal ajuizada pela Fazenda Pública Federal para a justiça federal.
3. DA CONCLUSÃO
Da análise da aplicação das regras de direito processual civil intertemporal à Lei n. 13.043/2014 se conclui que: a) os processos findos estão acobertados pelo pálio da coisa julgada; b) compete a Justiça Federal processar e julgar os executivos fiscais aforados pela Fazenda Pública Federal a partir de 14 de novembro de 2014; c) as execuções fiscais em trâmite na data de início da vigência da Lei n. 13043/2014 permanecerão tramitando perante a Justiça Estadual.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 08.12.2014.
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1975. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm>. Acesso em 08.12.2014.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em 08.12.2014.
BRASIL. Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966. Organiza a Justiça Federal de primeira instância, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5010.htm>. Acesso em 08.12.2014.
BRASIL. Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014. Dispõe sobre fundos de renda fixa, (...), revoga dispositivos do Decreto-Lei no 1.569, de 8 de agosto de 1977, das Leis nos 5.010, de 30 de maio de 1966, e 8.666, de 21 de junho de 1993, da Medida Provisória no 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, e do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Lei/L13043.htm>. Acesso em 08.12.2014.
BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 1205946/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/10/2011, DJe 02/02/2012.
DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5ª Ed. rev. e atualizada de acordo com a emenda constitucional n. 45, de 8.12.2005. v. I. São Paulo: Malheiros, 2005.
[1] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. I. 5ª Ed. rev. e atualizada de acordo com a emenda constitucional n. 45, de 8.12.2005. v. I. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117.
[2] Art. 113. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, exceto:
I - os arts. 21 a 28, que entram em vigor a partir da data de publicação do ato do Poder Executivo que estabelecer o percentual de que trata o caput do art. 22;
II - os arts. 1o a 15, 30 a 32, [97], [106] e os artigos da Seção XXI do Capítulo I, que entram em vigor a partir de 1o de janeiro de 2015;
III - os arts. 16-A a 16-C da Lei no 12.431, de 24 de junho de 2011, incluídos pelo art. 86, que entram em vigor a partir de 1o de janeiro de 2015;
IV - os seguintes dispositivos, que entram em vigor a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente ao da publicação desta Lei:
a) os incisos XII e XIII do caput do art. 7o da Lei no 12.546, de 14 de dezembro de 2011, com redação dada pelo art. 50, e os arts. 51 a 53; e
b) o art. 98 e os artigos das Seções XVI, XVII, XIX e XX do Capítulo I.
[3] In, op. cit., p. 118-119.