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O princípio da insignificância e sua aplicabilidade no direito penal brasileiro

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O princípio da insignificância, aliado aos princípios da intervenção mínima, da ofensividade, da fragmentariedade e da proporcionalidade, além da teoria da adequação social, vem afastar do âmbito de incidência do Direito Penal as condutas que não causem lesão grave e significativa aos bens jurídicos tutelados.

Resumo: O presente artigo tem como tema o Princípio da Insignificância e sua aplicação no direito penal brasileiro. Em um primeiro momento será analisada brevemente a teoria do delito, com enfoque na teoria da tipicidade penal. Em seguida, é feito um histórico do princípio da insignificância, tratando também dos princípios do direito penal que lhe dão fundamento, além do seu conceito. Por fim, é examinada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça para explicar e exemplificar a incidência da insignificância, de modo a determinar qual o seu real sentido e alcance.

Palavras-chave: Tipicidade penal. Princípio da insignificância. Requisitos. Incidência.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A teoria do delito e a tipicidade penal; 2. O princípio da insignificância; 2.1 Evolução histórica; 2.2 Fundamentos principiológicos; 2.3 Conceito; 3. A aplicação do princípio da insignificância no Brasil; 3.1 Aplicabilidade em crimes contra a Administração Pública; 3.2 Aplicabilidade em crimes contra a ordem tributária e em crime de descaminho, 3.3 Aplicabilidade em crimes de moeda falsa; 3.4 Aplicabilidade em crimes de ordem patrimonial; 3.5 Aplicabilidade em crimes relacionados a entorpecentes; 3.6 Aplicabilidade em crimes de lesão corporal; 3.7 Aplicabilidade em crimes contra o meio ambiente; 3.8 Outros aspectos importantes na aplicação do princípio; Conclusão; Referências.


INTRODUÇÃO

Como meio indispensável à segurança da sociedade, cabe ao Direito Penal a proteção dos bens jurídicos de maior relevância. Este se pauta no princípio da intervenção mínima, considerando que a lei penal deve ser o último recurso para a proteção de bens jurídicos. Além do mais, a aplicação do Direito Penal depende da expressiva ofensividade da conduta e da necessidade de pena.

É tarefa do legislador escolher quais são os bens fundamentais à sociedade, isto é, quais os bens jurídicos precisam ser tutelados. Contudo, ao estabelecer os tipos penais, o legislador não tem como excluir do seu campo de incidência as condutas que não danificam significantemente o bem jurídico. Não obstante, cabe ao julgador, em face do caso concreto, decidir se a lesão é expressiva e se deve acarretar pena.

O sistema de execução penal, não só no Brasil mas também a nível mundial, mantém desde seus primórdios a privação da liberdade como pena mais comum, podendo-se dizer que esse é seu elemento estruturador.

Assim, com o aumento da micro-criminalidade em larga escala, o Poder Judiciário e o Legislativo começaram a buscar alternativas à pena privativa de liberdade. Sob esse aspecto, o princípio da insignificância surge para excluir a tipicidade material de crimes com mínima ofensa ao bem jurídico penal tutelado, servindo, por assim dizer, de “corretivo” limitador da tipicidade formal.

O referido princípio vem ganhando força e sendo largamente aplicado pelos tribunais brasileiros, se mostrando um importante instrumento que corrige os desvios da aplicação penal no tocante à estrita formalidade da subsunção de um fato ao modelo penal abstrato previamente definido. Por mais que o princípio da insignificância não esteja explícito na legislação brasileira, sua incidência no caso concreto é importante para reafirmar o caráter subsidiário do Direito Penal e garantir a efetividade do princípio da dignidade humana, essencial ao Estado Democrático de Direito.

Ressalta-se que o princípio da insignificância não exclui a tutela do bem jurídico, apenas a afasta da seara penal, podendo ser levada para outros campos do direito.

A discussão acerca do princípio da insignificância gera bastante polêmica, não somente no que tange ao seu reconhecimento e aplicação, mas também nos requisitos que determinam a sua correta incidência no caso concreto.

O presente trabalho tem como objetivo, portanto, fazer um estudo do princípio da insignificância e da sua aplicação no direito penal brasileiro.

Esquematicamente, o artigo foi dividido em três partes. Na primeira, é feita breve análise da teoria do delito, com ênfase na teoria da tipicidade penal. Em seguida, é feito um histórico do princípio da insignificância, desde a sua origem até as concepções mais recentes, além de tratar dos seus fundamentos principiológicos e do seu conceito. Por último, é examinada a jurisprudência acerca do tema, para explicar e exemplificar quais são os requisitos e de que forma o princípio da insignificância é aplicado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Quanto ao tipo de pesquisa, no trabalho foi realizada pesquisa bibliográfica, com base na doutrina e na jurisprudência, seguida de descrição e análise do material obtido.


1.   A TEORIA DO DELITO E A TIPICIDADE PENAL 

Ao longo do século XX a teoria do delito foi construída e estudada de acordo com diversas bases. A teoria causal-naturalista de Franz von Liszt e Ernst von Beling o construiu sob bases naturalistas; Edmund Mezger, protagonista da teoria neokantista, desenvolveu o delito inspirado na filosofia dos valores; partindo de duas estruturas lógico-objetivas (a natureza final da ação e a autodeterminação do ser humano), o finalista Hans Welzel construiu a teoria do delito seguindo bases ontológicas; já os funcionalistas desenvolveram o delito com base no condicionamento do sistema aos fins da pena (funcionalismo teleológico de Claus Roxin) ou aos fins da norma (funcionalismo radical de Günther Jakobs).

Procurando abordar o crime sob uma nova perspectiva, surge a teoria constitucionalista do delito, fundada em bases constitucionais. Tal teoria enxerga o delito como ofensa concreta ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido. Esse lado material do delito, que antes era relevante no estudo da antijuridicidade, agora recebe tratamento dentro da tipicidade.  O crime, desta forma, é a “ofensa grave e intolerável a um bem jurídico relevante protegido por lei. (...) Tanto o bem jurídico quanto a sua ofensa, que antes andavam perambulando pela teoria o delito como estrelas perdidas, passaram a ter relevância ímpar”[1].

A doutrina, de modo geral, define o crime sob três aspectos: formal, material e analítico.

Sob o aspecto formal, o crime é qualquer ação legalmente punível, qualquer fato contrário à lei. Para o conceito material, que busca a essência do delito, crime é a ação ou omissão que viola interesses ou valores da sociedade, de modo que se faz exigível a proibição dessa conduta.

Sob o aspecto analítico, é pacífica a caracterização do crime da forma tripartida, ou seja, de acordo com três requisitos, sendo eles o fato típico, a antijuridicidade e a culpabilidade. Para se falar em fato típico, ainda, é necessário reconhecer a existência dos seguintes elementos: a conduta do agente, seja ela dolosa ou culposa, omissiva ou comissiva; o resultado; o nexo de causalidade, que estabelece uma ligação entre a conduta e o resultado; e a tipicidade.

A tipicidade é o ponto central do princípio da insignificância, considerando seu caráter excludente de tipicidade, e por isso se faz importante seu estudo mais aprofundado.

Por mais que seja configurado o fato típico com base na conduta, no resultado e no nexo causal, é preciso ainda que a conduta esteja amoldada a um modelo abstrato previamente estabelecido na lei, o denominado tipo penal. Tipicidade é, desta forma, a subsunção perfeita de um fato cometido à descrição dele feita na lei penal. Por determinação do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, só há delito quando a lei penal o tipifica como tal.

A adequação entre a conduta do agente e a previsão legal faz surgir a tipicidade formal ou legal. Nas palavras de Rogério Greco, “essa adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, o fato será considerado formalmente atípico”[2]. Não se pode usar de analogia quando se trata de tipicidade: se não há o encaixe perfeito entre a conduta e o modelo previsto na lei penal, não há fato típico.

Em todo o processo evolutivo da tipicidade ela sempre fora tratada como o mero enquadramento da conduta ao tipo. Diante disso, qualquer fato, desde que se subsuma a previsão legal, pode ser considerado crime, ainda que seja socialmente adequado ou tenha mínimo poder lesivo.

Insatisfeita com essa concepção estritamente formal da tipicidade, a doutrina buscou diminuir a incidência do Direito Penal às searas em que sua aplicação fosse imprescindível para a resolução de um conflito, atribuindo ao tipo penal um sentido material, como é o caso da já citada teoria constitucional do delito.

De seu turno, tipicidade material, também chamada tipicidade substancial, é a concreta lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal em razão de prática da conduta descrita em um dispositivo legal incriminador.

A tipicidade material está intimamente relacionada ao princípio da ofensividade e ao princípio da intervenção mínima, uma vez que nem todas as condutas que se adequam ao modelo abstrato disposto na lei acarretam dano ou perigo ao bem jurídico, servindo de norte para o legislador na escolha dos bens a serem tutelados. É o caso da incidência do princípio da insignificância: ainda que observada a tipicidade formal, não se verifica a tipicidade material.

Neste sentido, Eugenio Raúl Zaffaroni cria a teoria da tipicidade conglobante, sustentando que todo fato típico está revestido de antinormatividade, já que, por mais que o fato se adeque ao tipo incriminador, o agente contraria, na verdade, a norma, entendida como o conteúdo do tipo legal. Para que se possa falar em tipicidade conglobante, é necessário que: a) a conduta do agente seja antinormativa; b) haja tipicidade material, isto é, que existe um critério material de seleção do bem jurídico a ser protegido[3].

De acordo com o penalista argentino, há a necessidade de que a conduta vá de encontro ao ordenamento jurídico em geral, conglobado, e não apenas ao Direito Penal. Logo, o fato praticado pelo agente, contrário à lei penal, desrespeita o ordenamento como um todo, configurando a tipicidade. Quando o fato é contrário à lei penal, mas está em consonância com o ordenamento jurídico, não há tipicidade conglobante.

Destarte, não é possível que uma norma proíba aquilo que outra aceita, imponha ou fomenta.

“A lógica mais elementar nos diz que o tipo não pode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta. Pode ocorrer que o tipo legal pareça incluir esses casos na tipicidade (...) e, no entanto, quando penetramos um pouco mais no alcance da norma que está anteposta ao tipo, nos apercebemos que, interpretada como uma ordem normativa, a conduta que se ajusta ao tipo legal não pode estar proibida, porque a própria ordem normativa a ordena e a incentiva.”[4]

Desta forma, podem ocorrer casos em que a lei determina a prática de certas condutas que, formalmente, seriam típicas, ou ainda, mesmo que não imponha, aceite tais atividades.

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A teoria dos elementos negativos do tipo, por sua vez, propõe o tipo total de injusto, composto pela tipicidade e pela ilicitude, tendo como elementos negativos do tipo penal os pressupostos das causas de exclusão da antijuridicidade. Logo, se a ilicitude se faz ausente, sequer existirá fato típico. Por esse motivo, poder-se-ia dizer que é permitido, por exemplo, matar alguém quando houver uma causa justificando legalmente o fato.

Nesta teoria opera-se um sistema bipartido de delito, cujos requisitos são o tipo total e a culpabilidade. Tipicidade e ilicitude integram o tipo penal: afastada a tipicidade, restará também afastada a ilicitude.

O sistema penal brasileiro não acolhe esta teoria, visto que dintingue explicitamente os tipos incriminadores (colocados na Parte Especial do Código Penal e na legislação especial) dos tipos permissivos (expostos na Parte Geral do Código Penal, mais precisamente no artigo 23). O Brasil adotou a teoria do caráter indiciário da ilicitude, isto é, presume-se que todo fato típico é ilícito, a não ser que haja previsão legal que exclua sua ilicitude.

A partir do exposto, pode-se perceber o interesse do Direito Penal em proteger não todos os bens jurídicos, senão aqueles que a sociedade entende serem os mais importantes e imprescindíveis de tutela.


2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA 

2.1.    Evolução histórica 

A origem histórica do princípio da insignificância é objeto de grande controvérsia doutrinária.

Vários autores afirmam que a desconsideração dos danos sociais irrelevantes remonta ao brocardo romano de minimis non curat praetor, já que o pretor, homem que exercia as funções judiciárias na Roma Antiga, não cuidava das questões mínimas. Nesse sentido se encontra Fernando Galvão, que aduz que esta é a base do princípio da insignificância[5].

Gusmán Dalbora diz que esse brocardo, na verdade, tem origem no pensamento liberal dos juristas renascentistas, e não no direito romano. Para ele, os juristas romanos desconheciam a ideia de insignificância, já que ele está ausente nos escritos dos principais glosadores[6].

Nesta mesma linha de pensamento, Mauricio Antonio Ribeiro Lopes defende que falta especificidade ao direito romano, dizendo que o de minimis non curat praetor servia apenas para justificar a ausência de providências do pretor no âmbito civil. Ele afirma que

“O Direito Romano foi notadamente desenvolvido sob a óptica do Direito Privado e não do Direito Público. Existe naquele brocardo menos do que um princípio, um mero aforismo. Não que não pudesse ser aplicado vez ou outra a situações de Direito Penal, mas qual era a noção que os romanos tinham do princípio da legalidade? Ao que me parece, se não nenhuma, uma, mas muito limitada, tanto que não se fez creditar aos romanos a herança de tal princípio.” [7]

Para Ribeiro Lopes, o princípio da insignificância faz parte da evolução e dos desdobramentos do princípio da legalidade, cuja origem remonta ao pensamento jusfilosófico dos iluministas[8].

Passada a controvérsia acerca da origem romana do princípio da insignificância, é de entendimento de grande parte da doutrina que o princípio em si surgiu na Europa, fruto da situação socioeconômi­ca instaurada após as guerras mundiais. A grande massa populacional desempregada, aliada à falta de alimentos, acarretou o crescimento progressivo de delitos de ordem patrimonial, geralmente furtos de valores ínfimos, originando a chamada criminalidade de bagatela.

Segundo Ivan Silva, o princípio da insignificância foi incorporado ao Direito Penal pelos estudos de Claus Roxin, no ano de 1964, que o formulou como base de validez geral para determinação do injusto, partindo da máxima latina de minimis non curat praetor. Contudo, ele assevera que, por mais que a formulação atual do princípio seja atribuída a Roxin, são encontrados traços do princípio da insignificância na obra de Fran von Liszt, de 1903, ao afirmar que a legislação da sua época fazia uso excessivo da pena e indagar se não se fazia necessário restaurar o brocardo de minimis non curat praetor[9].

Ribeiro Lopes acrescenta que Claus Roxin foi o primeiro a mencionar a insignificância como um princípio do Direito Penal. Para ele, tal princípio permite excluir a tipicidade, desde o início, dos danos de pouca importância. O autor destaca que Roxin se valeu do brocardo de minimis non curat praetor como ponto de apoio operacional e intelectual para sua criação, e não para justificar a origem do princípio da insignificância[10].

Assim como Ivan Silva, Ribeiro Lopes reconhece os vestígios do princípio da insignificância encontrados na obra de von Liszt.

Sabrina Rocha, por sua vez, ao tratar da evolução histórica do princípio, também cita a máxima romana, dizendo que o pretor não se ocupava de delitos menores, e completa afirmando que a matéria foi abordada por Montesquieu em O Espírito das Leis, ao dizer que “quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas[11]. Ela ainda cita Quintero Olivares, para quem “o Estado não deve recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não penais”[12].

Luiz Régis Prado também acredita que o princípio da insignificância tenha sido abordado pela primeira vez, no Direito Penal, por Claus Roxin, em 1964, que o repetiu na obra Politica Criminal y Sistema Del Derecho Penal, partindo da máxima romana minima non curat pretor[13].

Rogério Greco entende que, embora grande parte da doutrina afirme que o princípio já vigorava no direito romano, a criminalidade de bagatela e, consequentemente, o princípio da insignificância, surgiram na Europa, no período que sucedeu a Primeira Guerra Mundial. Logo depois, já após a Segunda Guerra Mundial, era crescente o número de pequenos delitos de ordem patrimonial e econômica, isto é, furtos de pequeno valor, daí a origem da nomenclatura “crime de bagatela”. Completa dizendo que o desenvolvimento do princípio foi mérito de Claus Roxin[14].

A partir da análise de todos os autores citados, é possível concluir que, para a maior parte da doutrina, Claus Roxin foi o grande formulador do princípio da insignificância no Direito Penal moderno, com base no antigo brocardo romano.

No que diz respeito à sua recepção pelo campo doutrinário brasileiro, inúmeros juristas brasileiros aceitam o princípio da insignificância como autêntico e necessário ao Direito Penal, interpretando-o de forma a adequar sua correta aplicação no âmbito da ciência criminal.

2.2.   Fundamentos principiológicos 

Princípio é a viga mestra de todo ordenamento, sua fonte de sustentação. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.”[15]

Na área penal, os princípios orientam o legislador e limitam o poder punitivo estatal, impondo garantias aos cidadãos.

O princípio da insignificância encontra seu fundamento em outros princípios do Direito Penal e, embora haja tal relação, com eles não devemos confundi-lo.

Pelo princípio da intervenção mínima, a lei somente deve prever as penas necessárias, isto é, quando a criminalização de um fato é indispensável para a proteção de certo bem ou interesse que outro ramo jurídico não poderia tutelar, retomando aqui, também, ao princípio da subsidiariedade.

Muñoz Conde diz que o poder punitivo do Estado deve ser limitado pelo princípio da intervenção mínima. Desta forma, o Direito Penal só deve proteger ataques aos bens jurídicos de extrema importância, e as perturbações mais leves seriam objeto de outros ramos do Direito[16].

Esse princípio de presta também à descriminalização. Fundamentando-se nele e atento às mudanças da sociedade, que evolui e deixa de se importar com bens que, outrora, eram relevantes, o legislador irá retirar do nosso ordenamento jurídico certos tipos penais incriminadores[17]. Daí falar também do princípio da adequação social, que por si só não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores, mas pode fazê-lo quando aliado ao princípio da intervenção mínima.

A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, prega que, mesmo que uma conduta seja subsumida ao modelo legal, não será típica se for socialmente reconhecida ou adequada, se estiver de acordo com a aceitação da sociedade em seu condicionamento histórico.

Não se deve, contudo, confundir adequação social com “causa de justificação”. Uma ação socialmente adequada, isto é, realizada dentro do âmbito de normalidade social, está desde o início excluída do tipo, enquanto a ação amparada por causa de justificação tem uma autorização especial para a realização da ação típica, por mais que seja inadequada socialmente. É o caso da lesão corporal cometida em legítima defesa: aqui não cabe o princípio da adequação social, já que a lesão corporal é uma conduta reprovável, mas como o fato está justificado por uma causa de exclusão de ilícito, o agente será submetido a processo, no qual será avaliada a existência ou não de legítima defesa.

Importante é ressaltar que a vida em sociedade impõe riscos juridicamente aceitos, como o trânsito das grandes cidades, o transporte aéreo, a existência de usinas atômicas, que por serem socialmente adequados não podem ser objeto de tutela do Direito Penal, dado que esta sociedade precisa conviver com eles da forma mais harmônica possível.

O princípio da ofensividade (ou da lesividade), por sua vez, está estritamente ligado à intervenção mínima. Se este prega que a interferência do Direito Penal só é necessária quando estamos diante de ataques a bens jurídicos importantes, aquele nos indicará quais são esses bens jurídicos, no sentido de orientar o legislador sobre quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal. Ou seja, não haverá infração penal quando a conduta não oferecer, ao menos, perigo de lesão ao bem jurídico.

O referido princípio possui quatro principais funções, a saber: a) proibir a incriminação de cogitações criminosas, ideias ou desejos, isto é, de atitudes internas; b) vedar inculpações de conduta que ultrapassem o limite do próprio autor; c) impedir a incriminação de condições existenciais ou simples estados, ou seja, aplicar o direito penal do fato, e não do autor; d) afastar da incidência de aplicação da lei penal condutas que, mesmo reprovadas no aspecto moral, não repercutem juridicamente sobre bem jurídico de terceiros[18].

O princípio da fragmentariedade estabelece que o Direito Penal deve tutelar apenas os atos ilícitos que atentem contra os valores fundamentais para a manutenção da sociedade, os chamados ilícitos penais. Ou seja, o Direito Penal deve proteger apenas os aquela parcela mai relevante no aspecto axiológico. Ressalta-se, portanto, o seu caráter fragmentário, visto que nem tudo é do seu interesse, mas apenas uma parte limitada que, teoricamente, é a mais necessária ao convívio social.

Muñoz Conde complementa dizendo que “de toda a gama de ações proibidas e bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte, fragmentos, se bem que da maior importância”[19].

O princípio da proporcionalidade exige que seja feita uma ponderação acerca da relação que existe entre o bem posto em perigo ou lesionado e o bem do qual alguém pode ser privado, isto é, uma proporção entre o fato e a pena. Sempre que houver um desequilíbrio acentuado nesta relação teremos uma desproporção inaceitável. Tal princípio contesta, portanto, o estabelecimento de prescrições legais (proporcionalidade abstrata) e a imposição de penas (proporcionalidade concreta) que careçam de relação valorativa com o fato cometido em seu sentido global. Desta forma, tem dois destinatários: os legisladores, responsáveis por estabelecer penas proporcionais aos delitos, e os juízes, que devem proporcionar as penas que impõem à concreta gravidade do ato ilícito.[20]

Neste sentido está a lição secular de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria:

“O interesse geral não é apenas que se cometam poucos crimes, mas ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para impedir o crime devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas.”[21]

Ackel Filho acrescenta:

“O princípio da insignificância se ajusta à equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do Direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegeses, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças.” [22]

Zaffaroni diz que o princípio da insignificância se baseia na idéia de proporcionalidade que a pena deve ter em relação à gravidade do crime. Desta forma, em casos cuja afetação ao bem jurídico é mínima, o conteúdo de injusto é tão pequeno que não subsiste razão para o phatos ético da pena[23].

2.3.    Conceito 

O conceito do princípio da insignificância não se encontra em nenhum dispositivo legal, seja ele constitucional ou infraconstitucional. Logo, sua criação se deu de forma secundária no Direito, através de outros princípios, da doutrina e da sua aplicação nos tribunais. De qualquer forma, a jurisprudência e a doutrina buscam limitar a sua interpretação e nortear a sua aplicação, garantindo a efetividade desse novo meio de descriminalização.

Ribeiro Lopes reforça essa idéia dizendo que, como a doutrina não dá um conceito para delito insignificante, os juristas apenas deduzem o seu significado dentro dos limites da interpretação constitucional e das leis em geral. E, por mais que a sua recepcionalidade no mundo jurídico seja afetada pela tônica conservadora, o princípio da insignificância justifica-se como fonte autêntica do Direito, visto que é bem aceito pela doutrina e pela jurisprudência.[24]

O autor vincula o princípio da insignificância à antijuridicidade material, mas acrescenta que isso apenas o caracteriza, não sendo suficiente para defini-lo. Importante para sua definição seriam os fatores quantidade e qualidade na consistência do crime e na ponderada aplicação da pena, mas sem submeter a ação constituidora ao fato típico.[25]

De acordo com Diomar Ackel Filho, o princípio da insignificância é aquele que permite extenuar a tipicidade de fatos inexpressíveis, onde não há reprovabilidade, de forma que sequer merecem valoração penal, se mostrando, portanto, irrelevantes. A tais fatos falta o juízo de censura penal.[26]

Destaque para o conceito objetivo de Luiz Flávio Gomes:

“Conceito de infração bagatelar: infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja: insignificante). Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista etc.). Não se justifica a incidência do Direito Penal (com todas as suas pesadas armas sancionatórias) sobre o fato verdadeiramente insignificante.”[27]

Para Francisco Assis Toledo, o referido princípio “tem a ver com a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, permitindo que o fato insignificante seja excluído da tipicidade penal”[28].

Nas palavras de Carlos Vico Mañas,

“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa casar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullun crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.”[29]

Baseando-se nesses ensinamentos, pode-se concluir que o princípio da insignificância visa eliminar a tipicidade material nos delitos de menor lesividade, excluindo-se ainda, desta forma, a tipicidade conglobante e, por conseguinte, a tipicidade penal, desconfigurando o caráter delituoso da ação.

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Sobre o autor
Marcos Maurício Soares Santos

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogado inscrito na OAB/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos Maurício Soares. O princípio da insignificância e sua aplicabilidade no direito penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4739, 22 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35109. Acesso em: 19 abr. 2024.

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