O desconhecimento das normas de trânsito gera por vezes problemas sérios e de difícil solução.
Não poucas vezes em casos de alienação de automóveis, o vendedor ao realizar a tradição, se sente totalmente desobrigado de efetuar qualquer ação junto ao DETRAN para demonstrar que não mais reponde pelo veículo, e atribui ao comprador toda a responsabilidade pela transferência do bem.
A questão é: caso o comprador não efetue a transferência para seu nome, quais as medidas que o vendedor pode tomar para ficar resguardado e não responder pelas infrações cometidas após a venda?
Primeiramente devemos analisar as obrigações conferidas pelo Código de Trânsito Brasileiro tanto para o vendedor como para o comprador do veículo.
O art. 120 do CTB ao dispor acerca do registro, informa que todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado.
Este registro, dentre outras, tem a finalidade de conferir a identidade do veículo, bem como identificar seu proprietário e o endereço onde o mesmo poderá ser encontrado para fins de comunicação via correio.
Uma vez registrado, é emitido o Certificado de Registro de Veículo (CRV), documento de porte não obrigatório e que contem as importantes informações acima dispostas.
Note-se que para a expedição do CRV é necessária apenas a apresentação da nota fiscal do bem ou documento equivalente.
Caso não tenha nenhuma alteração em relação à propriedade do veículo, do Município de domicílio ou residência do proprietário, de qualquer característica do veículo ou mesmo mudança de categoria, o Certificado de Registro do Veículo nunca será alterado ou mesmo atualizado.
Todavia, na ocorrência de qualquer das situações acima mencionadas, será obrigatória a expedição de novo CRV.
Isto é, o Código de Trânsito se preocupou com a veracidade das informações bem como com o desdobramento em relação à responsabilidade que poderia ensejar o cometimento de infração de trânsito por pessoa que de fato é o (atual) proprietário do veículo mas não consta como tal em qualquer registro.
Especificamente no caso de transferência, o CTB fixou a premissa de que o adquirente tem o prazo de trinta dias para adotar as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo.
Ou seja, uma vez adquirido o bem através da tradição, deve o comprador no prazo de trinta dias transferir aquele para o seu nome.
Mas quais são as consequências caso não ocorra a efetivação da transferência?
Em primeiro lugar, a ausência de tal medida configura infração de trânsito nos termos do art. 233 do CTB que fixa como infração grave passível de multa e de medida administrativa de retenção do veículo para regularização: “deixar de efetuar o registro de veículo no prazo de trinta dias, junto ao órgão executivo de trânsito, ocorridas as hipóteses previstas no art. 123”
Em segundo lugar, esta omissão irá manter no CRV original o nome do então vendedor como atual proprietário do bem, e como proprietário irá responder pelas infrações na forma dos parágrafos 1º e 2º do art. 257 do CTB:
§ 1º Aos proprietários e condutores de veículos serão impostas concomitantemente as penalidades de que trata este Código toda vez que houver responsabilidade solidária em infração dos preceitos que lhes couber observar, respondendo cada um de per si pela falta em comum que lhes for atribuída.
§ 2º Ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes, agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar.
Como então deve agir o vendedor para não amargar a responsabilidade de atos sobre os quais não tem qualquer controle?
Resolvendo a situação de forma clara, o Código de Trânsito atribui ao vendedor a incumbência de encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado, no prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação.
Assim, mesmo que não ocorra a transferência disposta no art. 123 do CTB, sendo tal responsabilidade do comprador, o diploma legal resguarda o vendedor de ter que arcar com os resultados da inércia do adquirente.
São definidos dois marcos temporais com consequências diferentes.
Caso o vendedor informe ao DETRAN sobre a venda do veículo com o competente comunicado de venda dentro do prazo de trinta a contar da assinatura do recibo de venda, não irá responder por qualquer infração cometida neste interregno.
No entanto, caso o comunicado de venda seja feito além do prazo estipulado, terá que se responsabilizar de forma solidária pelas infrações cometidas até a data da comunicação.
A norma é simples e de fácil entendimento, devendo ser cumprida na íntegra pelo órgão executivo de trânsito (DETRAN).
Contudo, é muito comum que o vendedor desconheça por completo a obrigação imposta pelo CTB como excludente de responsabilidade e só venha a saber que o veículo outrora vendido de boa fé nunca fora transferido muito tempo depois.
A notícia em geral é recebida quando o vendedor recebe uma notificação de instauração de procedimento de suspensão do direito de dirigir ou de cassação da CNH.
Em virtude da ausência de transferência e expedição de novo CRV, muitas infrações cometidas e que não necessitam de abordagem do condutor para comprovação, como por exemplo excesso de velocidade, estacionamento irregular, dirigir falando ao celular, dirigir sem cinto de segurança etc, ficam na conta do vendedor e são recebidas com surpresa e indignação.
Rapidamente é confeccionada uma defesa a ser protocolada junto ao DETRAN explicando o negócio jurídico feito tempos atrás e por vezes juntando inclusive comprovante assinado e datado da venda (verso do CRV).
Todavia, de forma acertada, o órgão executivo de trânsito agindo em obediência à legislação pertinente, registra o comunicado de venda mas não exime o vendedor das reponsabilidades pretéritas em virtude do comando legal.
Assim, deverá o vendedor arcar com o ônus de sua inércia.
Ocorre que, quando tal discussão chega ao âmbito judicial o entendimento é diferente, o que acaba por frustrar o bom andamento da Administração pública bem como a imperatividade da norma.
No ano de 2005, foi julgado pela segunda turma do Superior Tribunal de Justiça o REsp nº 656896 de relatoria da Ministra Eliana Calmon em virtude da irresignação do DETRAN/RS em face do acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça daquele estado, que, em suma, violava a clareza da norma dos artigos 123, §1, 134 e 257,§1, todos do CTB.
No emblemático caso, um particular que vendera seu veículo sem realizar o competente comunicado de venda indignou-se junto à Autarquia e Trânsito por consequência da abertura de processo de suspensão do seu direito de dirigir instaurado em virtude de infrações cometidas pelo então comprador.
O DETRAN/RS por sua vez ao constatar a violação à norma referente à transferência do bem, assim como àquela que trata da comunicação, manteve a responsabilidade do pretenso vendedor às infrações cometidas após a tradição.
Ao analisar a argumentação posta, a Segunda turma do STJ entendeu que o art. 134 do CTB não pode ser aplicado como norma rígida, objetiva. Mas sim relativa, devendo ser moldada a cada caso concreto.
De acordo com a corte, pouco importa o momento da comunicação da venda, o que será levado em conta na verdade será a ciência dada ao DETRAN de que o vendedor não estava na posse/propriedade do veículo quando a infração foi cometida.
Segundo o entendimento apresentado pela relatora:
“O proprietário somente é responsável pela infração cometida pelo condutor, embarcador e transportador, se o real infrator não for identificado. É o que dispõe o§ 7º:
§ 7ºNão sendo imediata a identificação do infrator, o proprietário do veículo terá quinze dias de prazo, após a notificação da autuação, par apresentá-lo, na forma em que dispuser o CONTRAN, ao fim do qual, não fazendo, será considerado responsável pela infração.
Verifica-se, pelo artigo transcrito, que o proprietário não responde solidariamente,
em caráter absoluto, pelas infrações praticadas pelo adquirente, tendo sido mitigada a
responsabilidade solidária. Somente quando não for identificado o infrator, é que o proprietário é responsabilizado pelas infrações cometidas após alienação do veículo, mesmo sem a sua participação. O que o faz responsável é, em verdade, a não-comunicação da transferência ao Detran, assumindo a culpa, pela desídia do seu proceder.
Assim, o art. 134 do CTB deve ser interpretado como norma de imposição de solidariedade limitada, ou seja, só há responsabilidade do antigo proprietário, na hipótese de não ser identificado novo adquirente, o real infrator.
Essa interpretação vem em benefício do antigo proprietário, de tal forma que, uma vez comunicado o órgão de trânsito a transferência de propriedade, fica a Administração compelida fazer as anotações nos registros do veículo, para efeito de intimar o novo proprietário, mesmo quando ele deixou de providenciar a transferência de registro, na forma do art. 123, §1º, do mesmo Código.
Sem essa rega, ou seja, sem que a Administração fosse obrigada a realizar a anotação, estaria o antigo proprietário sem mecanismo par se livrar da responsabilidade em relação ao bem que não mais lhe pertence.
Para a Administração, enquanto não houver a comunicação prevista no art. 134 do CTB ou a expedição do novo certificado de registro, a titularidade da propriedade será de quem consta no registro antigo. Desse modo, qualquer infração deverá ser comunicado ao proprietário que consta na sua base dados.
Verifica-se, por tudo que foi dito, que a comunicação não é ato constitutivo da transferência da propriedade, serve apenas par declarar que houve alienação.
Portanto, a expressão “sob pena de ter que se responsabilizar” (art. 134) só existe“ até a data da comunicação”.
Não havendo dúvidas, in casu, de que as infrações não foram cometidas no período em que tinha o recorrido a propriedade do veículo, não deve ele sofre qualquer tipo de sanção.” (REsp 656.896/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/12/2005, DJ 19/12/2005, p. 336)
Veja que este posicionamento fixado em 2005 descaracteriza por completo a vigência e a imperatividade da norma de trânsito, a tal ponto que basta que mesmo diante da abertura de um procedimento de suspensão ou cassação da CNH, o interessado, a qualquer momento, apresente o recibo ou qualquer outro documento apto a comprovar a venda do bem.
Por mais incongruente que este pensamento emanado do STJ pareça, certo é que desde então ele vem sendo reverberado pela corte, conforme se nota dos julgados abaixo:
ADMINISTRATIVO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. MULTAS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ALIENANTE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 134 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. AUTORIZAÇÃO PARA TRANSFERÊNCIA. SUBSCRIÇÃO. AUSÊNCIA. NOTIFICAÇÃO DA AUTUAÇÃO. COMUNICAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DO BEM. INEXISTÊNCIA. FUNDAMENTOS NÃO ATACADOS. SÚMULA 283/STF. 1. "Alienado veículo automotor sem que se faça o registro, ou ao menos a comunicação da venda, estabelece-se, entre o novo e o antigo proprietário, vínculo de solidariedade pelas infrações cometidas, só afastadas quando é o Detran comunicado da alienação, com a indicação do nome e endereço do novo adquirente. Não havendo dúvidas, in casu, de que as infrações não foram cometidas no período em que tinha o recorrido a propriedade do veículo, não deve ele sofrer qualquer tipo de sanção" (REsp 965.847/PR, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 14.03.08). Incidência da Súmula 83/STJ (...) 3. Recurso especial não conhecido. (REsp 1126039/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 22/06/2010)
(...) É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, "Comprovada a transferência da propriedade do veículo, afasta-se a responsabilidade do antigo proprietário pelas infrações cometidas após a alienação, mitigando-se, assim, o comando do art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro" (AgRg no REsp 1.024.8687/SP, Rel. Min. CÉSAR ASFOR ROCHA, Segunda Turma, DJe de 6/9/11).
(...) Consoante entendimento desta Corte, a regra prevista no art. 134 do CTB sofre mitigação quando restarem comprovadas nos autos que as infrações foram cometidas após a aquisição de veículo por terceiro, ainda que não ocorra a transferência afastando a responsabilidade do antigo proprietário. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 174.090/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012)
(...) Comprovada a transferência da propriedade do veículo, afasta-se a responsabilidade do antigo proprietário pelas infrações cometidas após a alienação, mitigando-se, assim, o comando do art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro. Precedentes do STJ. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1204867/SP, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 06/09/2011)
Por todo o exposto, resta claro que mais uma vez o Superior Tribunal de Justiça retira a eficácia de norma cogente do ordenamento jurídico brasileiro ao mitigar a aplicação do art. 134 do CTB ao entender que, em verdade, uma vez devidamente comprovada a transferência (venda, tradição) do bem, não há que se falar em responsabilidade do vendedor, mesmo de ausente o atendimento ao comando do art. 134 do CTB. Ou seja, comprovada a tradição mesmo que anos depois, ao vendedor não poderá ser imposta qualquer penalidade.