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Questões atuais sobre a responsabilidade civil médica: a indústria do dano contra médicos

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21/02/2015 às 16:32
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4 A INDÚSTRIA DAS DEMANDAS CONTRA MÉDICOS

Muitos doutrinadores elencam várias causas para justificar o aumento de demandas contra os médicos, como descrito a seguir.

4.1 FATORES /CAUSAS JUSTIFICANTES DO AUMENTO

A atividade médica passou por uma grande evolução, deixou de ser um sacerdócio, magia, sendo referida por Hipócrates como ciência, medicina clínica, voltando a atenção dos médicos não para os deuses mas sim para o paciente. Após, tivemos a figura dos médicos da família, o de confiança, que o paciente entregava a ele sua vida, sendo uma relação unilateral e vertical, pois a palavra era sempre do médico, não havia discussão. Com a evolução dos direitos civis, como o direito a autonomia e liberdade, e, com a evolução dos Princípios Bioéticos, a autonomia do paciente ganhou grande destaque, tornando a relação bilateral, tendo o paciente voz ativa nas decisões sobre sua saúde, sendo ouvido e podendo até mesmo recusar tratamentos.

A autonomia do paciente pode ser tido como fator de aumento das demandas, pois com o paciente com voz ativa nas decisões pode acabar entrando em choque com o médico, a relação passa a ser dual, não havendo mais o médico da família/ relação de subordinação, sem discussão sobre o método e tratamento empregado pelo médico.

O médico de família/ Clínico Geral também perdeu destaque com a evolução da medicina e com o aumento das especialidades médicas, com a crescente dependência da medicina à tecnologias complexas, acelerou-se a tendência para a especialização e reforçou a propensão de cada médico tratar apenas partes especificas do corpo, tornando a relação médico paciente cada vez mais impessoal e distante.

 Ainda, temos como fatores do aumento de demandas, a medicina altamente invasiva, porém mais eficaz. Com a tecnologia e os avanços científicos a medicina deixou de se limitar apenas a diminuir sofrimentos (menos eficaz e menos invasiva). Hoje os procedimentos sem dúvida são mais eficazes e não apenas buscam diminuir o sofrimento, ao contrário. A evolução cientifica tornou a medicina mais invasiva decorrendo, assim, maiores riscos. Os avanços trazem beneficio para toda a comunidade, mas em contrapartida traz consigo maiores riscos, por isso autores como Genival Veloso França defende a socialização do risco médico[25].

A vida social passou a ser abalada pelos modernos recursos tecnológicos, e com isso muitos riscos foram aparecendo, porém, todo aquele que se beneficia com a atividade, deve assumir a responsabilidade sobre ele, ora, a evolução da medicina e da ciência trouxeram benefícios para toda a coletividade, todos os seres humanos são beneficiados com tamanha evolução das ciências médicas. Para GENIVAL VELOSO FRANÇA, "A medicina é a profissão que mais absorve os impactos das novas concepções sociais".[26]

Há, ainda, nos dias atuais gritante a ação de marketing contra a imagem do médico, organizada em bases cada vez mais sólidas, para implementação no Brasil dos chamados "seguros de responsabilidade civil", à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos da América[27]. Seguros estes que não se coadunam com a realidade da saúde em nosso país, e que trariam uma medicina mais cara e menos eficaz. Mas que fomentam a imprensa e a imaginação de pacientes em busca de reparação por erros médicos, com críticas e comentários, na maioria das vezes incompetentes devido ao precário conhecimento do assunto e o pré-conceito que hoje cerca esta relação.

Outro mecanismo importante que fundamenta este aumento é a mercantilização do dano moral e seu caráter mercenário. O ilustre autor Anderson Scheiber, cita que as normas sobre responsabilidade civil não acompanham as lides e aflições sociais, ora, várias violações de direitos extrapatrimoniais são solucionadas por uma lógica patrimonial e mercantilista, ou seja, houve com a Constituição abertura para se ressarcir o dano moral, porém com a mesma resposta tradicional do dano material, sendo o conteúdo estritamente patrimonial.[28]

Ainda, acrescenta que há uma inércia da comunidade e de seus legisladores em oferecer a estas vitimas de danos morais solução diferente de uma soma em dinheiro. Estimulando, assim, o sentimento mercenário. Para o autor, a redução de uma lesão extrapatrimonial em um quantia monetária é instrumento de mercantilização que tenta quantificar o que é inquantificável. Há outras formas de compensar um dano extrapatrimonial que não o dinheiro, há formas até mais eficazes para sancionar o agente ofensor. [29]

Neste estudo elencamos como fatores preponderantes, a facilidade do acesso ao judiciário, o próprio sistema jurídico criou um novo modelo de demandante, aquele que se utiliza dos institutos e proteções dadas pelo judiciário para demandar levianamente. O principal instituto fomentador desse novo modelo de autor é a justiça gratuita sem comprovação. O judiciário é visto como uma forma de auferir vantagens facilmente, e infelizmente, não há problema de demandar levianamente, pois não terá ônus mesmo se sucumbente. Assim, como, a aplicação irrestrita e abstrata do CDC em desfavor do médico, como a inversão do ônus da prova, o foro do domicílio do consumidor e demais institutos. Estes institutos facilitam o processamento do autor leviano em sua aventura jurídica.


5 A REAL VÍTIMA

Segundo MARCOS VINICIUS COLTRI a cada 4 médicos processados, 3 deles são processados injustamente, em verdadeiras aventuras jurídicas. Porém o resultado favorável na demanda não significa exatamente um ganho para o profissional, pois na prática 3 em cada 4 médicos processados pagam para provar sua inocência, pagam em média 25 mil reais, sem poder reaver a quantia gasta no processo, isso porque, a maioria esmagadora dos pacientes são protegidos pelos benefícios da justiça gratuita.[30]

O cenário para os profissionais da medicina não é dos melhores, os pacientes que se dizem vítimas de erros médicos percebendo a facilidade de qualquer aborrecimento se transformar em quantia monetária a título de indenização, embarcam na aventura jurídica possibilitada pelo próprio sistema, surgindo uma verdadeira epidemia de ações de indenização, violando a real intenção da garantia do acesso ao judiciário.

Alex Pereira e Antônio Couto citam Miguel Kfouri, que em seu livro Culpa Médica e o ônus da prova, informa que 80% (oitenta por cento) das ações contra médicos são julgadas improcedentes, afirmando que o entusiasmo em proteger o paciente oferecendo fomentos imensuráveis para pedidos infundados de danos morais, gerou a realidade cruel de que em 100% dos processos o médico foi réu, muitas vezes em condições desiguais e no mais alto confronto com o maior dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana[31].

Com estas porcentagens é fácil chegar a conclusão de que o médico é hoje a real vítima de nosso sistema jurídico e de nossa jurisprudência. Infelizmente a jurisprudência ainda se apega na máxima que o "justo deve pagar pelo pecador", e em nome do acesso à justiça, concedem a gratuidade de justiça independente de comprovação, em flagrante desrespeito à CF e a aplicam de forma irrestrita os institutos do CDC. Estes institutos aplicados pela jurisprudência e citados pela doutrina, colocam o médico em extrema desvantagem processual e material, colocando o médico em condição desigual.

A indústria do dano contra médico, não atinge apenas a esfera patrimonial do médico, que ao contrário dos demais fornecedores de serviço, não conta com vultuoso poder econômico e nem mesmo com a justiça distributiva, ora, colocar sobre o médico o encargo financeiro de uma demanda infundada, é uma flagrante lesão a seus direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, direito à vida, à intimidade ao patrimônio e etc. E como a maioria dos demandantes conta com a justiça gratuita o médico mesmo que ao final seja tido como inocente não conseguirá reaver a quantia gasta. Ora, não é justo e nem digno que o médico arque com tamanho ônus.

Portanto, merecem e devem ser relidos os institutos flagrantemente protecionistas adotados pelo judiciário, pois apesar de proteger uma classe, está diretamente lesando direitos fundamentais de outra, não merece mais destaque a máxima do justo pagar pelo pecador, haja visto, que a Constituição Federal tipifica expressamente como fundamento do estado brasileiro a Dignidade da Pessoa Humana.

Apesar de todo o desgaste financeiro estas demandas ainda trazem sérios prejuízos ao nome, honra, intimidade e etc. Em alguns casos os médicos são expostos pela imprensa sensacionalista em pré-suposições e pré-conceitos, tendo seu nome e sua fama, construído com anos de estudo jogados na lama. Além do constrangimento e da perda de clientes ao ser colocado como réu em uma ação por erro médico. Em uma pesquisa no "Google", o paciente ou futuro paciente tem em mãos livremente as informações judiciais de seu médico.

Com os institutos do CDC o médico ainda tem sua ampla defesa, contraditório e dignidade lesados, estes institutos acabam por dificultar sua defesa e sua prova de inocência em tempo hábil. Infelizmente, em sua maioria, os processos não são extintos em tempo hábil, ficando o médico a mercê de um pronunciamento jurisdicional por anos, tendo sua imagem devastada e marcada. Ora, é injusto e ilegal, que estas demandas infundadas, perpetradas por pacientes em busca de vantagens, traga tantos males a uma classe, e que fira seus direitos mais importantes.

Antes que a saúde brasileira entre em colapso, é necessário rever posicionamentos e pensamentos ultrapassados de protecionismo a qualquer custo. Ora, o CC/2002, inovou ao implementar maior responsabilidade ao Estado-Juiz, no exame e aplicação da eticidade e boa fé de todos os envolvidos no processo.

Cabendo ao judiciário desestimular as demandas infundadas de pacientes, protocoladas em verdadeiras aventuras judiciais, desprovidas de razão na tentativa de auferir vantagem financeira, rompendo com os institutos protecionistas. Tais demandas, lesam direitos dos médicos demandados, como gastos excessivos, perda de tempo, angústia, desgaste emocional e de sua reputação, devendo serem banidas e os autores responsabilizados pelo abuso de direito de demandar.[32]

Para Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira, esta indústria de danos devem ser sujeitos ao rigor da função social, da eticidade, da probidade e da boa-fé, sendo papel do judiciário inibir tais práticas, pois não há mais limites após o advento do CC/02 para que o Estado-Juiz alcance a busca da paz social.[33]


6 CONCLUSÃO

O aumento de demandas contra médicos tem como maior causa o cenário pós moderno em que vivemos, em que se busca o bem estar individualista e protecionista, em que não se vive mais por meritocracia e sim com o assistencialismo, a procura por dinheiro fácil está inserido até mesmo no cenário político brasileiro, como a implementação desvirtuada de políticas assistenciais, deixando os brasileiros em um estado imensa tranquilidade. O cenário de extremo intervencionismo estatal em busca de assegurar a todos os direitos sociais e individuais, acaba resvalando em outros ramos. Mas com o advento do CC/02 os princípios basilares de eticidade e boa-fé devem ser aplicados na busca de evitar o protecionismo exagerado e lesão a princípios constitucionais.

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No cenário atual é recomendável uma releitura desses institutos consumeristas e protecionistas levando-se em conta o princípio basilar de nosso sistema a Dignidade da Pessoa Humana, e buscando delimitar a atuação do Estado nas demandas, pois sua atuação se fundamenta apenas para restabelecer a igualdade, e não para transformar a relação em desigual, deflagrando uma extrema desvantagem para a outra parte.

Os ilustres autores Antônio Ferreira e Alex Pereira ao concluírem citam de maneira magistral o dilema e a questão atual que cerca a responsabilidade do médico,

...na busca da verdade verdadeira, sempre sob o manto da ética que emana dos Princípios Constitucionais Brasileiros e trazê-los para a realidade única e completa dos autos, cuja maior preocupação e excelência é a sua individualidade. Pelo que gratuidades desmedidas e ao arrepio da constituição (falta de comprovação), inversão do ônus da prova no início da instrução processual, valor da causa manipulando para lesar o erário e desvinculado do pedido, exatamente para dar coragem aos trabalhadores da industria das indenizações e na banalização do Dano Moral, nos pedidos milionários, culpa presumida entre questões que envolvam somente pessoas humanas, servem para mascarar o feito e afastar o Julgador do rastro e do cheiro de justiça, beneficiando infratores, oportunistas da primeira e da última hora, aventureiros e trabalhadores da industria do dano.[34]

Os julgadores devem se atentar para os princípios Constitucionais como a Dignidade da Pessoa Humana dos profissionais, que são colocados como réus em demandas infundadas, trazendo consequências desastrosas não só para o médico mas para todo o sistema de saúde brasileiro.

Para os autores, ainda, temos que nos despedir de teorias alienígenas, presunções, cargas probatórias dinâmicas, por serem úteis, mas funcionam como verdadeiros antibióticos jurídicos, arrasando organismos inteiros com os nefastos efeitos colaterais.[35]

É necessária a implementação pelo do Poder Legislativo, de nova lei que regulamente a norma constitucional que garante a justiça gratuita desde que comprovada a hipossuficiência, determinando requisitos e limites para tal direito. A apresentação apenas de uma carta judicial não filtra e nem coíbe os abusos.

Além da releitura da aplicação irrestrita de direitos protecionistas pelos Poderes Legislativo e Judiciário, ainda, há necessidade de implementação de varas especializadas, contando com especialistas da classe médica para auxiliar os juízes, facilitando o entendimento dos julgadores em momentos oportunos, como o indeferimento da petição em despacho liminar ou até mesmo em julgamento antecipado da lide, para evitar que demandas infundadas perpetuem em nosso sistema, pois o julgamento desse processo, após a instrução processual tem tornado o maior complicador da dignidade do médico brasileiro e contribuindo para prejudicar carreiras construídas com anos de estudo.

O próprio judiciário deve modificar seus procedimentos e posições, pois o que vemos é o médico sendo diferenciado por pré-suposições perpetradas por nós juristas leigos em medicina, onde foram criadas teorias de culpa presumida, e outras formas de direito descomprometido com a justiça, passando por cima de dogmas médicos, como os fortuitos, complicações e iatrogenias.[36]

Necessário, ainda, implementar punições severas para os autores destas aventuras judiciais. Estes abarcados pela má-fé e em busca de dinheiro fácil, utilizam o poder judiciário numa espécie de loteria jurídica, tentam uma descabida indenização, almejando ganho fácil, utilizando-se como ardil do direito à assistência judiciária gratuita. Estes processos abarrotam o poder judiciário de questões fadadas à improcedência, deixando-o ainda mais caótico e ineficaz.

Cabe salientar que o direito de demandar não é absoluto, conforme ensinamento de PEDRO BAPTISTA MARTINS, citado por RUI STOCO,

O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade, porque abusa de seu direito[37]

Cabendo ao Estado-Juiz coibir o abuso da fruição da garantia de acesso à Justiça, reconhecendo a litigância de má-fé e o abuso do direito de ação. Indenizando o réu pelos danos morais e materiais sofridos. Ora, é esperado de todo cidadão ao exercer seu direito de acesso ao judiciário que exerça dentro dos limites da boa-fé, ética e finalidade social, ou seja, dentro dos padrões de prudência e diligência que teria inspirado um homem atento e diligente, sendo necessários fundamentos pertinentes, fáticos e jurídicos.

Estas práticas coibindo abusos trariam alento à classe médica vítima desse tipo de demanda. Ora, de acordo com estudos 80% dos médicos processados são sentenciados como inocentes, a máxima que o justo paga pelo pecador, em nome do acesso a justiça, deve ser banida de nosso sistema, visto que a Constituição garante a todos a dignidade da pessoa humana e o CC/02 tipifica como fundamento a boa-fé e a eticidade em todas as relações jurídicas.

Os autores Antônio Ferreira Couto e Silva e Alex Pereira Souza, no livro instituições de Direito Médico após análise de estatísticas levantadas que de cada 10 médicos 8 são julgados inocentes, ressaltam brilhantemente que,

seria forte mas não irreal afirmar que a paz social não poderá ser alcançada, vez que estamos protegendo o embuste, a improbidade e má-fé. O Estado-Juiz se coloca em verdadeiro "xeque-mate" e distribui a paz social apenando 8 (oito) justos para tentar punir 2 (dois) pecadores .[38]

Com os levantamentos percebemos que apenas 2 em cada 10 autores tinham compromisso com a ética e a boa-fé. Estes levantamentos e estatísticas demonstram claramente o clamor pela releitura destes institutos e pelo aperfeiçoamento de julgadores frente a estas demandas. É notório que o profissional médico merece e precisa de proteção à sua dignidade assim como o consumidor, não devendo os julgadores ficarem a mercê da indústria do dano contra médicos.

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Sobre a autora
Amanda Bernardes

Advogada Especialista em Defesa Médica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Amanda. Questões atuais sobre a responsabilidade civil médica: a indústria do dano contra médicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4252, 21 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35343. Acesso em: 26 abr. 2024.

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