O Brasil e o preconceito: uma análise teórica e crítica da Lei nº 7.716/89 frente à realidade brasileira

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09/01/2015 às 16:17
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6 DA ANÁLISE PRÁTICA E CRÍTICA DA LEI 7.716/89 FRENTE A REALIDADE BRASILEIRA ATUAL: CASOS RECENTES

No começo do ano de 2013 fomos “surpreendidos” com dois casos de racismo que foram (com razão) alvos de muitas críticas por meio da mídia televisiva e impressa. O primeiro caso ocorreu em uma farmácia, quando um menino negro, de 11 anos, foi interpelado por um dos funcionários da loja, que não percebeu que o garoto estava acompanhado pela avó e começou a perguntar se aquele “negrinho” estaria incomodando. O outro caso ocorreu na Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro, quando o consultor Ronald Munk e a mulher Priscilla Celeste denunciaram que seu filho mais novo, de sete anos, foi vítima de racismo na concessionária BMW. O menino negro é filho adotivo do casal e enquanto conversavam com o gerente de vendas sobre a compra de um novo carro, o filho se aproximou e foi enxotado pelo gerente. Em seguida, o funcionário voltou para o casal e justificou a atitude com a seguinte frase: "eles pedem dinheiro, incomodam os clientes".

No final de 2011, um garoto negro estrangeiro de seis anos de idade foi retirado de um restaurante em São Paulo enquanto aguardava sentado a refeição que sua mãe traria. A justificativa do funcionário: achou que o garoto era um pedinte. Em 2012, a professora de religião da Universidade Estadual do Pará chama o segurança da universidade de “macaco” e é denunciada por alunos.

Em abril de 2013, a polícia de Minas Gerais consegue prender um neonazista após o mesmo divulgar fotos em rede social nas quais enforcava um morador de rua. Posteriormente, o acusado foi beneficiado com um habeas corpus e encontra-se respondendo ao processo em liberdade por formação de quadrilha, racismo e divulgação do nazismo[55].

Em meados de 2010, a copeira Sônia ia de ônibus para casa quando, no meio do caminho, um passageiro levantou-se, cuspiu no rosto dela e a chamou de “negra safada”. “Depois disso, ele veio para cima de mim, como se fosse me bater. A minha sorte é que um homem impediu a agressão. Ele pediu ao motorista que não parasse o veículo e descemos direto na delegacia para prestar queixa”, conta Sônia. “Passei muito tempo sem andar de ônibus para me recuperar do medo e da vergonha pelos quais passei. O homem que me ajudou também é negro e ouviu xingamentos do rapaz que cuspiu em mim. Nunca pensei que a discriminação por causa da cor da pele pudesse chegar a esse ponto.” Quem agrediu Sônia hoje responde por injúria racial no processo que corre na Justiça[56].

Mais recentemente, um vereador do município do Rio de Janeiro foi indiciado por apologia ao crime após tecer comentários em que defendia a cassação do direito de voto aos mendigos e ainda incentivava que todos deveriam ser mortos e virar ração para peixe[57].

As situações mencionadas acimas são apenas alguns exemplos da discriminação existente no Brasil. Esses casos, sem dúvida nenhuma, não representam nem dez por cento da quantidade de casos de preconceito que deve ocorrer diariamente no país, os quais sequer chegam, na maioria das vezes, a ser registrados perante as autoridades.

Alguns mais céticos talvez argumentassem que o Brasil é um país “subdesenvolvido”, que carece ainda de educação e que por isso seria natural que as situações supramencionadas ocorressem aqui.

De fato, o Brasil é um país em desenvolvimento, todavia o racismo não é um problema somente nacional.

Na Alemanha, a quarta maior economia do mundo, sofre com a proliferação de grupos neonazistas em razão da política frouxa do governo.

Na Suíça, país considerado “de primeiro mundo”, vigésima economia mundial e nono país com melhor índice de desenvolvimento humano, a apresentadora Oprah Winfrey, (uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos e considerada uma das mais influentes no mundo) foi vítima de racismo ao lhe ser negada a exibição de uma bolsa, que segundo a vendedora seria “cara demais para ela”.

Esses dois exemplos servem para demonstrar que o preconceito e o racismo são problemas que assolam o mundo como um todo e que não está necessariamente relacionado ao desenvolvimento econômico de um país.

Voltando a atenção para o Brasil, que é o objetivo deste trabalho, observamos que embora pregue-se que o Brasil é “um país de todos”, a realidade diverge “um pouco” deste slogan.

No capítulo dois verificamos alguns números referente as consequências do preconceito no país. Obviamente que os negros não são o único grupo discriminado no país, mas são um dos que mais sofrem com esta prática. Dentre os grupos que também são comumente vítimas do preconceito podemos citar os homossexuais, os pobres, as mulheres, os idosos, os índios e as pessoas com necessidades especiais.

Conforme verificado no capítulo anterior, a lei 7.716/89 somente tutela os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que nem todos os grupos sociais supracitados podem se valer dela para garantir seus direitos.

Embora os casos mencionados no início deste capítulo sejam recorrentes na mídia, pouco se houve acerca da punição de seus agentes.

Não há um levantamento oficial sobre as punições pela lei, mas em 2009 o próprio ministro da Igualdade Racial admitiu que são poucos os casos punidos pela lei 7.716/89[58].

Segundo especialistas, a maior parte dos casos de discriminação racial é tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, como injúria, que prevê punição mais branda: de um a seis meses de prisão e multa, tornando a lei “Antipreconceito” quase uma lei morta. A falta de punição acaba incentivando práticas racistas.

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A falta de punição pode ser exemplificada ao buscarmos decisões jurisprudenciais sobre a aplicação da lei 7.716/89. Ao realizarmos tal pesquisa junto aos Tribunais nacionais encontraremos pouco mais de quarenta decisões.

Em razão da raridade destes, colacionamos abaixo o julgado na qual o Relator Moreira Alves do Superior Tribunal de Justiça expressa um pouco daquilo que fora abordado neste trabalho:

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.

1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pelé, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.9. Direito comparado.A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéiasanti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (Processo: HC 82424 RSRelator(a):MOREIRA ALVESJulgamento: 16/09/2003Órgão Julgador: Tribunal PlenoPublicação:      DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524) (grifos nossos)

Esperamos que com o passar do tempo, a lei 7.716/89 venha a ser aplicada de maneira mais efetiva punindo os responsáveis por práticas discriminatórias.      Felizmente, em razão do momento que vive o país no qual se discute muito o debate sobre a diversidade sexual, verifica-se um aumento no registro de queixas de racismo.

De 2011 a 2012, o número de reclamações de discriminação racial feitas à Ouvidoria da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial (Seppir) praticamente dobrou, de 219 em 2011 a 413 no ano de 2012, um aumento de 88%.  Em 2013, até março, haviam sido registradas 78 denúncias. Na internet, as reclamações contra sites com cunho discriminatório também é expressiva. Em 2012, a ONG Safernet, que recebe denúncias de violações dos direitos humanos na web, identificou 5.021 comunidades no Facebook que abrigavam conteúdo racista[59].

Acreditamos que o reconhecimento do problema existente no Brasil por meio de denúncias é o primeiro passo para a solução do problema da discriminação no país.

Não obstante a lei 7.716/89 tenha problemas, os quais serão comentados na conclusão deste trabalho, ela pode ser melhor aplicada.

Atualmente corre no Senado o projeto de alteração do Código Penal (PLS 236/12) que pretende tipificar como crime as condutas de homofobia, bullyng e incluir o racismo no rol de crimes hediondos.

A mera criação e alteração de leis não é suficiente para diminuir os casos de preconceito e discriminação existente no país. O governo deve adotar campanhas, criar comissões, educar a população e criar políticas públicas a fim de tornar realmente o Brasil num país de todos. 

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Sobre a autora
Aline Albuquerque Ferreira

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Ex-Advogada. Pós-graduada em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Pós- graduanda em Direito Público. Possui graduação em direito pela Universidade Paulista (2011). Aprovada no IV Exame da Ordem. Tem experiência em direito, com ênfase em direito penal e direito do consumidor.Foi estagiária concursada do Ministério Público Estadual (área criminal) e Ministério Público Federal (área: tributária, constitucional). Foi estagiária da magistratura estadual de São Paulo na área criminal, estagiária na vara das execuções criminais de São Paulo e Vara das Execuções Fiscais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicação anterior: FERREIRA, Aline Albuquerque. A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o patrimônio do Código Penal Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3263, 7 jun. 2012. Disponível em: .

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