A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA foi criada por meio da Lei 9.782, de 26 de setembro de 1999. A partir desta Lei ficou estabelecida a criação e a finalidade da Agência, como expõe seus arts. 3º e 6º respectivamente:
Art. 3º -Fica criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro no Distrito Federal, prazo de duração indeterminado e atuação em todo território nacional.
Art. 6º – A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.
É de suma importância sua atuação de regulamentação, controle e fiscalização, e a depender de seus estudos e avaliações, a mesma tem o poder de normatizar no intuito de inibir ou diminuir as condutas ou produtos que causem prejuízo à saúde. Mesmo diante da capacidade normativa do órgão Administrativo, é preciso ainda assim, ter obediência aos valores e as normas constitucionais, que estão no topo da hierarquia do ordenamento jurídico.
Por meio deste poder normativo da ANVISA, criou-se a Resolução nº 153/2004, a qual determina os procedimentos hemoterápicos. Nesta citada Resolução, em seu item B.5.2.7.2, a ANVISA determina as situações de risco acrescido. O candidato a doação de sangue, que se enquadrar em qualquer das situações elencadas pela Resolução, pode ser impedido já na triagem de doar o sangue. Dependendo da situação de risco a qual se encontra o candidato o impedimento pode ser temporário ou definitivo.
São várias as restrições que a ANVISA determina, dentre elas será de suma para este estudo a alínea “d”, a qual faz referência aos homossexuais. Assim determina a Resolução:
B.5.2.7.2 – Situações de risco acrescido
d) Serão inabilitados por um ano, como doadores de sangue ou hemocomponentes, os candidatos que nos 12 meses precedentes tenham sido expostos a uma das situações abaixo:
…
Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e ou as parceiras sexuais destes. (Grifo nosso)
Observando esta censura aos homossexuais, outro princípio deve ser analisado, que é o da legalidade. A legalidade está presente como princípio norteador tanto na esfera constitucional, como na seara administrativa. Segundo a CF/88, em seu art. 5º, bem expõe a legalidade quando afirma:
Art. 5 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Assim, o intuito deste valor trazido constitucionalmente é o de coibir arbitrariedades ou de disseminar ações de interesses particulares por meio do Estado, assegurando assim o exercício da democracia.
Para maior compreensão José Afonso da Silva elucida:
O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrática de Direito, como vimos, porquanto é da essencial do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Toda a sua atividade fica sujeita a lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei. (SILVA, 2000, p. 423)
O legislador, no momento da elaboração das leis e normas, deve fazer uma análise minuciosa em relação ao respeito às normas constitucionais, pois toda a legislação jurídica e administrativa deve respeito a estas, tendo uma harmonia vertical e sendo a CF/88 a Carta Maior de nosso ordenamento.
Já na seara administrativa o princípio da legalidade funciona racionalmente de forma diversa daquela conhecida na seara cível. Enquanto nesta, tudo o que não é proibido é permitido, na área administrativa a liberdade tem um campo um pouco mais delimitada, pois prevalece a lei e somente se pode fazer o que ela autoriza, segundo Celso Ribeiro Bastos, em seu livro Curso de Direito Administrativo.
Também exprime a relevância da legalidade Celso Antônio Bandeira de Melo: O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois como tem raiz de ideia de soberania popular, de exaltação da cidadania. Nesta última se consagra a radical subversão do anterior esquema de poder assentado na relação soberano-súdito (submisso).
Comparando o propósito da legalidade e o seu exercício, com o que propõe a ANVISA em sua Resolução, onde expressamente inviabilizam os homossexuais como candidatos a serem doadores de sangue bem como suas parceiras, constata-se a ilegalidade da norma administrativa.
A afronta aos direitos fundamentais não se justificam ou se coaduna com as desproporções impostas pela ANVISA. Pois bem, conforme passagem de José Afonso anteriormente já transcrita a legalidade tem o propósito o escopo de combater atos arbitrários do Estado, mas não só. A lei deve ter um propósito de buscar a igualdade, já que este é um princípio constitucional, uma norma a ser respeitada e aplicada. E como descreve o ilustre autor, esta busca pela igualdade faz menção a equalizar as condições socialmente desiguais.
No caso do que aplica a Resolução em questão, de forma alguma a essência desta é de trazer uma condição social de igualdade aos homossexuais. E a ofensa vai muito além do desrespeito ao princípio da legalidade, mas também uma afronta aos princípios da igualdade, da dignidade, da liberdade, dentre outros direitos fundamentais, ou seja, a todo nosso ordenamento jurídico.
Sob o prisma do princípio da igualdade todos devem ser tratados de forma isonômica, mas não só. Celso Antônio Bandeira de Mello explica as facetas deste princípio:
Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no art. 5º, caput – que todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unânime, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do principio da igualdade, 2003, p.09)
Se as leis não podem estar em desconformidade com a isonomia, o mesmo vale para a Resolução da ANVISA, pois a aplicabilidade é a mesma para todas as leis e normas.
Claro que princípio nenhum é absoluto, nem mesmo os constitucionais. Por vezes, eles podem ser relativizados, no intuito de abrandar as desigualdades. Então, o Estado discrimina, tratando de forma diferenciada um grupo, no escopo de assim oferecê-lo a igualdade necessária de competir com os demais. Podemos verificar, por exemplo, a Lei 11.340/06, que é a Lei Maria da Penha, bem como a Lei 12.711/12, que implantou uma cota destinada aos negros para adentrarem nas Universidades. Estas medidas foram tomadas destinando às mulheres e aos negros uma situação diferenciada de tratamento, para dirimir a desigualdade social.
Mas, nem sempre esta discriminação é coerente e tem a essência de produzir a igualdade. Para tanto, Celso de Mello, elenca os critérios para ser possível a identificação do desrespeito à isonomia:
Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões:
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;
b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímem e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;
c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.
Esclarecendo melhor: tem-se que se investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do principio da igualdade, 2003, p.09)
A ANVISA considera critério para eliminar candidato a doação de sangue a sua orientação sexual homoafetiva. Sendo assim, pela referida resolução, os homossexuais são proibidos de doar sangue.
Já o segundo critério a ser analisado é o fundamento lógico para que ocorra a desigualdade, o que não há no caso, pois todos aqueles que são sexualmente ativo são passiveis de serem contaminados e de contaminar os demais com Doenças Sexualmente Transmissíveis – DSTs.
E por último, se existe correlação com o sistema normativo constitucional: obvio que não. A regra ditada pela ANVISA, que tem como justificativa trazer maior segurança ao receptor, tem na verdade por detrás de sua Resolução uma forma inaceitável de discriminação.
Vale salientar, que de maneira alguma o intuito deste trabalho é o de diminuir ou de colocar em dúvida a segurança e o bem-estar do receptor. Até porque o ato gratuito e solidário do doador tem por finalidade primordial o de ajudar aquele que precisa. Entretanto, não é correto deixar passar de forma despercebida uma discriminação tamanha, sendo omissos com indivíduos homossexuais que podem prover sangue seguro como os demais.
No caso, o preconceito da sociedade contra o homossexual, juntamente com o desconhecimento da síndrome de imunodeficiência adquirida e a falta de maior perícia nos testes diante desta nova doença que surgia, possibilitaram um boom na transmissão da AIDS. Como bem expõe Mirtha Tanaka e Aline de Oliveira, os acidentes ocorridos pela transfusão de sangue propiciaram esta medida de restrição.
Destarte, diante do fato de que a ANVISA não possuía meios de detectar o vírus no sangue, gerou-se a consequência negativa aos homossexuais. Se talvez nem mesmo na época tal medida fosse a mais coerente e justa, atualmente, pode se ter a certeza de que não é.
Os testes laboratoriais estão cada vez mais eficazes, sendo mais precisos num tempo cada vez menor, e o mesmo ocorre com a chamada janela imunológica. Mirtha Tanaka e Aline de Oliveira explicam a importância de ser observada a janela imunológica e o que significa: “Essa probabilidade residual de transmissão se deve principalmente à possibilidade da existência de doadores na denominada janela imunológica, período inicial da infecção em que os testes de diagnósticos são negativos.”
Segundo o Departamento de DST, AIDS e Hepatite Virais, a janela imunológica pode variar de 30 a 120 dias. Então, diante deste prazo de segurança, não se justifica um período tão longo de 12 (doze) meses sem relações sexuais aos homossexuais, e somente a estes. A aplicação deste prazo excessivo é um meio coercitivo inconstitucional, visando o indivíduo a se abster ou negar sua sexualidade, e também punitiva.
As chamadas Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTS) são passiveis de serem transmitidas a todo e qualquer indivíduo, não sendo uma consequência restrita a uma ou outra orientação sexual. Diante desta premissa, não há lógica no procedimento adotado pela ANVISA, pois o grupo de risco acrescido não são os homossexuais em si. Quem traz riscos são as pessoas ativas sexualmente que não se previnem, quer sejam homo ou heterossexuais, e a não observância da janela imunológica em alguns casos.
Então, a partir do momento que a situação de risco é geral a todas as pessoas sexualmente ativas, mas a restrição é exclusiva ao grupo dos homossexuais, tendo uma condição descabível de não terem relações por 12 meses para serem doadores de sangue, há desproporcionalidade. Fica evidente, então, o desrespeito à isonomia.
Os direitos fundamentais dos homossexuais são afrontados de forma clara e grave, entre outros, nem observados, sendo esquecidos. Os mesmos estão sendo coagidos a mentir ou omitir sua sexualidade para terem igualdade e até mesmo dignidade diante de exercerem sua cidadania. Destarte, diante do que aplica a ANVISA por meio desta Resolução foram e são atingidos os direitos fundamentais dos homossexuais, não tendo lógica alguma com o que é almejado pelo nosso sistema constitucional.
3.2 A Inconstitucionalidade da Resolução 153/04 da ANVISA
Na Constituição podemos encontrar os mais altos valores almejados e protegidos necessários para o indivíduo viver dignamente e de forma harmônica com os demais. A relevância suprema destes bens se deu por termos passado por momentos de repressão e limitação de direitos na época ditatorial. No intuito de assegurar a todos seus direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988, que é escrita e rígida, estipulou um processo legislativo especial para que seja viável a alteração de seu texto.
Este poder de superioridade adveio pelo princípio da supremacia constitucional. E José Afonso explica o princípio:
O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os direitos constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com a constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quando a Constituição assim a determina, também constitui conduta inconstitucional. (SILVA, p. 48)
Assim, todos os atos normativos devem obediência à Constituição, devendo haver harmonia vertical entre todo o sistema jurídico. A Constituição então se torna um modelo a ser seguido pelas demais normas inferiores a ela, como acentuam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:
Significa dizer que para uma norma ter validade dentro desses sistemas há que ser produzida em concordância com os ditames da Constituição, que representa seu fundamento de validade. A Constituição situa-se no vértice do sistema jurídico do Estado, de modo que as normas de grau inferior somente valerão se forem com ela compatíveis. (PAULO & ALEXANDRINO, 2007 , p. 688)
A concordância, então, é quesito obrigatório para validade da norma, pelo menos em regra, pois os princípios podem ser relativizados. Mas, diante da incompatibilidade, seja ela material ou formal, deverá ser declarada sua inconstitucionalidade. Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino expõem como verificar esta inconstitucionalidade:
Inconstitucional é, pois, a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte, a Constituição. Se a lei ordinária, a lei complementar, o estatuto privado, o contrato, o ato administrativo etc. não se conformarem com a Constituição, não devem produzir efeitos. Ao contrário, devem ser fulminados, por inconstitucionais, com base na supremacia constitucional. (PAULO & ALEXANDRINO, 2007, p. 691-692)
Com sua inconstitucionalidade declarada, torna-se nula a lei ou ato não condizente com Carta Magna Entretanto, é necessário, todavia, que o controle de constitucionalidade seja provocado, pois, em regra, em detrimento do princípio da presunção da constitucionalidade, todas as leis nascem válidas. E o princípio da presunção de constitucionalidade nada mais é que:
Decorrência deste princípio. Temos que as leis e atos normativos estatais deverão ser considerados constitucionais, válidos, legítimos até que venham a ser formalmente declarados inconstitucionais por um órgão competente pra desempenhar este mister. Enquanto não formalmente reconhecidos como inconstitucionais, deverão ser cumpridos, presumindo-se que o legislador agiu em plena sintonia com a Constituição – e com a vontade do povo, que lhe outorgou essa nobre competência. (PAULO & ALEXANDRINO, 2007, p. 691).
É exatamente o que ocorre com a Resolução nº 153/04 da ANVISA que analisamos. Mesmo diante de todos os fatos apresentados, e da clara demonstração de afronta aos mais puros e almejados valores, ditos e colocados como direitos fundamentais constitucionais e, também humanos, não basta. É necessário que o Poder Judiciário seja provocado, exercendo sua função de controle constitucional, para que seja a Resolução declarada inconstitucional diante da ação discriminatória, desigual e indigna que aplica aos homossexuais.
No caso, a ANVISA age de forma ativa no desrespeito constitucional, sendo enquadrada, então, numa inconstitucionalidade por ação. José Afonso didaticamente expõe o fato da inconstitucionalidade por ação:
Ocorre com a produção de atos legislativos ou administrativos que contrariem normas ou princípios da constituição. O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela, são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores.(SILVA, p.49)
Para garantir a supremacia constitucional de atos posteriormente criados que possam a vir a desrespeitá-la, a própria Constituição positivou em seu texto mecanismos de defesa, que no caso é sistema de controle constitucional. A ação cabível, no caso da violação presente na Resolução, é a ação de inconstitucionalidade.