Capa da publicação Processo eletrônico e extraoperabilidade: conexão, causalidade, estrutura e juridicidade
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Processo eletrônico e o princípio da extraoperabilidade.

A conexão a serviço da causalidade (informação), da estrutura (operação) e da juridicidade

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04/02/2015 às 14:37
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4 O princípio da conexão: o que está no google está no processo

4.1 Compreensão e extensão do princípio conforme Chaves Júnior

Com o princípio da conexão, Chaves Júnior49 chama a atenção para as conexões no processo judicial eletrônico. As noções que seguem são captadas de suas lições na obra Comentários à lei do processo eletrônico e de outros teóricos que tiveram oportunidade de ouvi-lo. O autor não enuncia o princípio, apenas o anuncia e discorre a respeito, deixando ao leitor a elaboração de um conceito que albergue a idéia em termos de compreensão e extensão50.

No prefácio da obra referida, de Luiz Otávio Linhares Renault, está posta a mais polêmica conseqüência do princípio aventada pelo doutrinador:

Em sessão de julgamento perante a 4ª Turma do TRT/3ª Região, o Juiz Convocado Dr. José Eduardo Chaves, em uma de suas lúcidas intervenções, disse algo mais ou menos assim, e que me despertou para a importância dos princípios especiais do processo eletrônico: “no novo processo não vigora mais o dogma, segundo o qual o que não está no processo está fora do mundo; o princípio é outro: o que está no google está no processo”.51 [sem grifo no original]

Segundo Chaves Júnior, o processo eletrônico tem um caráter reticular pela “ [...] sua virtual inserção na rede, especialmente na rede mundial de computadores, a Internet.”52 Consequentemente, “[...] é desmaterializada a fronteira autos-mundo, já que ambos estão inseridos no chamado data space [...]” e isso “ [...] traz para os autos um outro mundo de informações, provas e muda radicalmente inclusive a própria racionalidade processual”53.

Tocando num ponto central do princípio que anunciou, Chaves Júnior afirma que “essa novel conexão autos-mundo, na verdade, é a conexão dos sujeitos processuais, juiz, autor e réu, com a sociedade virtual“, distinta, portanto, da eConexão focada pelo princípio da extraoperabilidade. E salienta que, pelo caráter cumulativo e expansivo da rede, “ [...] tudo tende a crescer em proporções e escalas gigantescas e até fora do controle aparente."54 [sem grifo no original]

Com apoio em Marshall McLuhan (o meio é a mensagem55), deduz que, nessa mudança de meio físico para o virtual, o processo sofre um condicionamento, inclusive, de conteúdo e de racionalidade, porque “os meios são concebidos como extensão dos seres humanos" e, então, todos se vêem condicionados pelo novo meio e tudo se transforma: “ [...] o próprio desenrolar do processo, a forma de participação das partes litigantes e até o conteúdo da decisão do juiz [...] “56.

Chaves Júnior vê positivamente o novo paradigma do processo porque a tecnologia “ [...] vai exponencializar a própria instrumentalidade do processo, que passará a ter muito menos amarras e limitações materiais, permitirá o aumento de sua deformalização e alargará as possibilidades probatórias."57

Relacionando a conectividade com o juiz, o autor atrai a idéia de inteligência coletiva, ataca o juiz solipsista dworkiano e sugere que, para a decisão e na prática, se realce “ [...] toda a potência das conexões interativas da inteligência articulada coletivamente."58

Para o autor, o processo baseia-se em dois tipos de conexão - tecnológica e social – entre sistemas, máquinas e pessoas59. O autor distingue, ainda, o que chama de princípios da conexão reticular e da conexão inquisitiva, o que se deve entender como subprincípios do princípio da conexão.

Explicando o primeiro – subprincípio da conexão reticular -, diz Chaves Júnior que “com o adjetivo reticular o que se deseja significar e enfatizar é que não se trata apenas de mera conexão, de uma conexão linear, mas de uma conexão qualificada, em rede."60 Disso decorre que "não há lineariadade rígida na sequência do fluxo processual eletrônico conectado. Não há nos autos virtuais nem mesmo folhas numeradas, mas ’eventos em fluxo'".61 O processo eletrônico viabiliza “ [...] a transmissão incessante, em tempo real, do conteúdo dos atos e das práticas processuais"62 e, daí, deduz-se, segundo o autor, que “[...] o meio eletrônico transcende as limitações materiais do meio de papel [...] permite a aproximação entre os autos e a verdade (real e virtual) contida na rede [...]."63

Os atos tornam-se " [...] menos dedutivos e silogísticos. [...] O prazo deixa de ser um conceito estanque, para assumir uma perspectiva mais dinâmica [...] da preclusão lógica caminha-se para uma indução preclusiva [...]” e, o próprio saneamento das nulidades formais “ [...] não está mais condicionado apenas à inércia da parte na primeira oportunidade que tiver de se manifestar nos autos."64

Em relação ao segundo subprincípio - da conexão inquisitiva -, informa o doutrinador que a conectividade dá ao juiz um caráter inquisitivo ampliado:

No processo de papel [...] não há como se exigir que o julgador conheça algo fora da realidade materializada e estabilizada nos autos. No processo virtual essa separação é literalmente desmaterializada. As fronteiras entre os autos e o mundo já não são tão claras, pois ambos pertencem ao mundo virtual.

Por outro lado, reconhecendo um dos inúmeros riscos da observância estrita do princípio, o autor adverte que "[...] doutrina, jurisprudência e legislação vão, com o passar do tempo, estabelecer os limites para a navegação virtual, sob pena de se infundir o caos no fluxo processual [...]" e, depois, reforça que " será a possibilidade de conexão por parte do juiz - conexão inquisitiva - o critério decisivo para a inserção da informação na esfera probatória do processo em rede. "65

4.2 Entendimento e posição de outros autores. Aplicações.

4.2.1 Henrique Gouveia da Cunha

Henrique Gouveia da Cunha66 ocupa-se dos princípios processuais no processo eletrônico e repercute o pensamento de Chaves Júnior atinente ao princípio da conexão. Identifica esse princípio com o da extraoperabilidade.

Resumindo o que entendeu dessa diretriz principiológica, realça o seguinte: o princípio preconiza que os SEPAJ devem estar conectados à rede mundial de computadores - a internet - para que " [...] a partir desse ambiente, possa ser realizada a colheita de todo e qualquer dado ou informação útil ao exercício da atividade judicante."67 Há uma contraposição do princípio à máxima o que não está nos autos não está no mundo porque tudo o que está disponível na vastidão do mundo virtual está disponível para o processo. Os autos do processo eletrônico estão conectados ao mundo e permitem ao juiz beneficiar-se da inteligência coletiva da rede.

Expondo visão crítica a respeito, Cunha68 entende que todo elemento de convicção deve ser submetido ao contraditório, mesmo aquilo que o magistrado busque pessoal e diretamente. A parte não pode " [...] ser surpreendida com a apresentação de fundamentos ou provas não submetidas ao debate dialético." Busca, em prol de sua posição e preocupado com o caráter inquisitivo sugerido para o processo, as lições de José Carlos de Araújo Almeida Filho e Francis Noblat, para os quais a " [...] idéia de um processo inquisitivo, que vem ganhando força [...] viola o contraditório a partir do momento em que o juiz passa a ser produtor da prova."

4.2.2 Kleber Waki

Kleber Waki69 também faz um esforço de captação do sentido do princípio da conexão e, a partir do conceito formado, tece reflexões interessantes a respeito, resumidas abaixo.

Após ter ouvido exposição de Chaves Júnior, diz ter entendido que o princípio envolve “[...] a) o fortalecimento da oralidade no processo; b) a introdução do link como escritura e do hipertexto como exercício de linguagem processual; c) a ampliação do diálogo processual para além da escrita [...] e d) a prática de uma nova hermenêutica, mais indutiva [...] . ".

Em busca da fixação de um conceito, dispõe-se a "[...] averiguar se o acesso a informações alheias aos autos examinados consiste em inovação introduzida pelo (por causa do) processo eletrônico".

A procura da resposta o leva a acórdão70 em que, no item 5, a relatora informa ter consultado o site do TSE para obter informação sobre ter ou não, certo candidato, sido eleito no ano de 2004, informação esta que lastreou a decisão. Aliás, segundo o articulista, "há vários e vários exemplos assim, extraídos naquela Corte Superior” e, então, se pergunta: “Seria isto o chamado Princípio da Conexão?”. Se tal princípio se aplica exclusivamente ao processo eletrônico, então o exemplo não ilustra o princípio, segundo o autor. E se há conexão, então ela existe também no processo em papel, conclui. E explica:

[...] se é possível recorrer a publicações fora dos autos, mas encartadas em Diários da Justiça encontrados na rede mundial de computadores, por exemplo, então não haveria nada de diferente se utilizássemos este mesmo recurso para buscar idêntica informação em publicações digitais, digitalizadas ou mesmo nos antigos diários impressos.

Segundo entende, "o Princípio da Conexão tem que ir além disso. Ele precisa se basear não só em informações oficiais [...] mas admitir a possibilidade de que as provas integrem o corpo probatório do caderno processual, ainda que, efetivamente, não integrem este caderno processual [...] “. A alternativa seria “ [...] modificar o conceito do que sejam os autos processuais [...] sem que isso prejudique [...] o debate processual [...] “.

Com mais alguns exemplos, o juiz articulista suscita outras questões, atinentes à internalização de informações e à idéia de caderno processual, utilizando como base metódica a presença ou não da característica exclusivamente no processo eletrônico.


5. Princípio da extraoperabilidade

5.1 O princípio: uma diretriz estratégica para os tecnólogos

Um SEPAJ deve ser concebido como um subsistema autônomoe estruturalmente acoplado

O princípio71 da extraoperabilidade, lançado em 200972, é uma diretriz estratégica, no sentido das ciências administrativas e organizacionais, para o desenvolvimento do SEPAJ, passada pelos juristas aos tecnólogos. Sua enunciação funda-se no surgimento das eConexões. O comando, advindo do jurídico e direcionado aos técnicos, cumpre também o papel que Luhmann refere ao dizer que "el sistema jurídico se convierte a si mismo em ley"73, ou seja, os juristas autorizam características tecnológicas do sistema de informação SEPAJ e legitimam os sistemas que as incorporam conforme recomendado. As preocupações do princípio são a segurança74 e a aderência jurídica do SEPAJ: processo na internet, conectado, com segurança e sem ofensa ao Direito. O direito fundamental do devido processo legal é o limite75.

A ferramenta tecnológica (SEPAJ) de produção do processo eletrônico implica, como se viu, uma transformação de natureza do próprio processo, que se tornou híbrido: sistema sócio-técnico. A diretriz dirige-se aos desenvolvedores da ferramenta porque o ganho decorrente da amplificação das possibilidades de conexão (eConexões) se faz exatamente pela ferramenta (o sistema de informação SEPAJ) e não pelas conexões típicas que sempre caracterizaram o sistema processual, proporcionadas pelos agentes processuais humanos (sistemas de consciência).

Na época, para a formulação textual da diretriz, utilizou-se o enfoque sistêmico luhmanniano do processo e do procedimento judicial expostos em legitimação pelo procedimento76, mais tarde ampliados em sistemi sociali. Apenas o SEPAJ é capaz de plugar o processo na internet e deve-se balizar essa conexão.

Ao teorizar a sociedade sob as luzes da teoria dos sistemas, Niklas Luhmann introduziu conceitos que são fundamentais, também, quando se pensa nos sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais (SEPAJ).

À luz do pensamento sistêmico das décadas de 50 e 6077, Luhmann afirmava que os subsistemas sociais, aos quais equipara expressamente o procedimento judicial, se formam por diferenciação funcional e são autônomos78. A ferramenta SEPAJ não existia, na época. Os sistemas sociais – que são sistemas de comunicação - dependiam exclusivamente de sistemas psíquicos, também ditos de consciência.

O Niklas Luhmann que Alberto Febbrajo chama de segundo Luhmann absorveu, na década de 70, as novas idéias sobre sistemas autopoiéticos e passou a referir-se a sistemas autoreferenciais, que têm sua sobrevivência condicionada pela heteroreferenciabilidade, ou seja, devem estar estruturalmente acoplados ao sistema total, ao ambiente79. "O sistema e o ambiente concorrem sempre para a realização de todos os efeitos [...] Não existem sistemas sem ambientes ou ambientes sem sistemas [...] "80 [tradução livre].

Na introdução à edição italiana de sistemas sociais, Alberto Febbrajo afirma que Luhmann realça, desse modo, o problema da conexão entre os subsistemas, conforme a recomendação caracterizadora do pensamento sistêmico (sistemas são redes, teias) e fixa a comunicação como operação básica dos sistemas sociais: "se pode assim dizer que o conceito de comunicação tende não mais a se apoiar no conceito de função, mas a substituí-lo como conceito-guia [...]"81 [tradução livre]. Duas outras categorias são, ainda, teorizadas por Luhmann, exaustivamente: interpenetração e acoplamento estrutural. Elas são correlatas das idéias de clausura operacional e abertura causal.

O princípio da extraoperabilidade destaca autonomia e acoplamento estrutural como características que o sistema técnico do processo deve ter.

5.2 Até onde, como e quanto usar da capacidade de conexão?

O princípio da extraoperabilidade, em primeiro lugar, obriga a área tecnológica a cobrar dos juristas a definição dos níveis em que um SEPAJ pode valer-se das novas possibilidades de conexão: só no informacional (abrir-se apenas cognitivamente), só no estrutural (permissão de penetração estrutural/acoplamento) ou em ambos? Em segundo lugar, os tecnólogos deverão maximizar o uso da conexão nos limites das permissões postas.

A capacidade conetiva pode ser o limite? Parece que não. Na busca dessa resposta, os juristas se questionarão, por exemplo, sobre os riscos que existem, para a autonomia sistêmica processual, com as quebras do regramento milenar do processo que podem decorrer das inovações tecnológicas atinentes à amplificação quantitativa e qualitativa das conexões. Terão de atentar para o princípio da dupla instrumentalidade – ou da subinstrumentalidade – da tecnologia.82 Perceberão que as eConexões são de natureza diversa daquelas que sempre estiveram presentes no processo e que a mutação de natureza das conexões evidencia uma propriedade do processo eletrônico, introduzida pelo eSujeito, o SEPAJ. Os riscos do descontrole do fluxo informacional ou da composição estrutural desse sistema técnico, pela via das conexões tecnológicas, certamente serão objeto da consideração ponderada dos juristas (ou deveriam ser). Estar na internet é um risco83. Afinal, quem controla ou deve controlar os fluxos e os contatos do sistema processual com o entorno? Esses fluxos são naturalmente exacerbados pelas novas formas de conexão do processo com os demais sistemas do mundo virtual.

Atualmente, os SEPAJ, embora timidamente, já adotam, em diferentes níveis, mecanismos que incorporam utilizações das eConexões para alimentação informacional e para acoplamento estrutural virtual. É o caso do bacenjud, por exemplo. O princípio deve abrir o caminho para a expansão segura e legítima dessas interações/absorções.

Um erro comum nesse espaço de reflexão é pensar numa relação diretamente proporcional entre quantidade de conexão e qualidade do processo: quanto mais conexões, maior a qualidade do sistema processual. Estudos sociológico-sistêmicos e neurofisiológicos, no entanto, refutam essa expectativa84. Na verdade, empiricamente as ciências demonstram que essa relação tende a ser inversamente proporcional. O aumento de complexidade sistêmica só pode ser construído a partir de uma consistente redução seletiva das conexões.

5.3 Interoperabilidade e extraoperabilidade

Sob enfoque da tecnologia da informação, a interoperabilidade ganhou força a partir do surgimento da internet. No mundo virtual, todos os sistemas devem poder comunicar-se. A idéia de teia (web) não resiste a uma composição de mundo virtual a partir de sistemas incapazes de se comunicar. A comunicação entre os sistemas é condição da sobrevivência dos milhões de sistemas presentes na rede e da operacionalidade da própria rede, ela mesma um sistema imenso cuja função é prover vias de comunicação. Os sistemas da rede devem ser capazes, portanto, de comunicar-se entre si, segundo determinados padrões (protocolos), com fluxo de informação em geral bilateral85. Basta lembrar que a evolução para a web 2.0 trouxe a característica inovadora da bilateralidade do fluxo comunicacional (interação).

Ocorre que, entre os técnicos que trabalhavam em sistemas eletrônicos para o processo, reduziu-se o alcance do termo interoperabilidade para significar a possibilidade de contato apenas entre os sistemas processuais - dos diferentes tribunais, das diferentes instâncias etc. Ainda hoje se pode dizer que ela é mínima e continua sendo uma melhoria a ser perseguida.

Por isso, o termo extraoperabilidade foi interpretado por alguns, quando do anúncio do princípio, como tendo caráter apenas provocativo, para combater a redução conceitual de interoperabilidade no âmbito do judiciário.

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O neologismo extraoperabilidade, então proposto, de fato serviu também para quebrar o viés reducionista do conceito de interoperabilidade. Ele foi eficaz para aludir à necessária conexão dos sistemas processuais com o mundo, com os demais sistemas eletrônicos disponíveis na sociedade e nos quais se encontra a grande massa de informação necessária para as ações e decisões processuais. Mas o escopo real do princípio dizia respeito à própria concepção do SEPAJ, à sua conformação estrutural e à sua imersão no mundo virtual de maneira a aproveitar ao máximo as eConexões por ele introduzidas no processo, com segurança.

5.4 Destinatários do princípio da extraoperabilidade

Para aproveitar o alargamento das conexões sistêmico-tecnológicas que a nova ferramenta processual propicia (eConexões), propôs-se que os técnicos se desvinculassem da visão secular cultuada pelos operadores do processo (o que não está nos autos não está no mundo, a qual, frise-se, continua fundamental na fase operativa do processo!), substituindo-a por outra: "o que não está nos autos, está no mundo ou num outro sistema".

Alguns entenderam, então, que a diretriz se dirigia à fase operativa do sistema e aos agentes processuais humanos. Um erro. Ela, enquanto diretriz para o desenvolvimento da ferramenta, estava vocacionada a regular a atuação dos técnicos desenvolvedores do SEPAJ.

As duas idéias fundamentais, presentes na diretriz, são autonomia do sistema processual e acoplamento estrutural. A primeira, autonomia, envolve a questão do fluxo informacional (abertura cognitiva) mas sob estrito controle do SEPAJ. A segunda toca na questão da estrutura e estabelece, talvez, o ângulo mais profundo da diretriz: sistemas compartilhando/somando estruturas (algoritmos).

Um sepaj, concebido e desenvolvido com observância das duas idéias chaves, habilitar-se-ia a ser um agente automatizado (eSujeito) acelerador do sistema processual, seja controlando o fluxo virtual das informações para os autos processuais, na forma adequada para o processamento e para o alcance da máxima automação, seja incorporando virtualmente segmentos estruturais de outros sistemas do entorno, fazendo-os colocar suas próprias capacidades de trato do contingente (o entorno) a serviço do processo.

Tudo isso está ao alcance da tecnologia e é amplamente utilizado, na atualidade, em diferentes ramos de atividade, inclusive por alguns SEPAJ, embora minimamente. A conexão, como se vê, é a característica sistêmica que permite se avance nessa direção. Links, webservices, contracts e serialização são alguns dos ferramentais tecnológicos que podem ser acionados pelas eConexões.

O princípio da extraoperabilidade, portanto, estabelece o que se deve fazer com esse elemento constitutivo de todo e qualquer sistema, a conexão, mas focando especificamente a conexão tecnológica (eConexão), feita pela via do eSujeito, do sujeito tecnológico que a resolução CSJT 136 chama de sistema ou de Pje-JT.

5.5 Composição mono e poliestrutural do sistema processual em papel. Imanência da extraoperação no processo.

Os sistemas sociais, como o processo, exprimem-se mediante acoplamentos estruturais com sistemas de consciência, os operadores da estrutura legal fixada nas diferentes fontes do Direito (códigos, costumes, jurisprudência)86. Essa dependência é empiricamente verificável. Evidenciam-na os diferentes resultados alcançados durante a operação de um mesmo código legal, quando se troca o juiz, por exemplo, ou o advogado, num processo.

Um sistema de consciência não é um processador neutro como um computador. Ele interpreta e conjuga o programa legal ao seu próprio programa particular – resultado de aprendizagem, convicções, formação87 -, gerando um programa final (estrutura) único e diferenciado, só em parte condicionado causalmente pelo programa legal (estrutura legal fixada nos códigos)88.

Por isso, a extraoperação é imanente no sistema processual (o processo em si). Toda operação ocorre externamente em sistemas de consciência (juiz, advogados, servidores). O sistema legal – cuja estrutura está fixada nos códigos legais – se manifesta operativamente pelos processadores psíquicos dos diferentes agentes processuais humanos. Lembre-se que Luhmann, num dos traços polêmicos de sua teoria, põe o homem no entorno dos sistemas sociais.

O programa processual, no processo físico, sempre dependeu de extraoperação e, considerando-se os diferentes sistemas de consciência que atuam, ele pode ser dito poliestrutural, em dois sentidos: (a) são múltiplas e distintas as estruturas psíquicas que se conjugam com a estrutura legal dos códigos para gerar a estrutura do programa do caso específico e (b) portanto, são diferentes as estruturas operativas finais em cada caso (acoplamento operativo89).

Atentando-se, entretanto, para a natureza dos sistemas envolvidos, ou seja, para o tipo dos sistemas que se acoplam no processo em papel, tem-se o sistema legal extraoperado exclusivamente por sistemas de consciência (psíquicos). Pode-se dizer, então, que o processo físico é monoestrutural quanto à sua natureza.

5.6 Natureza biestrutural do processo eletrônico: sistemas técnicos e de consciência. Hibridização e efeitos.

No presente momento, está-se associando ao processo um novo tipo de sistema (sistema técnico, software, agente automatizado) e o processo, então, passa a ser um sistema híbrido, composto de sistemas de consciência e sistemas técnicos. O sistema processual não é mais monoestrutural, portanto (somente sistemas de consciência se acoplando), mas biestrutural.

Exemplo simples: na autuação, sistemas de consciência estão sendo substituídos por sistemas técnicos.

Tais substituições crescerão muito, com o tempo, e não são triviais, como alguns pensam. Sistemas técnicos são, em si, neutros (causalmente fechados). Sistemas de consciência, ao contrário, são causalmente abertos. Operativamente os dois tipos de sistema são fechados (clausura operacional). As consciências mesclam o sistema legal com seus próprios programas operativos para gerar o programa (estrutura) do caso particular. Mas como são operativamente fechadas e as alterações da estrutura própria são difíceis, elas não têm a maleabilidade dos sistemas técnicos para abrir-se estruturalmente e enriquecer a mescla estrutural que promovem ao operar o sistema processual em cada caso. Isso acontece, é verdade, mas numa perspectiva evolutiva, não operacional. Uma mudança de entendimento do julgador, por exemplo, significa que, dali em diante, passará a operar sob novas condições (novo programa). Outro exemplo é um curso que, pela via da aprendizagem, reestrutura o sistema de consciência do julgador. Nos dois casos, o trecho sistêmico operado pela consciência se transforma e passa a produzir resultados diferentes. As entradas que, no passado, geravam o resultado A, passam a gerar, em operações futuras, o resultado B.

Por outro lado, como a operação básica dos sistemas de consciência é a percepção, o sistema processual absorve essa característica e os quadros fáticos considerados na aplicação do esquema de causalidade ganham maleabilidade. Günther fala em perístases ou em características relevantes da situação, um cenário de abertura peculiar do discurso de aplicação, considerado condição de imparcialidade e justiça90. Essa é uma característica relevante que se perde ao substituir sistemas de consciência por sistemas técnicos no processo91.

Apesar dessa perda, os sistemas técnicos trazem a possibilidade de se pensar/conceber o processo com uma característica inovadora, típica da natureza de formação dos sistemas tecnológicos. Sistemas de consciência são estruturalmente fechados. Suas malhas estruturais são monolíticas e cerradas. Sistemas técnicos, ao contrário, são entes construídos e suas malhas estruturais são virtualmente abertas. Operacionalmente fechados mas estruturalmente abertos.

As consciências, quando operam, são causalmente abertas (probabilísticos). Os sistemas técnicos são causalmente fechados (determinísticos).

Sistemas técnicos se compõem aditivamente de estruturas menores. Sua evolução não necessita de um mecanismo de diferenciação, como ocorre com os sistemas naturais. Novas funcionalidades ou alterações funcionais podem ser intencionalmente desenvolvidas. Em sistemas técnicos como o SEPAJ, que são sistemas virtuais (softwares), funcionalidades inteiras e inovadoras podem ser, inclusive, o resultado de acoplamentos virtuais de estruturas de sistemas exógenos. Em tempo de operação, o sistema pode atuar sob determinação de uma estrutura algorítmica mista, própria e de terceiros sistemas, as quais virtualmente são integradas/incorporadas à malha estrutural do sistema processual:

Sistemas de consciência

Estruturalmente fechados

Causalmente abertos

Evolução/diferenciação: difícil – aprendizagem etc

Sistemas técnicos

Estruturalmente abertos (poliestruturalidade)

Causalmente fechados

Evolução intencional: fácil - ficta, somativa ou subotimizadora92.

A diretriz da extraoperabilidade propõe que, graças às possibilidades abertas pelos sistemas técnicos (eConexões), trabalhe-se com uma perspectiva de permissão de poliestruturalidade do componente tecnológico do processo. Quer-se que muitos sistemas técnicos atuem, ao lado do sistema legal e dos sistemas de consciência, acopladamente, na constituição do sistema processual.

5.7 Autonomia

A primeira prescrição do princípio da extraoperabilidade atine à autonomia do SEPAJ: ele deve ser concebido como um subsistema autônomo. O que isso quer dizer?

No artigo de 2009, afirma-se que, para o sistema processual judicial produzir seus resultados com independência e imparcialidade, é indispensável que o sistema seja autônomo, uma característica dos sistemas dependentes de um intercâmbio ativo com o meio-ambiente, mas com controle absoluto da regência do processo de permuta. O sistema se diz autônomo se estruturas e métodos próprios, internos, controlam o processo de troca. Em vez de independentes, sistemas autônomos costumam ser muito dependentes do meio-ambiente, em vários sentidos. Mesmo assim, a aplicação do Direito deve fazer-se segundo as regras internas do procedimento. O cumprimento da função deve ser autônomo.93

Como se alcança um procedimento com tais propriedades?

5.7.1 Visão luhmanniana de autonomia e o SEPAJ

Para Luhmann, " [...] ni el hecho de consultar reglas externas, ni el acceder a motivos de la legislación que se pudieran determinar fácticamente, pueden valer como objeción contra la tesis de la unidad operativa y la autonomía del sistema jurídico.” 94 Para o jussociólogo, o Direito pressupõe que o entorno (outros sistemas) estruturam e reduzem complexidade e se aproveita, então, desses resultados, verificando-os, quando necessário, por critérios meramente jurídicos. Isso, diz Luhmann, “ [...] no conduce a que los límites del sistema se hagan borrosos, ni tampoco a un traslape de los sistemas, ni necesariamente a que el peso social del derecho se traslade a otro sistema”, pois se trata de um “ [...] comercio entre sistemas”.95

La autonomía (que permanece incólume) se reconoce por el hecho de que las decisiones específicamente jurídicas son normalmente aquellas que logran un enlace estrecho con el derecho y que, en él, encuentran su responsabilidad. La autonomía se reconoce también por la circunstancia de que la autorización del derecho cubre lo que no puede cubrir la técnica [...] En todas las operaciones cognitivas el derecho reconoce que puede equivocarse, y se reserva la decisión de lo que ha de decidir cuando el error se hace evidente. El que el derecho tenga que legitimar dentro del derecho lo que consulta fuera del derecho, es una muestra más de que las referencias a cogniciones externas, son aspectos de las operaciones internas del sistema jurídico.96 [sem grifo no original]

A prevalência do jurídico, sempre e inescapavelmente, é bem estabelecida por Luhmann, como expressão da autonomia. Pensando nos SEPAJ e nas possibilidades inovadoras de conexão, o que se consultar fora, ou se absorver estruturalmente, deverá passar pelos filtros jurídicos para ser legitimado. O acionamento das eConexões não afronta ou nulifica, só por si, o caráter autônomo necessário do processo. A idéia luhmanniana de autonomia alberga um rigoroso controle do que é tomado em consideração pelo sistema jurídico, como informação e como estrutura. Code is not law, salvo se o Direito o reconhecer como tal97.

5.7.2 Autonomia, autarquia, abertura cognitiva e fechamento normativo. Verdade processual e verdade da rede.

As idéias luhmannianas concernentes à autonomia estão expostas no Capítulo II, Parte I - Processos Judiciais, da obra Legitimação pelo procedimento98. Para o autor, o conceito de autonomia, amplamente utilizado em várias áreas, inclusive do Direito, pode ser estabelecido a partir de uma distinção entre autonomia e autarquia.

Fala-se em autarquia, diz Luhmann99, para aludir a processos de permuta (intercâmbio) entre sistema e meio-ambiente: "um sistema é autárquico (ou independente) na medida em que pode reduzir essas relações de intercâmbio, na medida em que pode se tornar independente do meio ambiente e existir por conta própria". A possibilidade de vida isolada do mundo circundante caracteriza o sistema autárquico. Por natureza, portanto, o processo não pode ser autárquico.

Autonomia, ao contrário, é característica de sistemas dependentes de um intercâmbio ativo com o meio-ambiente e diz respeito à regência desse processo de permuta. O sistema se diz autônomo se controla o inescapável processo de troca que deve manter com o entorno.

Pensando em procedimento judicial de aplicação do Direito, facilmente se visualiza uma imensa dependência de outros sistemas sociais. O procedimento não pode prescindir da contratação de juízes, da fixação de competências, da ratificação ou promulgação de leis e de que fatos sejam conhecidos e participados ao sistema. Mas "[...] tudo isso não exclui que a ação dentro do sistema seja, em parte, orientada segundo critérios próprios de seleção"100. O processo opera segundo regras internas, suas.

Isso pode ser observado no desenrolar do processo. Os vários pontos de vista vão se firmando, preclusivamente, e circunscrevendo o raio de ação das atuações subseqüentes, até o resultado. A autonomia manifesta-se desde a especificação das inferências permitidas, quanto às normas e fatos, até os comportamentos esperados do sistema, selecionados a partir das informações inferidas.

Cada seleção é um exercício de autonomia, como o é também a seleção da lei, que se pode utilizar numa conjuntura de fatos que adquiriram força no procedimento. E todos os participantes podem, de acordo com as possibilidades que o seu papel lhes dá, participar nesta autonomia - também, por exemplo, o réu que resolve não indicar determinadas testemunhas, ou o acusador que decide fazer uma demanda de preferência sobre uma relação de dívida basicamente existente, do que sobre uma troca.101

Uma coisa é a autonomia do procedimento, tomado como sistema social e outra, muito mais limitada, é a do juiz no papel que lhe é destinado no procedimento.

O SEPAJ deve ser concebido de forma a otimizar os contatos com o meio ambiente (permite ampliar significativamente a abertura cognitiva do sistema), mas sem deixar de exercer um profundo papel seletivo-valorador do conhecimento buscado no ambiente:

Según esto, el sistema jurídico puede tomar en consideración hechos externos, pero sólo como información que há sido generada internamente: sólo como "difference that makes a difference" (Bateson).102

Embora se vasculhe com maior amplidão o entorno, em busca de fatos externos ao procedimento, tais fatos só podem ser levados em consideração sob estrita observância do regramento normativo do processo (fechamento normativo). A verdade é processual, jurídica. Não há verdade na rede103. Além disso, somente os fatos que ultrapassarem os filtros de forma e esquema de causalidade postos na lei processual podem ganhar o status de informação, quer dizer, podem ser erigidos à condição de "diferenças que fazem a diferença" internamente. Essa condição de informação, ou seja, de capacidade para influir na operação sistêmica e orientar os ciclos operativos, deve ser dada internamente pelo sistema processual. O SEPAJ deve ser desenvolvido com observância estrita desse requisito sistêmico, não podendo funcionar como veículo de quebras à autonomia. Interpretações dos códigos, pela via das regras de negócio – um conceito bom para os técnicos mas perigoso para o jurídico - podem ser vias abertas para a quebra da autonomia do sistema processual.

Portanto, o SEPAJ deve ser um subsistema autônomo: aberto aos contatos ambientais (cognitivamente aberto) e estritamente vinculado às regras de cognição jurídicas postas nos códigos normativos ( normativamente fechado).

5.7.3 Outros fatores da autonomia: diferenciação funcional e outros.

Com uma efetiva diferenciação, busca-se a especificação de um sistema de ação procedimental capaz de tratar, com autonomia, os dados seletivamente admitidos no âmbito restrito e diferenciado dele. Os mecanismos de diferenciação foram pensados para os sistemas de consciência (agentes processuais, homens). O SEPAJ é um sistema de outra natureza e exige meios inovadores de garantia da diferenciação, sob pena de haver interferências espúrias, não legítimas, no processo.

Além da diferenciação, outros fatores contribuem para a autonomia. Para Luhmann, diversas circunstâncias precisam harmonizar-se "[...] para os sistemas em geral e para os processos jurídicos em particular, numa perspectiva temporal, objetiva e social [...] ”104. O SEPAJ introduz desafios especiais nessa conjuntura.

a) Dimensão temporal: metas, produtividade e efetividade do Direito.

Os procedimentos devem estar organizados de modo a poder controlar, no tempo, a interação com o seu meio-ambiente105. Autonomia supõe obrigatoriamente esse controle e elaboração interna das informações. Tem-se de "[...] dar tempo ao procedimento para poder pôr em funcionamento os seus próprios métodos de elaboração de informações", sob pena de tirar-lhe a autonomia.

Ora, no mundo virtual e principalmente nos novos espaços determinísticos do processo, a instantaneidade e o desmonte do tempo são muito presentes. Nos espaços probabilísticos, entregues aos sistemas psíquicos, os prazos devem ser compatibilizados. Juízes devem ter prazos, mais ou menos elásticos, para elaborar e expedir a decisão.

As novas tecnologias podem ser usadas para acelerar o processo, mas precisarão abster-se de violar os tempos necessários aos operadores incumbidos do processamento das informações quando isso lhes incumbe. Pense-se nas metas. As instâncias gerenciais do processo têm ameaçado, para não dizer, comprometido, a qualidade da prestação jurisdicional. A celeridade tem focado a produtividade e atropelado a efetividade. Violações à autonomia sistêmica do processo são evidentes.

Independentemente das circunstâncias, os procedimentos judiciais só se estabelecem autonomamente se tiverem um relativo controle do processo em termos temporais. O processo eletrônico é híbrido, meio técnico (SEPAJ), meio social (agentes humanos). O SEPAJ deve respeitar o tempo humano necessário à preservação da autonomia. Sem esse balanceamento, não se pode falar em autonomia.

A aceleração desbalanceada do procedimento, facilitado em certa fase, pressiona os elos operativos da fase decisória, principalmente pelo vazio de ferramentais de suporte aos julgadores. Esse apressamento provocado pela tecnologia milita em desfavor da autonomia e, em conseqüência, da segurança jurídica.

b) Dimensão das diferenças objetivas de sentido: regras de negócio e automação.

A autonomia do processo depende da estabilização objetiva e segura das diferenças de significado entre meio e sistema. Isso não significa determinar o procedimento concreto. A aceitação do procedimento deve dar-se sem intervenção atentatória à sua autonomia, deixando-se "[...] em aberto um espaço de manobra para a decisão. Nesse espaço de manobra pode desenrolar-se uma elaboração de informações relativamente autônoma." Portanto, no plano do "processo concreto de interações entre sistema e meio", prevalece a ductilidade como elemento significativo generalizado. Assim, a imposição de uma organização jurídica de caráter apenas geral faz parte das condições essenciais para assegurar a autonomia procedimental.

O SEPAJ, com suas definições prévias de regras de negócio e pela automação (agentes automatizados, normas tecnológicas), leva trechos operativos do procedimento, do espaço deôntico, em que sempre ocorreram, para espaços lógico-formais e rígidos, muitas vezes estruturados fora do âmbito do procedimento, o que viola claramente a idéia de autonomia. A preponderância do tecnológico sobre o jurídico é uma ameaça constante. O processo concreto de interação entre sistema e meio despe-se da ductibilidade garantida por um agente humano e afasta do processo, para os momentos de definição das regras de negócio, a especificação dos significantes e das condições sob as quais ganharão ingresso nos autos eletrônicos. Sem falar na pré-especificação dos significados internos de cada significante, muitas vezes feitas em instâncias cuja legitimidade é questionável.

c) Dimensão social: processo não pode ser braço de um setor do meio ambiente.

Resta examinar, ainda, a autonomia numa dimensão social.

Afirma Luhmann que o procedimento poderia apenas constituir-se de um "[...] meio que lhe apresentasse, em primeiro lugar, as informações gerais, depois as especiais e, no fim, lhe diminuísse a capacidade". Não haveria, então, autonomia. E continua: "para os procedimentos judiciais das sociedades civilizadas (contrariamente aos das arcaicas) é característico que os âmbitos de introdução para premissas jurídicas ou efetivas de decisão, sejam socialmente distendidos"106. Há, portanto, uma separação das fontes das premissas em duas instâncias apartadas.

Uma instância incumbe-se de estabelecer o Direito (processo legislativo). Outra enuncia os fatos verdadeiros e não verdadeiros. Atuam em planos distintos e devem estar separadas, sem possibilidade de se dominarem reciprocamente. O embate entre ambas só pode realizar-se dentro e através do processo jurídico.

Essa dicotomia de fontes de premissas decisórias livra o processo da pressão social. As premissas aptas para uma decisão não estão ao alcance monopolístico de um único ambiente.

Assim se evita o perigo de que o processo se possa tornar um braço prolongado dum determinado setor do meio ambiente. Na linguagem de decisão dos próprios processos jurídicos, esta condição de autonomia exprime-se manifestamente sob a forma duma separação rígida entre problemas de direito e problemas de fato, cuja correlação fica a cargo de cada caso particular.107 [sem grifo no original]

A referência a “braço prolongado dum determinado setor”, diante da disposição de unificação do SEPAJ, suscita imensas preocupações que fogem ao referente do presente trabalho. Mas, mesmo sob o enfoque deste estudo, a afirmação faz sentido.

A separação entre questões fáticas e jurídicas é questão relevante de que se ocupa a teoria do Direito, onde a diferença se radicaliza sob a forma de dicotomias bem conhecidas: norma e realidade, ser e dever ser108, faticidade e validade.

Aqui, importa a diferenciação entre os processos de definição do direito e de apuração dos fatos, como condição de autonomia do procedimento judicial de aplicação do direito. Num ambiente de processo eletrônico, o SEPAJ pode tornar-se a trilha de controle do procedimento, por exemplo, pela imposição de uma visão específica da fonte jurídica. Um atentado à autonomia, sem dúvida.

5.7.4 Procedimento, complexidade e ameaças à autonomia

Pelas condições que devem ser articuladas para se obter a autonomia dos procedimentos de aplicação judicial, vê-se a complexidade inerente ao processo de sua montagem. E também se expõem os meios de perturbá-los.

Os procedimentos, nas sociedades primitivas, não conseguiam se estabelecer autonomamente, porque tais sociedades eram incapazes de promover a diferenciação. As sociedades atuais, altamente complexas, embora possam prover as condições de autonomia, estão sujeitas a, voluntária ou involuntariamente, destruí-la ou perturbá-la109.

O procedimento constitui um sistema programado de decisão110. Se era assim no processo em papel, no processo eletrônico essa afirmação ganha significação ampliada. "A programação objetiva e detalhada da decisão, podendo chegar até à automação, constitui uma dessas possibilidades[...]"111, advertia o autor no final dos anos 60.

A programação do processo, a partir das Constituições, aliviou as preocupações a respeito. A dogmatização dos ditames constitucionais leva a isso. Ocorre que "as regras mais minuciosas do direito processual, com todas as garantias dum estudo constitucional, não levam à autonomia, se não forem secundadas pela diferenciação social do meio[...]"112. Sem essa condição prévia estabelecida, a especificação minuciosa do direito processual destrói a autonomia e põe o procedimento de aplicação nas mãos do que poderia ser chamado de uma "central política, controlando tanto as informações jurídicas, quanto as efetivas que são apresentadas ao tribunal".113 Portanto, “ [...] a seletividade, e com ela a autonomia do processo jurídico, têm de ser maiores perante um meio encarado duma forma mais complexa.”114

Os riscos à diferenciação e à autonomia, com a introdução do SEPAJ no processo, só se amplificaram. As preocupações jurídicas a respeito precisam tornar-se balizas efetivas de controle da tecnologia. O princípio da extraoperabilidade é uma delas.

5.8 Acoplamento estrutural

Neste item, toma-se da computação a noção de que estrutura115 é programa, algoritmo, malha de instruções que o computador segue quando opera.116.

O acoplamento estrutural, previsto no princípio da extraoperabilidade, é uma via aberta para o uso efetivo da inteligência coletiva no desenvolvimento do SEPAJ. A coletividade tecnológica pode ajudar, com aportes estruturais, a construção/complementação do SEPAJ. A inteligência não está nos fatos (que importam no aspecto informacional cognitivo) mas principalmente na criação das estruturas dos softwares do entorno, especializados no trato da contingência e da complexidade que estão além do limite auto-referencial do SEPAJ.

5.8.1 Evolução do pensamento luhmanniano a respeito do acoplamento estrutural

O problema da composição das estruturas dos sistemas ocupou imenso espaço no pensamento luhmanniano117 e oscilou realçando, ora a idéia de penetração (ou interpenetração quando bidirecional), ora a de acoplamento estrutural.

Na obra sistemas sociais, um extenso capítulo 6118 tem o título de interpenetração e inicia informando que "el presente capítulo trata de um entorno especial de los sistemas sociales: El de los seres humanos y sus relaciones con los sistemas sociales."119 Marcado muito profundamente pelo estruturalismo funcional de Talcott Parsons, Luhmann utilizou o conceito estabelecido pelo mestre. "Utilizamos El concepto ‘interpenetración' para indicar uma manera particular de contribución a la construcción de sistemas que es aportada por los sistemas en el entorno."120

Humberto Maturana e Francisco Varela, com a idéia de autopoiese, introduziram também o conceito de acoplamento estrutural 121 para o âmbito biológico. Desde então, Luhmann concentrou-se em absorver, no seu arcabouço teórico, a abordagem dos chilenos122. Na aula X de sua introdução à teoria dos sistemas, ao final, o sociólogo alemão demonstra desesperança em relação às possibilidades de uso da idéia parsoniana de interpenetração e, na sequência, dedica uma aula inteira, a aula de nro. XI, à idéia de acoplamento estrutural: "Antes, portanto, de tomar uma decisão pela continuidade ou descontinuidade em relação ao termo interpenetração, o importante é enfrentar o problema ao qual ela se refere, sendo, talvez, necessário lançar mão de outro conceito."123 Günther Teubner, sob a mesma dificuldade, introduz o conceito de interferência: “ [...] sistemas interferentes apresentam-se mutuamente complexidade já ordenada”124, uma noção importante para este trabalho.

Em obras posteriores, embora sem a forma assertiva de sistemas sociais, Luhmann recorre, volta e meia, à idéia de penetração:

Se trata más bien de un caso de interpenetración. Esto quiere decir: el derecho presupone que el entorno estructura y reduce complejidad, de esta manera se aprovecha de esos resultados sin necesidad de analizar su génesis - cuando lo amerite, lo hará bajo aspectos meramente jurídicos.125

O texto deixa claro que há a externalização de uma função, entregue a sistema do entorno. Isso significa duas coisas: (a) abertura cognitiva do sistema chamador ao resultado do sistema chamado/acionado: “[...] se aprovecha de esos resultados [...]” e (b) abertura estrutural, porque o algoritmo da função que serve ao sistema chamador se encontra num outro sistema e, portanto, esse trecho do programa é só virtualmente incorporado (daí Luhmann falar em penetração) e não precisa situar-se fisicamente na malha estrutural do sistema chamador.126

Essas idéias são melhor formuladas nas obras tardias de Luhmann, mediante a distinção de acoplamento operativo e acoplamento estrutural. Mas o fantasma da separação do sistema enquanto é concebido do sistema em operação permeia todo o pensamento luhmanniano, reprisando a antiga discussão filosófica da distinção entre o universal e o particular. Pode-se dizer que a estrutura do universal (abstração do que está em todos os particulares) contém a miríade de estruturas particulares que se manifestam em tempo de operação. Os técnicos distinguem isso chamando de classes e objetos127.

5.8.2 Acoplamento operativo

O SEPAJ é um sistema técnico (software), instalado sobre uma rede virtual, e os rendimentos da idéia de conexão podem ser maximizados por intermédio desse sistema.

No acoplamento estrutural, o sistema supõe determinadas características do entorno – há, portanto, uma restrição, os limites supostos do universo - e facilita a influência do entorno sobre ele. A estrutura do sistema está preparada para aceitar/rechaçar, nas relações com o entorno, o que se ajusta ou não ao suposto:

Los cerebros, con sus ojos y oídos, se acoplan únicamente en un rango físico muy estrecho con su entorno -y, en todo caso, no lo hacen por medio de sus propias operaciones neurofisiológicas. Pero, precisamente por ello, hacen al organismo increíblemente sensible desde el punto de vista del entorno. La restricción es condición necesaria de la capacidad de resonancia, y la reducción de la complejidad es condición necesaria de la construcción de complejidad.128

Luhmann aponta como vantagem teórica da idéia de acoplamento estrutural o fato de que responde com precisão pouco comum “ [...] a las relaciones entre sistema y entorno”.129 E diz que a designação se deve à oposição “ [...] entre este concepto y los acoplamientos operativos [...] “ que, entre outras coisas, apóiam-se “ [...] en la simultaneidad que debe suponerse siempre entre el sistema y el entorno. Esta simultaneidad permite un acoplamiento momentáneo de las operaciones del sistema con aquellas que el sistema atribuye al entorno.”130 Esta simultaneidade operativa permite que cada sistema execute uma malha algorítmica estrutural composta pela malha própria e por trechos estruturais que só virtualmente se integram para servir ao sistema. Por isso, “ [...] los acoplamientos operativos entre sistema y entorno son posibles [...] exclusivamente en intervalos de eventos [...] ”131.

5.8.3 SEPAJ e acoplamentos: add-ons, plugins, APIs

A idéia de acoplamento operativo é real no mundo dos programas de computador: sistemas técnicos virtuais (softwares) compartilham facilmente suas habilidades funcionais (externalizam o cumprimento de certas funções) e compõem-se, desde a base, a partir dessa idéia. Analistas e programadores sabem disso muito bem. As eConexões permitem que dois sistemas, cada um no entorno do outro, em tempo de operação, se sirvam de estruturas situadas no espaço do outro.

A permissão de acoplamento estrutural, por seu turno, dá a possibilidade de definir os limites próprios, não virtuais, do sistema – núcleo duro sistêmico – supondo que certas características funcionais serão supridas pelo entorno, na forma de estruturas acopladas ao próprio sistema. Os tecnólogos falam de APIs132, add-ons, plugins, extensões etc. para exprimir essa idéia.

5.9 Função do princípio da extraoperabilidade.

Os juristas devem ficar atentos, pois

la ciencia evoluciona justamente porque en ella todo sirve para algo, pero nada sirve para todo. Para poder ver algo distinto es necesario “moverse” y eso en la ciencia quiere decir: disolver los elementos que constituyen una determinada teoría para recombinarlos con elementos venidos de otras perspectivas.133 [sem grifos no original]

A advertência de Monteagudo serve para os juristas em dois sentidos: para moverem-se a si mesmos e para porem em movimento os que estão incumbidos do desenvolvimento do SEPAJ.

O princípio da extraoperabilidade preconiza e autoriza a aplicação das possibilidades tecnológicas de (a) amplificação do intercâmbio ativo e controlado de informação com o ambiente (autonomia) e (b) de constituição multiestrutural/poliestrutural do sistema técnico que está posto a serviço do processo, o SEPAJ.

A inteligência coletiva pode chegar efetivamente ao processo pelo desenvolvimento, em sistemas do entorno, de habilidades de trato especializado da complexidade externa e que sejam postas a serviço do SEPAJ via eConexão, mediante acoplamento operativo ou estrutural. Segundo Monteagudo, a teoria sistêmica luhmanniana remete “[...] a la flexibilización del concepto de estructura. Por lo regular, las teorías de sistemas se asocian a conceptos duros de estructura.”134 Essa abordagem permissiva, no nível estrutural, é extremamente relevante para o desenvolvimento do SEPAJ. Como o sistema técnico está posto a serviço de um sistema social, deve carregar-se, até onde possível, da natureza deste, flexibilizando-se estruturalmente, mas preservando o guarda-chuva da autonomia para eliminar riscos à higidez processual.

Ora, os desenvolvedores têm formação técnico-sistêmica e têm trabalhado, até agora, com o que Monteagudo denomina “conceptos duros de estructura”. No caso do SEPAJ, o encastelamento/fechamento dos códigos e a resistência dos técnicos ao compartilhamento e ao aproveitamento das contribuições do entorno, no plano estrutural, são emblemáticos e um obstáculo efetivo à evolução e ao desenvolvimento do sistema. É preciso dividir o trabalho com os demais sistemas do mundo. Plugins, add-ons, APIs são caminhos para fazer estruturas externas operarem para o SEPAJ.

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Sobre o autor
S. Tavares-Pereira

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC e pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo. Autor de "Devido processo substantivo (2007)" e de <b>"Machine learning nas decisões. O uso jurídico dos algoritmos aprendizes (2021)"</b>. Esta obra foi publicada em inglês ("Machine learning and judicial decisions. Legal use of learning algorithms." Autor, também, de inúmeros artigos da área de direito eletrônico, filosofia do Direito, direito Constitucional e Direito material e processual do trabalho. Várias participações em obras coletivas. Teoriza o processo eletrônico a partir do marco teórico da Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Foi programador de computador, analista de sistemas, Juiz do Trabalho da 12ª região. e professor: em tecnologia lecionou lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados; na área jurídica, lecionou Direito Constitucional em nível de pós-graduação e Direito Constitucional e Direito Processual do Trabalho em nível de graduação. Foi juiz do trabalho titular de vara (atualmente aposentado).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, S. Tavares-. Processo eletrônico e o princípio da extraoperabilidade.: A conexão a serviço da causalidade (informação), da estrutura (operação) e da juridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4235, 4 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35718. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

O artigo dá sequência às elaborações teóricas do autor acerca do processo eletrônico. O marco teórico do autor é o jurista e sociológico alemão Niklas Luhmann. Os artigos anteriores também estão publicados no Jus Navigandi e demonstram que o autor é entusiasta da tecnologia mas preconiza sua absorção, no Direito, sem ofensa aos direitos fundamentais, notadamente ao devido processo legal, no caso do processo.

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