Comentário sobre a responsabilidade pré-negocial (culpa in contrahendo) no Direito Obrigacional: dever de observância ao princípio do Direito Privado, a boa-fé objetiva [1].
"A influência da boa-fé na formação dos institutos jurídicos é algo que não se pode desconhecer ou desprezar."
Clóvis do Couto e Silva in "A Obrigação como processo", p. 27.
A apelação cível que será oportunamente comentada é oriunda da 16ª Câmara Cível do TJRS, possui nº 598209179, figura como apelante Eunice Dias Casagrande e, como apelada, Acemil Empreendimentos Imobiliários Ltda. A decisão proferida pelo colegiado, unânime, no sentido de prover em parte o apelo, é de 19 de agosto de 1998; a ementa respectiva tem o seguinte teor:
"RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL OU CULPA IN CONTRAHENDO. Tendo havido tratativas sérias referentes à locação de imóvel, rompidas pela requerida sem justificativa e sem observância dos deveres anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, cabe indenização. Lições doutrinárias. Apelo provido em parte."
Cuida-se de ação visando à declaração de validade de contrato de locação, com conseqüente condenação da demandada ao pagamento de multa por inadimplemento integral de obrigação pactuada (art. 1.193, CC), ou em quantia arbitrada pelo juízo, cumulada com indenização por danos morais.
Em síntese, alegou a demandante que, no dia 13/11/95, candidatou-se à locação de um imóvel para fins residenciais, imóvel este administrado pela demandada, oportunidade em que recebera preferência na locação.
Assevera que recebera dois contratos de locação (um referente ao apartamento, outro referente ao "box" de estacionamento), respectivamente nos valores locativos mensais de R$ 700,00 e R$ 80,00.
Aduz que assinara os contratos de locação juntamente com seus fiadores, tendo os devolvido à demandada, objetivando, em conseqüência, que lhe fossem entregues as chaves, bem como fosse lhe dada a posse dos imóveis. Todavia, diz que a demandada negou-se a assinar os respectivos contratos, ao argumento de que o proprietário do imóvel teria desistido da locação, momento em que este revogou a procuração outorgada à demandada para administração dos imóveis.
Sustenta existir, entre as partes, contrato verbal em plena vigência. Pleiteia, pois, a declaração de validade do contrato, incluindo-se, aí, pagamento de multa por inadimplemento integral de obrigação, nos termos do disposto no art. 1193 do CC, ou valor arbitrado pelo juízo, cumulada com indenização por danos morais.
Citada, a demandada contestou a ação. Aduz, em síntese, que a demandante, efetivamente, teria se candidatado à locação do imóvel, todavia sem ter recebido qualquer preferência, isso em 13/11/95. Diz que em 22/11/95 o proprietário do apartamento revogou a procuração que autorizava à ré a administração do imóvel, o que ensejou a impossibilidade de celebrar o contrato de locação com a demandante. Defende, pois, que, como não houve celebração de nenhum contrato de locação, os respectivos efeitos não podem incidir, não sendo devido, pois, a indenização por cláusula penal. Refere inexistir, in casu, o alegado contrato verbal, bem como a ocorrência de dano moral à demandante em face do episódio.
A demandante replicou e, na instrução, colheu-se o depoimento pessoal das partes e o de uma testemunha; em seguida, as partes apresentaram memoriais. Incidentalmente, a parte autora ajuizou ação cautelar inominada, objetivando a busca e apreensão do contrato de locação nas dependências da ré. A liminar foi deferida pelo juízo, mas o documento não foi encontrado. Citada, a ré contestou o feito, alegando que o documento não existe.
Em seguida, o magistrado de 1º grau, ao fundamento de que não houve, entre as partes, efetivação de contrato locatício, sendo, em conseqüência indevida qualquer indenização por cláusula penal ou por danos morais, julgou improcedente ambas as ações; condenou a autora em honorários em face da sucumbência.
Inconformada, a demandante apelou. Defende a existência dos contratos relativos às locações do apartamento e do box e que a ré detinha poderes, à época do ajuste, para firmar o contrato em nome do locador-proprietário e a negociação já estava acabada e o contrato perfectibilizado; diz que a instrumentalização só viria a formalizar o pacto já existente. Cita ensinamento doutrinário no que se refere ao princípio da boa-fé objetiva, violado pela demandada-apelada. Caso mantida a sentença, pleiteia a modificação da verba honorária.
Recebido o recurso em ambos efeitos e contra-arrazoado o apelo, os autos subiram ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Julgando o recurso, entendeu o colegiado, ratificando os argumentos da sentença de 1º grau no tocante à contratação, no sentido de que, como o contrato de locação não chegou a ser firmado pelo locador [2] (não fora devidamente formalizado o negócio), descabia mesmo a incidência de cláusula penal.
O voto condutor do julgado, aplicou os fundamentos que orientam a responsabilidade pré-contratual [3]. Fundamentou a relatora que, na hipótese, incide o princípio da boa-fé objetiva, atuando como norma de conduta entre os contraentes. Referiu que, desse princípio, decorrem os chamados deveres anexos ou secundários ou acessórios, como são os de cuidado, de informação ou aviso, e de cooperação.
Concluindo o voto condutor que, efetivamente, ocorrera sérias tratativas relativamente ao contrato de locação [4] à época em que a apelada detinha poderes para administrar os imóveis e que o contrato chegou a ser elaborado [5], mas que não fora devidamente efetivado sem que ficasse evidenciada a razão da desistência da locação [6], não tendo a apelada se comportado com o respeito em relação à apelante, cuidado esse que deve pautar todas as relações negociais, entendeu o colegiado ser cabível a indenização por danos morais em face da frustração e incômodos causados [7].
O princípio da boa-fé objetiva, de relevante e importante aplicação no âmbito do Direito Privado, ganha espaço na oportunidade onde se averigúa o comportamento dos contraentes desde já o momento da negociação preliminar até o término do contrato, com efetivo adimplemento da obrigação, tendo-se em mente a visão da totalidade, da obrigação como um processo [8]; ambas as partes devem atuar com lealdade e cooperação, comprometendo-se, mutuamente, à garantia da palavra empenhada, respeitando as respectivas expectativas criadas de modo a preservar o comportamento ético que se pauta e se objetiva para o fim de preservar a segurança jurídica das relações negociais.
Não é de hoje que se fala sobre a boa-fé objetiva. Tal princípio, todavia, mostra-se hoje como sustentáculo significativo na defesa da teoria geral obrigacional, ainda que não haja expressa disposição no Código Civil Brasileiro [9], ao contrário de muitos países como a França, Itália e Alemanha que disciplinaram a matéria.
Para exemplificar, oportuno trazer à colação a disposição respectiva no Código Civil Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch), notadamente o § 242, que prevê o princípio da boa-fé objetiva (Treu und Glauben): "O devedor deve cumprir a prestação tal como exige a boa-fé e os costumes do tráfego social".
No magistério de Judith Hofmeister Martins-Costa [10], a eminente doutora ensina, citando expressão de Ernesto Wayar [11], que "cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade"; e mais adiante preleciona:
"Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard... o que vem a significar que, na concreção da boa-fé objetiva deve o intérprete desprender-se da pesquisa da intencionalidade da parte, de nada importando, para a sua aplicação, a sua consciência individual no sentido de não estar lesionando direito de outrem ou violando regra jurídica. O que importa é a consideração de um padrão objetivo de conduta, verificável em certo tempo, em certo meio social ou profissional e em certo momento histórico."
E o que se busca em exigir dos contratantes o dever de lealdade, de probidade e de honestidade? Como se disse, a busca da ética aos partícipes da relação negocial (tanto o credor como, também, o devedor), fixando-se uma situação de mútua assistência a fim de atingir o objetivo comum, ou seja, o correto adimplemento da obrigação, que é a sua finalidade [12].
É somente a partir da edição da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), que a boa-fé objetiva insere-se no ordenamento jurídico pátrio (inc. III do art. 4º [13] e inc. IV do art. 51 [14]), e há quem entenda, como Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, que possa ser aplicada, com fundamento no art. 4º da LICC, a todos os demais setores [15], oportunidade em que adquire importância de princípio supremo do direito civil [16].
Mas ainda que não houvesse tal regra no CDC, aliada à circunstância da inexistência no Código Civil de 1916 de dispositivo semelhante ao § 242 do BGB, ensina Clóvis do Couto e Silva que motivo "não impede que o princípio tenha vigência em nosso direito das obrigações, pois se trata de proposição jurídica, com significado de regra de conduta [17][18].
No caso em comentário, o princípio da boa-fé objetiva evidenciou-se antes mesmo que se efetivasse o contrato (período pré-negocial), uma vez que a apelada, pelos seus atos [19], fraudou as expectativas legitimamente criadas na apelante de que seria, oportunamente, celebrado o contrato, surgindo, daí, a responsabilidade pré-negocial (culpa in contrahendo) [20].
Esperava-se da apelada que, face à fundada expectativa criada na contraparte, tivesse o comportamento pautado pela lealdade e probidade, o que não se verificou na medida em que sequer informou qual o motivo (qual o justo motivo) que a levara a romper abruptamente as tratativas e não celebrar o contrato de locação com a apelante.
O direito à indenização, in casu, nasce, pois, em face dessa abrupta ruptura das tratativas, procedida de forma injustificada e arbitrária, aliada à circunstância de ter criado uma justa expectativa, na contraparte, de que o negócio seria realizado.
Judith Martins-Costa, em sua obra "A Boa-fé no Direito Privado", refere, de forma sintética, as condições da responsabilidade pré-contratual, ficando visível, a partir daí, o acerto da decisão comentada:
"A existência de negociações, qualquer que seja a sua forma, antecedente a um contrato; a prática de atos tendentes a despertar, na contraparte, a confiança legítima de que o contrato seria concluído; a efetiva confiança, da contraparte; a existência de dano decorrente da quebra desta confiança, por terem sido infringidos deveres jurídicos que a tutelam; e, no caso da ruptura das negociações, que esta tenha sido injusta, ou injustificada – aí estão, sinteticamente postas, as condições da responsabilidade pré-negocial."
Em conclusão, note-se que a cláusula geral da boa-fé objetiva, como fundamento, e como meio a inibir a conduta temerária da contraente, fora bem aplicada ao caso pelo colegiado da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça Gaúcho.
BIBLIOGRAFIA
Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. A Boa-fé na Relação de Consumo, artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor, v. 14.
Couto e Silva, Clóvis do. A Obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976.
Fradera, Vera Maria Jacob de. O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva, organização de textos de Clóvis do Couto e Silva, Livraria do Advogado, 1997.
Martins-Costa, Judith Hofmeister. O Poder Judiciário e a Concretização das Cláusulas Gerais: Limites e Responsabilidades, artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 18 – 2000).
______________________ O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro, artigo publicado na Internet: www.ufrgs.br/mestredir/doutrina/martins1.htm
_______________________ A Boa Fé no Direito Privado, RT, 1999, 1ª edição, 2ª tiragem.
Sanseverino, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, Ed. Saraiva, 2002.
Notas
1. "A boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade, conforme está na Constituição da República)...", conforme refere Ruy Rosado de Aguiar Júnior in "A Boa-fé na Relação de Consumo" (artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor, v. 14, p. 24).
2. deixando evidenciado a relatora, citando ensinamento de Récio Eduardo Cappelari in "Responsabilidade Pré-contratual", que "não há como deixar de reconhecer a liberdade de não contratar".
3. A relatora, eminente Des. Helena Cunha Vieira, fundamentou seu voto citando ensinamento de Récio Eduardo Cappelari (obra citada) e de Fernando Noronha (in O Direito dos Contratos e seus Princípios fundamentais), além de citar Mario Julio Almeida Costa, Carlos Alberto da Mota Pinto, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva e Judith Martins-Costa, referindo, ainda, que se deve a Jhering a construção da doutrina da "culpa in contrahendo".
4. "inexistindo dúvida quanto a isso", como consta do voto do acórdão comentado.
5. Fato, aliás, não negado pela apelada na tomada do depoimento pessoal na audiência de instrução e julgamento.
6. "Não foi apresentado um motivo para o rompimento das tratativas e para a não realização do contrato", como consta do voto.
7. No caso, não restou demonstrado, e a apelante também não pleiteia, o pagamento de despesas decorrentes da frustração do negócio.
8. Clóvis do Couto e Silva in "A Obrigação como processo". São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 6: "Como totalidade, a relação obrigacional é um sistema de processos."
9. O Novo Código Civil, com vigência a partir de janeiro de 2003, entretanto, disciplina o princípio da boa-fé objetiva: "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."
10. in "O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro", artigo publicado na Internet: www.ufrgs.br/mestredir/doutrina/martins1.htm.
11. in Derecho Civil - Obligaciones, Tomo I, p. 19, apud Judith Martins-Costa in "O direito privado como....".
12. Clóvis do Couto e Silva in "A obrigação... ", p. 30.
13. Cláusula geral, na lição de Judith H. Martins-Costa, nas palavras de Ruy Rosado de Aguiar Júnior in "O Poder Judiciário e a Concretização das Cláusulas Gerais: Limites e Responsabilidades" (artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Vol. 18 - 2000, p. 221).
14. Conceito indeterninado, idem.
15. In "Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor", Ed. Saraiva, 2002, p. 58.
16. Minha conclusão.
17. "A Obrigação... .", p. 30.
18. "Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como se fez com o da boa-fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende, ocorre ainda assim a sua aplicação por ser o resultado de necessidades éticas essenciais, que se impõem ainda quando falte disposição legislativa expressa." In "O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva", organizado por Vera Maria Jacob de Fradera, Livraria do Advogado, 1997, p. 49.
19. Elaborou, em sem computador, o contrato; garantiu preferência na locação à apelante; não teve o cuidado de esclarecer as razões de ter havido o rompimento das tratativas e a desistência da locação, já assegurada verbalmente à apelante; deixou que a apelante providenciasse na documentação pertinente, inclusive com localização de fiadores que firmaram o contrato e reconheceram as respectivas firmas, juntamente com a apelante; deixou que a apelante providenciasse e efetivasse a ligação da luz no prédio em nome de seu companheiro.
20. "Na culpa in contrahendo os deveres que se violam não são os deveres principais, mas, sim, deveres secundários, resultantes do imperativo de agir com boa-fé e lealdade". Clóvis do Couto e Silva in "A Companhia Siderúrgica Mannesmann, Revista da Consultoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 13, 1975, p. 207, apud Judith Martins-Costa, "A Boa Fé no Direito Privado", RT, p. 508.