Lei da Lavagem de Dinheiro: análise das disposições penais e pontos polêmicos após as alterações trazidas pela Lei nº 12.683/2012

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Faz-se uma análise dos aspectos penais da Lei nº 9.613/1998, bem como de alguns pontos polêmicos do crime de lavagem de dinheiro, mormente após a edição da Lei nº 12.683/12.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise dos aspectos penais da Lei nº 9.613/1998, bem como das alterações surgidas após a edição da Lei nº12.683, de 10 de julho de 2012, merecendo destaque pontos polêmicos como por exemplo se o  delito de lavagem de dinheiro é de natureza instantânea ou permanente, o que reflete sob pontos cardeais, como por exemplo, a possibilidade de retroatividade de lei penal mais gravosa; início da prescrição da pretensão punitiva e possibilidade de prisão em flagrante.

Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Lei penal. Crime permanente. Crime instantâneo.

 

1. INTRODUÇÃO

Como cediço, a busca pelo enfraquecimento dos grupos criminosos é uma realidade de quase todos os países, razão pela qual as nações buscam diversas formas de acabar/reduzir o poder daqueles grupos, sendo que, não raro, um dos principais instrumentos utilizados para este desiderato é justamente a incriminação da conduta dos criminosos em procurar dar legitimidade aos valores oriundos da prática criminosa, isto é, a conduta cujo objetivo é dar aparência de licitude ao proveito/vantagem oriunda da prática de delitos.

Nesse passo, a conduta de procurar dar legitimidade aos bens, direitos e valores advindos da prática de crimes é o que se convencionou de denominar de “lavagem” de dinheiro. Ou seja, através da prática da “lavagem” os bens (leia-se também direitos e valores) sujos (decorrentes da prática de crimes) se tornam limpos, sendo que esta limpeza decorre do processo de lavagem, isto é, da utilização de táticas que procuram desvincular o dinheiro obtido ilicitamente da prática dos delitos, com o claro objetivo de que os proveitos dos crimes possam ser utilizados tranquilamente por seus autores e participes.

Historicamente, tem-se atribuído aos Estados Unidos da América o titulo de ser o primeiro país a criminalizar a prática da lavagem de dinheiro, muito provavelmente em decorrência da vigência da chamada Lei Seca[i], resultante do poder de segmentos mais conservadores daquele País (puritanismo religioso), época na qual foram proibidas a fabricação, venda e o transporte de bebidas intoxicantes (que contivessem mais de 0,5% de álcool).

Nos EUA, após a entrada em vigor da Lei Seca, na década de 1920, as organizações criminosas ganharam grande poder, pois elas foram responsáveis pelo abastecimento do mercado consumidor de álcool, o que exigiu que elas se transformassem em verdadeiras organizações empresariais, o que se deu com a sofisticação de seu nível organizacional[ii].

Em decorrência da venda ilegal de bebidas alcoólicas, aumentou consideravelmente o número de mortes de membros de organizações criminosas rivais (por causa da disputa do monopólio da venda em determinadas partes das cidades, tal como ocorre hoje nas disputas por “bocas de fumo”, no que se refere ao tráfico de drogas e entorpecentes), bem como os casos de corrupção dos agentes públicos, tais como policiais, juízes, promotores, etc.

No Brasil, a Lei nº 9.613/98 surgiu após nosso País se tornar signatário da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas[iii] (Convenção de Viena), de 20 de dezembro de 1988, a qual foi referendada pelo Brasil por força do Decreto Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991.

Como sabido, o objetivo da criminalização da lavagem de dinheiro delimitada pela Convenção de Viena foi o de combater o aspecto financeiro[iv] dos agentes que cometiam o delito de tráfico de drogas, vez que este delito movimenta anualmente bilhões de dólares em todo o mundo.

Neste contexto é que surgiu a Lei nº 9.613/98, na ânsia de dar concretude às determinações contidas na aludida convenção internacional.

No que se refere às legislações dos países que dispunham sobre a incriminação da lavagem, a doutrina as classifica em 3 (três) gerações: 1ª geração – consoante as diretrizes da Convenção de Viena, a lavagem caracteriza-se apenas se o crime antecedente fosse o de tráfico de drogas e entorpecentes, razão pela qual se observa a preocupação dos países com relação aos malefícios da traficância; 2ª geração – a partir daqui, além do delito de tráfico, a lavagem também se dava com relação a outros crimes, ou seja, aumentou-se o rol de crimes antecedentes; 3ª geração – nesta geração, há a exclusão de um rol de crimes antecedentes, podendo a lavagem de dinheiro se dar com relação a qualquer delito, desde que, por óbvio, gere um proveito econômico passível de ser “lavado”, isto é, de ser legitimado.

Destarte, verifica-se que originalmente a Lei nº 9.613/98 era de natureza mista[v], eis que continha características das normas de segunda e terceira gerações, pois, apesar de possuir um rol de crimes antecedentes para que fosse configurada a lavagem de dinheiro, em seu inciso VII do art.1º ressalvava a possibilidade da lavagem de bens, direitos e valores oriundos de qualquer delito, desde que fosse praticada por intermédio de organização criminosa.

Ocorre que, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012, a nossa Lei de Lavagem de dinheiro se tornou claramente uma norma de terceira geração, pois a lavagem de dinheiro ocorrerá com relação a qualquer infração penal, inclusive com relação às contravenções penais, o que não ocorria na redação primitiva da Lei nº 9.613/1998.

 

2. BEM JURÍDICO NO DELITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO

O bem jurídico[vi] é considerado o interesse penalmente relevante a ser protegido pelas normas penais incriminadoras. Nesse sentido, David Teixeira de Azevedo[vii] leciona que:

Enquanto o bem é tudo o que tem valor para o homem ou para a sociedade, pois apto e útil a satisfazer uma necessidade, o bem jurídico constitui-se no objeto concreto de tutela que encarna esse valor e coagula esse interesse no âmbito do ordenamento jurídico.

[...] Welzel assinalava ser o bem jurídico um bem vital individual que, devido ao significado social, é juridicamente protegido.

 

Assim, por exemplo, no crime de homicídio o bem jurídico protegido é a vida do ser humano, enquanto que nos delitos patrimoniais, v.g., o furto ou roubo, o bem jurídico é o patrimônio (conjunto de bens apreciáveis economicamente).

No crime de lavagem de dinheiro, a doutrina é bastante divergente sobre qual seria o bem jurídico tutelado pela norma penal.

Rodolfo Tigre Maia (2007) defende que o bem jurídico predominante no delito de lavagem é a administração da justiça e, em segundo plano, a ordem econômica, embora reconheça que, em razão da numeração taxativa dos crimes antecedentes previstos na referida lei, existem outros bens jurídicos também protegidos, como por exemplo: a saúde pública (inciso I); a segurança nacional (incs. II e III), segunda parte); a administração Pública (incs. III, primeira parte, e V); o Sistema Financeiro Nacional (inc. VI); o patrimônio, a liberdade individual, a integridade física e a vida (incs. IV) e, por fim, a paz pública (inc. VII).

BALTAZAR JUNIOR (2009) considera que o delito de lavagem de dinheiro deve ser considerado pluriofensivo, isto é, que possui diversos bens jurídicos albergados pela proteção da normal penal incriminadora.

Já Pierpaolo Cruz Bottini (2013) leciona ser a administração da justiça o único bem jurídico protegido pela norma penal, não obstante reconheça que em grande parte dos casos há uma pluralidade de bens jurídicos violados. Segundo o citado autor, a opção por apenas um bem jurídico – administração da justiça -, garante a “construção de uma metodologia de interpretação coerente[viii]”, tendo em vista que “A proposta da pluriofensividade retira a força dogmática da determinação do bem jurídico especificamente tutelado, importante para extrair consequências hermenêuticas e limitar a atuação do interprete[ix]”.

Da análise dos posicionamentos supra, acreditamos que o que possui menos falhas é o proposto por BOTTINI, isto é, o que apregoa que o bem jurídico protegido pela lei antilavagem é a administração da justiça, a qual é lesada quando o agente procura desvincular o proveito do crime da sua prática, ou seja, quando se vale do processo de lavagem de bens oriundos da prática delituosa, não obstante outros bens jurídicos também possam ser lesados, por exemplo, a ordem econômica.

Diante o exposto, consideramos que o bem jurídico protegido pela Lei nº9.613/98 é a administração da justiça.

 

3. CONCEITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO

Como dito alhures, a lavagem de bens, direitos e valores (sendo que a lei fala em lavagem de dinheiro) é um processo complexo que tem como objetivo a desvinculação da ilicitude de qualquer bem que foi obtido em decorrência da prática de crimes, para que o agente criminoso possa usufruir dos valores adquiridos com infração à lei penal. Nesse sentido, com sua peculiar argúcia, José Paulo Baltazar Junior ensina que:

A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como como (sic) atividade que consiste na desvinculação ou afastamento do dinheiro da sua origem ilícita para que possa ser aproveitado. O que fundamentou a criação desse tipo penal é que o sujeito que comete esse tipo de crime, que se traduz num proveito econômico, tem que disfarçar a origem desse dinheiro, ou seja, desvincular o dinheiro da sua origem criminosa e conferir-lhe uma aparência lícita a fim de poder aproveitar os ganhos ilícitos, considerado que o móvel de tais crimes é justamente a acumulação material[x]. (negritei)

 

No mesmo sentido, o insigne penalista Rodolfo Tigre Maia aduz que:

A lavagem de dinheiro pode ser simplificadamente compreendida, sob uma perspectiva teleológica e metajurídica, como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça[xi]. (negritei)

 

É preciso destacar, que para a caracterização da reciclagem de ativos ilícitos, mister se faz que o agente realize a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

O que equivale a dizer que para haver lavagem é imprescindível que haja um processo de mascaramento (ocultação ou dissimulação) sobre a natureza, origem, movimentação, etc. de bens decorrentes da prática de infração penal, seja crime ou contravenção penal.

Desta forma, caso o agente não realize algum ato de mascaramento (ocultação ou dissimulação) sobre a origem de valores obtidos da prática de algum delito, mas, simplesmente, use o dinheiro obtido para comprar uma imóvel em seu próprio nome, não haverá o ilícito em comento, vez que o criminoso não usou de meios tendentes a dificultar a informação sobre a origem de tais valores. Nesse sentido, Pierpaolo Cruz Bottini esclarece que:

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Imagine-se um roubo a banco – agora antecedente possível da lavagem de dinheiro – em conseqüência do qual seu autor adquira dinheiro suficiente para comprar um barco. Caso ele o compre diretamente, em seu nome, não haverá lavagem de dinheiro, mas mero exaurimento do crime. Por outro lado, se o valor for depositado em conta de terceiro, que efetua a compra em nome de empresa laranja, existirá lavagem de dinheiro[xii]. (negritei)

 

Desta forma, vê-se que somente haverá lavagem de dinheiro quando houver o uso de algum tipo de artifício que procure desvincular a origem ilícita do bem para que o criminoso possa usufruir tranquilamente o seu proveito.

 

4. REDAÇÃO ORIGINÁRIA DA LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO (LEI Nº 9.613/98

Como já destacado, a redação originária da Lei nº9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro) era considerada uma norma antilavagem de 2ª geração, pois somente acontecia a reciclagem de ativos ilícitos decorrentes dos crimes taxativamente previstos como antecedentes da lavagem. Ou seja, se o proveito econômico adviesse de delito que não estivesse no rol de crimes antecedentes, não se configurava a lavagem de capitais.

A redação originária da Lei nº 9.613/98 elencava os seguintes delitos como antecedentes necessários da lavagem de dinheiro, in verbis:

Art. 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

II – de terrorismo e seu financiamento;

III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;

IV – de extorsão mediante seqüestro;

V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;

VI – contra o sistema financeiro nacional;

VII – praticado por organização criminosa.

Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. (negritei)

 

Da análise do dispositivo acima, observa-se que somente os proveitos econômicos dos delitos elencados poderiam ser “lavados”, ou seja, caso alguém angariasse proveito econômico da prática de algum delito que não estivesse no referido rol de crimes, como por exemplo, da prática de furto (art.155, CP), mesmo que ele dissimulasse a origem do referido proveito, não poderia ser enquadrado pela prática de lavagem de dinheiro, por total atipicidade, vez que o delito de furto não constava como antecedente (elemento típico).

Outro ponto que merece destaque, é que somente os proveitos econômicos decorrentes dos crimes elencados como antecedentes poderiam caracterizar a lavagem, ou seja, não havia reciclagem de ativos ilícitos decorrentes da prática de contravenção penal, tal como o jogo do bicho[xiii], contravenção penal que rende o auferição de grande montante monetário a seus exploradores.

Desnecessário se faz a análise de cada delito elencado ao supracitado rol, vez que são assaz conhecidos pelos operadores do direito, porém, há que se fazer 3 (três) breves observações.

Primeiro, o inciso II relativo ao crime de terrorismo e seu financiamento não poderia ser imputado a nenhum acusado, pois nosso ordenamento jurídico não tem a previsão de tal delito, sob pena de violação ao princípio da reserva legal. Nessa senda, com sua clarividência, Rodolfo Tigre Maia[xiv] assenta que:

Considerando-se, de um lado, o princípio da reserva legal (taxatividade e transparência) e, de outro lado, a inexistência até o momento de um tipo penal com este nomen juris, estamos em que o presente inciso ainda não é funcional [...]. Diante do princípio da reserva legal (inexistência do tipo penal de terrorismo em nosso ordenamento) e da estrutura típica adotada pelo legislador brasileiro (em que para existir a “lavagem” é mister que exista o crime primário), a resposta à indagação somente poderá ser negativa: se o agente recicla em território brasileiro bens originários da prática em outro país de crime ali definido como terrorismo, tal conduta será atípica diante de nosso Direito Penal, salvo se a definição legal de terrorismo no Direito alienígena corresponder – sob outro nomen juris – a conduta considerada criminosa no Brasil e enquadrável nos crimes antecedentes da reciclagem (e.g., tráfico de armas).

 

BALTAZAR JUNIOR (2009), em sentido contrário, defende que o inciso II seria aplicável, pois o art.20[xv] da Lei nº 7.170/89 (Lei da Segurança Nacional) definiria o crime de terrorismo em nosso ordenamento jurídico.

Com a devida venia, a razão está inteiramente com Tigre Maia, pois considerar o art.20 da LSN como a definição de delito de terrorismo, a qual, frise-se, em apenas um momento usa o termo “atos de terrorismo”, porém, não define o que se deva entender por ele (terrorismo), violaria flagrantemente o princípio da reserva legal, sob o espectro da transparência. Devido ao brilhantismo do pensamento, mais uma vez nos valemos dos ensinamentos de Rodolfo Tigre Maia[xvi]:

 

De ser ver que, embora a Lei de Segurança Nacional – LSN (Lei federal n. 7.170/83, nascida nos estertores da ditadura militar) contenha a expressão “atos de terrorismo” em um de seus dispositivos (art.20), não explicita um tipo penal com esta denominação específica. De fato, neste dispositivo, a expressão “atos de terrorismo” viola a reserva legal, por ser insuscetível de delimitação precisa. O que são “atos de terrorismo”? Serão outras condutas similares às utilizadas naquele tipo penal (devastar, saquear etc.)? Se é assim, a dicção legal deveria ser “(...) ou outros atos de terrorismo”. Estaria a expressão vinculada ao termo imediatamente antecedente (“praticar atentado pessoal”)? Se é assim, persiste a imprecisão violadora da legalidade: o que é “praticar atos de terrorismo”? Estão incluídos delitos de opinião? A injúria real? A lesão corporal leve? A simples dissidência ao regime estabelecido? (negritei)

 

Desta forma, temos que o inciso II da Lei de Lavagem de dinheiro não é aplicável, pois inexiste o crime de terrorismo em nosso ordenamento jurídico, sob pena de violação ao princípio da legalidade.

Outrossim, o inciso V (“contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos”) possui diversas falhas. De acordo com Tigre Maia[xvii]:

Esta primeira parte do inciso é lamentável do ponto de vista da técnica jurídico-penal (a) por ampla em demasia, envolvendo incontáveis tipos penais, inclusive alguns de pequena lesividade, enfraquecendo a função de garantia da norma incriminadora; (b) por referir indistintamente ilícitos que sequer propiciam diretamente a aquisição de bens passíveis de “lavagem” de dinheiro. Assim, e.g., os crimes de prevaricação, condescendência criminosa, abandono de função, resistência, desobediência, desacato, inutilização de edital ou de sinal, reingresso de estrangeiro expulso, exercício arbitrário das próprias razões, arrebatamento de preso, motim de presos etc. A segunda parte do dispositivo (“inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos”), resultante de emenda aditiva aprovada pelo Parlamento, consegue ser pior: (a) é rebarbativa, eis que a hipótese enunciada estaria subsumida ao objeto jurídico já enunciado (contra a Administração Pública); (b) é inconsistente, eis que a conduta descrita não corresponde com exatidão a qualquer dos tipos penais vigentes em nosso ordenamento jurídico (aproxima-se um pouco da corrupção passiva e da concussão). (negritei)

 

Embora reconheçamos a procedência das criticas feitas por Tigre Maia, concordamos plenamente com BALTAZAR JUNIOR (2009), quando afirma a importância deste inciso V, tendo em vista que diversos delitos perpetrados contra a administração pública geram proveitos econômicos para funcionários públicos ou terceiros, passiveis de ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos.

A última observação se refere ao inciso VII (“praticado por organização criminosa”). De acordo com a doutrina, este inciso abriria a possibilidade de que os proveitos econômicos decorrentes de qualquer[xviii] crime pudessem ser objeto da lavagem de dinheiro, desde que fossem praticados por intermédio de organização criminosa. Ou seja, este inciso não se referia a um crime antecedente, mas a forma como eram praticados os delitos de onde provinham os proveitos econômicos. Nesta senda, BALTAZAR JUNIOR[xix] ensina que:

O inciso abre o rol de crimes antecedentes ao estabelecer que qualquer outro delito, ainda que não previsto especificamente nos incisos, possa ser considerado antecedente da lavagem de dinheiro, quando praticado por organização criminosa, cuidando-se não de um crime antecedente, mas da forma como o crime é cometido, de modo que não compromete a aplicação do inciso o fato da inexistência de um tipo específico de organização criminosa na lei brasileira (TRF5, HC 20080500006652-8/PE, Joana Pereira, 1ª T., u., 28.2.08). (negrito)

 

5. LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO APÓS AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.683/12

Como já assinalado, com a edição da Lei nº 12.683, de 10 de julho de 2012, a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) teve importantes alterações em suas disposições penais.

Inicialmente, cumpre destacar, que nossa legislação deixou de ser de 2ª geração para ser de 3ª geração, pois, a partir de agora, a lavagem pode decorrer da prática de qualquer delito, inclusive, frise-se, da prática de contravenção penal, v.g., a contravenção do jogo do bicho (art.58, Decreto-Lei nº 3.688/41). Isto porque, a nova lei substituiu a expressão “de crime” por “infração penal” (gênero), o que alberga tanto os crimes como as contravenções penais (espécies de infração penal).

Após a entrada em vigor do novo diploma legal, assim passou a dispor o art.1º da Lei de Lavagem de Dinheiro, in verbis:

Art. 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal(Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) (negritei)

 

Diante o exposto, desde a entrada em vigor das alterações trazidas pela Lei nº12.683/12, os proveitos econômicos provenientes de qualquer infração penal podem ser objeto de reciclagem de ativos ilícitos.

Do mesmo modo, tendo em vista a clareza dos tipos penais previstos nos §§1º e 2º do art.1º da Lei nº 9.613/98, despiciendo também se faz a análise de suas hipóteses. Assim dispõem os referidos parágrafos, in verbis:

§ 1o  Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - os converte em ativos lícitos;

II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.

§ 2o  Incorre, ainda, na mesma pena quem:  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.

 

Desta forma, vê-se que uma das principais inovações do diploma legal em comento é a transformação da Lei de Lavagem de Capitais brasileira em norma de 3ª geração, ou seja, a partir de agora, a prática de qualquer infração penal - inclusive a de contravenção do "jogo do bicho" - é apta a caracterizar a reciclagem de capitais e a consequente criminalização dos possíveis infratores. Da mesma forma, o delito de sonegação (v.g., arts.1º e 2º, Lei nº8.137/90) - antes excluído da lista de crimes antecedentes da lavagem, o que impossibilitava a criminalização de lavagem dos agentes que praticassem referido crime, isto é, de sonegação -, ou melhor, os ativos ilícitos oriundos de tal delito quando passarem por alguma das formas de reciclagem de capitais poderá caracterizar a lavagem.

Diante o exposto, a principal inovação trazida pela Lei nº 12.683 foi a possibilidade da lavagem se dar na prática de qualquer infração penal, seja crime ou contravenção.

 

6. NATUREZA INTANTÂNEA OU PERMANENTE DO DELITO DE LAVAGEM

A doutrina e a jurisprudência também divergem se o crime de lavagem de capitais é de natureza instantânea ou permanente, questão esta, contudo, que é de suma importância por causa das suas consequências na órbita penal.

MAIA (2007) defende que a reciclagem de capitais tem natureza permanente - assim como ocorre com a “ocultar” no crime de receptação (art.180, CP) -, tendo em vista a própria dinâmica que envolve a lavagem, onde umas etapas antecedem outras, o que pode fazer que durante a permanência uma conduta passe a subsumir a outros tipos derivados.

Por outro lado, Pierpaolo Cruz Bottini (2013), defende a natureza de delito instantâneo[xx] com efeitos permanentes da lavagem de capitais, mormente com fulcro numa interpretação teleológica à luz do bem jurídico protegido. Todavia, por discordar que a natureza do delito esteja ligada à possibilidade do autor do crime interromper ou não a prática delituosa – o que faria que até o crime de furto fosse considerado como permanente, o qual, todavia, é tranquilamente considerado instantâneo -, sob o prisma da política criminal, o melhor é considerar a reciclagem como delito instantâneo, sendo que o delito de consuma com a ocultação ou dissimulação, sendo que a permanência da ocultação é mero exaurimento. Se assim não fosse, a entrada em vigor de lei que ampliasse o rol de antecedentes incidiria imediatamente sobre as ocultações em andamento, o que prejudicaria sobremaneira a segurança jurídica do cidadão, notadamente seu status libertatis.

Desta forma, temos que o melhor posicionamento é o proposto por BOTTINI, o qual garante a segurança jurídica dos cidadãos, estando em sintonia com a proteção do status libertatis garantida por nossa Constituição-cidadã de 1988. Assim, não será possível a aplicação retroativa da novatio legis in pejus, não sendo aplicável a Súmula nº711 do STF[xxi], a menos que após a entrada em vigor da nova lei, o agente pratique novos atos de ocultação ou dissimulação, o que consumará novamente o crime de lavagem a cada nova conduta de mascaramento do proveito econômico do bem.

BOTTINI (2013), apesar de sustentar a natureza instantânea da lavagem, ele concorda que se praticadas novas condutas tendentes a aprofundar a ocultação ou dissimulação, estes novos atos serão típicos, pois cada nova movimentação agride o bem jurídico administração da justiça.

Desta forma, ante seu caráter instantâneo, o prazo prescricional começa a correr da data da sua consumação, isto é, da ocultação ou dissimulação, bem como não é possível a prisão em flagrante a qualquer tempo.

Todavia, cabe destacar que o STF[xxii] ainda não tem um entendimento consolidado sobre o tema, tendo vincado que paira dúvida se trata de crime permanente ou instantâneo, conforme se observa do resultado do julgamento do Inquérito nº2471/SP.

 

7. CONCLUSÕES

Diante o exposto, com a edição da Lei nº12.683/12, verifica-se que a legislação brasileira de lavagem de capitais – Lei nº9.613/98 – se tornou uma norma de 3ª geração, isto é, a partir da supracitada alteração, é possível agora haver a reciclagem de ativos ilícitos decorrentes da prática de qualquer infração penal (englobando crimes e contravenções penais, v.g., a lucrativa prática de “jogo do bicho” (art.58, Decreto-Lei nº 3.688/41).

Por fim, percebe-se que a tese do delito de lavagem de capitais possuir natureza jurídica de delito instantâneo (com efeitos permanentes) é a que melhor se harmoniza com a atual ordem constitucional, isto, é, de clara feição garantista, pois impossibilita a criminalização de várias condutas antes consideradas atípicas, tal como a lavagem de capitais oriunda da sonegação fiscal e da prática da contravenção do “jogo do bicho”.

 

NOTAS

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Sobre os autores
Adão Mendes Gomes

Advogado; Graduado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia; Especialista em Ciências Criminais; Especialista em Direito Processual Penal; Autor de livros jurídicos e artigos jurídicos; Autor do blog jurídico "O Direito na Berlinda", que trata especialmente de temas ligados ao Direito Penal.

Antônio Álvaro Ramos Santana Schramm

Delegado da Polícia Civil no estado da Bahia; Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade Maurício de Nassau.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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