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Breves notas sobre o crime de corrupção ativa nas transações comerciais internacionais

01/01/2003 às 00:00
Leia nesta página:

1. CONCEITO LEGAL

O Código Penal, no art. 337-B, introduzido pela Lei n. 10.467, de 11.6.2002, define o delito de corrupção ativa nas transações comerciais internacionais [1] como o fato de "prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado a transação comercial internacional", impondo penas de reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.


2. IRRETROATIVIDADE DA NOVATIO LEGIS INCRIMINADORA

O art. 337-B do CP contém lei nova incriminadora. Por isso, é irretroativa (CF, art. 5º, XL).


3. CRIMES DE CORRUPÇÃO E SUBORNO

Entre nós, ao contrário do que ocorre em outras legislações, as expressões corrupção e suborno têm o mesmo conceito, inexistindo diferença entre elas.

Em alguns países, o fato cometido pelo servidor público é denominado "corrupção" (a nossa corrupção passiva); o praticado pelo particular (a nossa corrupção ativa), "suborno".


4. CRIMES DE CORRUPÇÃO ATIVA COMUM E TRANSNACIONAL

O delito de corrupção ativa comum, relacionado ao funcionário público brasileiro, está previsto no art. 333 do CP; o transnacional, em que o funcionário público estrangeiro aparece como objeto pessoal da corrupção, encontra-se no art. 337-B, do mesmo Estatuto.


5.OBJETIVIDADE JURÍDICA SUPRANACIONAL

O Código Penal protege a lealdade no comércio exterior [2] (nas transações comerciais internacionais). A lei penal, ensina Carlos A. Manfroni, pretende "preservar la transparencia y la equidad en el comercio internacional, con vistas a una economía mundial cada vez más competitiva, en cuya expansión, la tolerancia de prácticas corruptas llevaría las fricciones que pudieran suscitarse entre empresas y países y los sobrecostos derivados a los pueblos, a niveles insoportables para la convivencia" [3].

Essa lealdade diz respeito: 1. às empresas, que, como ensina Carlos A. Manfroni, devem competir unicamente com preço e qualidade e não com fraude; 2. aos países, evitando o crescimento de uma economia em desfavor da corrupção do setor público de outra; 3. à coletividade, que paga em preço ou em impostos o valor do suborno [4].

Não obstante se encontre o art. 337-B, que define o delito de corrupção ativa de funcionário público estrangeiro, no Capítulo II-A [5] do Título IX [6] do CP, não se cuida de uma infração que atenta contra a Administração Pública brasileira, uma vez que o funcionário público corrompido é o estrangeiro e não o brasileiro.

Assim, se se tratasse de proteger a Administração Pública, esta seria, em tese, a estrangeira. Mas nem esta poderia ser a titular do bem jurídico: um país não pode atribuir-se a tarefa de proteger a Administração Pública de outro [7]. Estamos, na verdade, diante de um novo bem jurídico, a lealdade no comércio internacional, interesse que pertence a todos os países e cuja proteção penal, punindo seus nacionais, cabe a eles próprios, individualmente e por intermédio de suas legislações internas [8].


6. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA TUTELA PENAL

Qualquer estudo a respeito de bens jurídico-penais deve partir da Constituição Federal [9], por meio do qual é possível estabelecer os limites punitivos do Estado.

Em relação aos delitos criados pela Lei n. 10.467/02, quais sejam, corrupção ativa e tráfico de influência nas transações comerciais internacionais, de ver-se que a nossa Constituição Federal prevê, em seu art. 4.º, IX, dentre os princípios que regem as nossas relações internacionais, o da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade", em que se inclui o interesse de que haja lisura e probidade administrativa nas transações comerciais transnacionais entre os países (lealdade internacional no comércio exterior).


7. EXCEÇÃO PLURALISTA DO PRINCÍPIO UNITÁRIO

Poderia haver um só delito para corruptor (nacional ou estrangeiro) e corrupto (funcionário público estrangeiro). De ver-se, contudo, que o Código Penal não definiu, e nem poderia fazê-lo, o crime de corrupção passiva do funcionário público estrangeiro.

De modo que o corruptor responde nos termos do art. 337-B; o corrompido (funcionário público estrangeiro), por eventual delito de corrupção passiva, perante a sua legislação penal.


8. COMPETÊNCIA

A competência é da Justiça Federal ou Comum Estadual?

Nos termos do art. 109, V, da CF, compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, "iniciada a execução no Brasil, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente." [10]

O Brasil, efetivamente, obrigou-se, por meio do Decreto n. 3.678, de 30 de novembro de 2000, a dar cumprimento à Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais.

De ver-se, porém, que, para a incidência, no crime em apreço, da competência da Justiça Federal, não é suficiente que o Brasil se tenha comprometido, mediante promulgação de convenção, a reprimi-lo.

É necessário ainda que, iniciada a sua execução no Brasil, o resultado naturalístico "tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente." Tratando-se de corrupção ativa, o fim visado pelo agente corresponde ao ato de ofício do funcionário público estrangeiro a ser concretizado, omitido ou retardado no Brasil ou no estrangeiro [11].

Diante disso, realizada a conduta corruptora de promessa, oferecimento ou doação da vantagem em nosso território, é preciso verificar se o ato do funcionário público estrangeiro visado pelo autor, a ser concretizado, omitido ou retardado, encontra-se relacionado com sua atividade no Brasil ou no exterior: a competência será da Justiça Federal quando integrar o seu exercício funcional no estrangeiro, e da Justiça Comum Estadual na hipótese de fazer parte de sua atuação no Brasil. Assim, a competência somente será da Justiça Federal quando os comportamentos de corrupção ativa ocorrerem no Brasil, em relação a ato de ofício a ser praticado, omitido ou retardado pelo funcionário público estrangeiro no exterior.

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É necessário, afirma Raquel Fernandez Perrini, que haja reflexos da conduta delitiva em outro país [12]. Como observa Magno K. Nardin, "se todas as etapas do delito (iter criminis) se desenvolverem unicamente no Brasil ou no exterior, em face da adoção do nosso sistema jurídico penal do princípio da universalidade ou da justiça mundial, será aplicada a lei nacional, mas a competência será da Justiça Estadual" [13].

No mesmo sentido, Roberto da Silva Oliveira ensina que, para a incidência da competência da Justiça Federal, é necessário que "fique demonstrada a internacionalidade da conduta, isto é, a cooperação internacional, de modo que haja repercussão além das fronteiras do País. Não havendo caráter de internacionalidade, o crime é da competência da Justiça Estadual" [14].


Notas

  1. Sobre as teorias a respeito do bem jurídico nos crimes de corrupção ativa e passiva, vide: NOGALES, Inés Olaizola. El delito de cohecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 89 e ss.

  2. MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998. p. 35, 37, 40, 41, 45 e 131.

  3. La Convención Interamericana contra la Corrupción. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. p. 135. As empresas privadas menos honestas, diz Carlos A. Manfroni, "também conseguem competir deslealmente com as melhores ao iludir o pagamento de impostos, a preservação do meio ambiente ou as etapas normais para a obtenção de certificados e controles necessários para que certos produtos sejam projetados no mercado. Se estes desvios ocorrem na vida interna de um país, não há nenhuma razão para supor que não vão suceder no contexto do comércio entre as nações" (Soborno transnacional. Op. cit. p. 35 e 36).

  4. MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional. Op. cit. p. 37.

  5. Crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira.

  6. Crimes contra a Administração Pública brasileira.

  7. MANFRONI, Carlos A. Soborno transnacional. Op. cit. p. 39.

  8. Idem ibidem. p. 41. Jescheck denominaria a lealdade internacional como "bem jurídico supranacional" (O objeto do Direito Penal Internacional e sua mais recente evolução, Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Borsoi, abr./jun. 1972. n. 6, p.12, III).

  9. CASTILLO, Gerardo Barbosa; PAVAJEAU, Carlos Arturo Gómez. Bien jurídico y derechos fundamentales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998. p. 53.

  10. "Reciprocamente": iniciada a execução do crime do art. 337-B do CP no estrangeiro, "seu resultado tenha ou devesse ter ocorrido no Brasil".

  11. Nos três verbos, prometer, oferecer e dar, o crime é formal. As condutas têm um fim específico, que não precisa se concretizar: alteração da atitude do funcionário público estrangeiro, qual seja, realização, omissão ou retardamento do ato de ofício, que pode ocorrer no Brasil ou no exterior.

  12. Na expressão da autora, "levando-se em conta os reflexos da conduta delitiva em vários países". Em outra passagem, afirma: "O ponto vital para que a competência esteja afeta à Justiça Federal reside na efetiva caracterização da internacionalidade do delito, assim entendidas a prática e os reflexos da conduta delitiva em mais de um país" (Competências da Justiça Federal Comum. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 245-247). No mesmo sentido, ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA observa que o delito precisa ter conotação internacional (A competência criminal da Justiça Federal de primeira instância. São Paulo: RT, 1978. p. 66).

  13. NARDIN, Magno K. Crimes de corrupção de funcionário público estrangeiro. Disponível em: <https://www.tribunapr.com.br/noticias/crimes-de-corrupcao-de-funcionario-publico-estrangeiro/>. Acesso em: 11.7.2002. No mesmo sentido: CARVALHO, Vladimir Souza. Competência da Justiça Federal. Curitiba: Juruá, 2002. p. 359. Tem-se entendido também que a competência só é da Justiça Federal no caso de "cooperação internacional entre os agentes do crime", isto é, no caso de concurso de pessoas em que as atividades criminosas desenvolvem-se em mais de um país. No sentido da exigência de "cooperação internacional": CARVALHO, Vladimir Souza. Op. cit., p. 360, com citação de jurisprudência.

  14. Competência Criminal da Justiça Federal. São Paulo: RT, 2002. p. 82.

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Sobre o autor
Damásio E. de Jesus

advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Damásio .. Breves notas sobre o crime de corrupção ativa nas transações comerciais internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3582. Acesso em: 3 mai. 2024.

Mais informações

O presente texto abrange também outro artigo do autor, com o título "Competência específica no caso do crime de corrupção ativa nas transações comerciais internacionais", o qual corresponde ao item relativo à competência.

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