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Interpretação jurídica no marco do Estado Democrático de Direito:

um estudo a partir do sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil

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Capítulo 4.: O Sistema de Controle Difuso de Constitucionalidade no Brasil num Novo Marco de Interpretação Jurídica

No Capítulo 3 estudamos a proposta habermasiana de interpretação jurídica, necessária, como vimos, para que a decisão jurisdicional cumpra o requisito de aceitabilidade racional requerido pelo Direito Moderno.

Como mostramos, a Hermenêutica teve o mérito de inserir o texto em contextos de presente, passado e futuro (além do conceito de pré-compreensões em que o intérprete está inserido), mostrando que a interpretação presente apenas pode ser coerente se, em primeiro lugar, unir os horizontes (passado e presente) de interpretação [36]; contudo, resta problemática a partir do momento em que se percebe não haver uma concepção de bem (ou uma tradição), mas que, ao contrário, em sociedades hiper-complexas como as atuais há concepções diferentes e até antagônicas e qualquer recurso "à tradição" seria no mínimo algo arbitrário e excludente das demais.

Dworkin, a seu turno, também recorrendo a uma história institucional, o faz de maneira mais sofisticada, pois o que ele busca no passado é a composição coerente de princípios de uma dada comunidade. Com isso poder-se-á encontrar a "única decisão correta" para cada caso. Sem embargo, este trabalho hercúleo sofre críticas por sobrecarregar sobremaneira a figura de um juiz solitário.

Assim, ao invés de ficarmos confiando nas qualidades pessoais e capacidade intelectual do juiz, devemos entender que a tarefa da interpretação não lhe cabe isoladamente, mas é um processo que começa com as interpretações "não-oficiais" da sociedade aberta de intérpretes da Constituição e continua através das pretensões a direitos defendidas por cada parte no efetivo exercício do contraditório

Concluindo, podemos então e mostrar a relação do sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos que procedimentalmente possibilita, por um lado, que a interpretação se dê de forma que aqueles pressupostos contrafáticos da comunicação (de que falamos no Cap. 3) sejam tomados a sério, num procedimento realizado em contraditório e por outro lado, que a argüição incidental de inconstitucionalidade é um mecanismo adequado ao reconhecimento da tantas vezes mencionada "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" (muito mais do que o sistema de controle concentrado pode ser).

Em primeiro lugar, o controle difuso de constitucionalidade, por ocorrer num contexto em que há um litígio subjacente, faz com que a disputa em torno da constitucionalidade da lei (ou ato normativo) gire em torno da aplicação desta a um caso concreto e, por outro lado, reflete a interpretação que se tem dado à Constituição numa época e lugar específicos. A partir do momento em que as partes aduzem seus argumentos (e provas) — isto é, a partir do momento em que cada uma reconstrói não apenas o fato, mas todo o ordenamento jurídico, mostrando a contradição presente ou não frente à Constituição —, o juiz terá condições de avaliar a prevalência de uns sobre outros para aquele caso, isto é, o juiz não estará definindo qual interpretação se deve dar (ou não dar) à Constituição e à lei questionada em geral, mas apenas solucionando um caso, tendo em vista as razões aduzidas.

Por outro lado, o controle difuso, ao permitir que vários sujeitos questionem uma lei não porque (necessariamente) ela está em abstrato contrariando um dispositivo constitucional, mas porque, num caso concreto, ela esteja contrariando algumas das interpretações — das expectativas de comportamento — que têm sucedido num dado momento e lugar; isso confere a esta forma de controle um grande potencial: de que as interpretações realizadas por cada sujeito de direito sejam levadas em conta na proteção jurisdicional dos princípios maiores daquela comunidade consagrados constitucionalmente. Por outro lado permite que a interpretação que se dá à Constituição não se imobilize, mas seja a todo tempo revitalizada, acompanhando as mudanças que se processam — cada vez mais rápido — na sociedade.

O sistema de controle concentrado não possui aquele potencial. Jamais o Supremo Tribunal Federal terá condições de avaliar as várias situações criadas ou afetadas por uma dada lei que teve sua inconstitucionalidade requerida; e mais, tampouco poderá avaliar como se tem processado, numa sociedade descentrada e complexa como a nossa, a tensão entre a Faticidade e a Validade da Constituição a que fizemos referência anteriormente. Ao controle concentrado cabe, sim, a importante função de "garantia do devido processo legislativo democrático" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 259).

A situação do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil torna-se ainda mais problemática à realização de uma pretensão mais ampla e discursiva de interpretação constitucional diante da atual tendência centralizadora que lhe tem informado (cf. supra, Cap. 3.2.), pois, ainda que o processo nesse caso também se dê em contraditório, este é necessariamente limitado às questio iuris (por suas próprias limitações) e não possui condições para que as várias interpretações difusamente espalhadas pelo país sejam levadas em consideração.


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Notas

1. Sobre a perda crescente do consenso no seio das atuais sociedades, ver FARIAS, 1978, p. 32. Note-se que não compartilhamos com Rosenfeld da crença em uma sociedade "pós"-moderna. Ao contrário, cfe. trabalharemos no Capítulo 3, compartilhamos com Habermas acerca do "projeto incacabado da modernidade".

2. Essa possibilidade do uso sem controle do Direito e das instituições pelo poder político, foi trabalhada por vários autores. Apenas para citar um: "O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante (...). Mas a modernidade tem também um lado sombrio, que se tornou muito aparente no século atual (...) [um dos quais foi] o uso consolidado do poder político, particularmente nos episódios de totalitarismo". GIDDENS, 1991, p. 16.

3. Rosenfeld desenvolve sua teoria alternativa a partir da p. 188. Sobre o "pluralismo compreensivo", ver p. 153 e segs. Para uma crítica a este, ver, e. g., ARATO, 2000, p. 1937 e segs.

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4. De resto, como todo trabalho científico hoje, não se pretende aqui a um tratado final (ou "universal") sobre a matéria, mas um recorte da realidade, que leva em conta o risco da subjetividade (ao invés de pretender à inalcançável objetividade cartesiana), e que por isso pode trabalhar com ela de forma a dar um conteúdo racionalmente aceitável ao presente e que, por fim, tem em mente sua finitude espaço-temporal, haja vista o caráter sempre finito de qualquer trabalho que se pretenda científico.

5. Permanece como a principal forma de controle de constitucionalidade mesmo após a Constituição de 1988, a despeito de vozes em contrário, e.g., MENDES, 1998a, p. 304.

6. Como mostra Juarez Tavares, a ciência jurídica centraliza seu objeto na estabilização social, cujo alcance está subordinado a paradigmas, situados no comportamento (como expressão causal para produção de efeitos sociais) e na configuração dos elementos relacionados ao sujeito responsável (TAVARES, 2002, p. 4).

7. Esta crítica de Savigny foi retirada de comentários feitos por Eduardo ESPÍNOLA e Eduardo ESPÍNOLA FILHO, in: Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. 28, p. 109.

8. Savigny ensinava que interpretar é reproduzir a idéia original da lei e reconsiderar os fatos históricos e o sistema em que a lei está inserida. SAVIGNY, Sistema del Derecho Romano Actual, t. 1., p. 188, apud OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, pp. 21-25.

9. Como bem afirma Habermas, a legitimidade da ordem jurídica advinha da legalidade, isto é, da correta observância das normas que tratavam da produção de outras normas. (HABERMAS, 1998, pp. 271-272).

10. Segundo Habermas, o princípio da integridade possibilita aos indivíduos de uma comunidade se reconhecerem reciprocamente como livres e iguais (tratamento em igual consideração e igual respeito); ademais, é um princípio que deve ser observado não apenas pelos cidadãos, mas também pelos "órganos de produccíon de normas y de administración de justicia". (HABERMAS, 1998, p. 285).

11. Michel Rosenfeld acompanha essa mudança de perspectiva no tratamento que o constitucionalismo dá à "igualdade". Num primeiro estágio, há uma ênfase na correlação entre desigualdade e as diferenças (feudalismo); depois, declara-se a igualdade e a identidade (liberalismo e as grandes declarações de direitos) e somente num terceiro estágio avança-se para incorporar os dois anteriores para redefinir uma igualdade que reconhece as diferenças, sem contudo explorá-las por padrões de dominação ou subordinação. (ROSENFELD, 1995, pp. 1092-1093).

12. Vamos nesse tópico tratar apenas de Kelsen, dado o objetivo deste trabalho. Reconhecemos que é uma redução (por isso vamos, e.g., tratar de Gadamer mais à frente quando falarmos da Teoria do Discurso de Habermas), mas precisamos nos concentrar naqueles autores que, pensamos, vão nos ajudar a melhor observar a realidade da interpretação no controle difuso de constitucionalidade, nem que sua contribuição seja apenas para que critiquemos seu uso desconsiderando mudanças paradigmáticas.

13. E KELSEN, An Introduction to the Problems of Legal Theory, p. 27, apud, CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 33.

14. Como argumenta o Prof. Marcelo, certamente nunca seria possível listar toas as interpretações possíveis, seria necessária uma razão sobre-humana para tanto. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 57).

15. Sobre o "senso de adequabilidade", ver GÜNTHER, 1993 e CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 59. É preciso lembrar, para não sermos injustos com Kelsen ou com os que o precederam, que as críticas que fazemos baseiam-se na compreensão que temos sob um novo paradigma. Logo, ainda que possamos fazer este exercício de crítica (até para apontar o anacronismo de pessoas que hoje querem aplicar aquelas teorias, sem ao menos terem o trabalho de reconstruí-las), não podemos deixar de reconhecer o avanço que cada uma delas representou para sua época, ainda que não supram hoje nossas expectativas.

16. Como bem expressa Habermas: "... a outra face de um Estado Social mais ou menos bem sucedido, é aquela democracia de massas que toma traços de um processo de legitimação orientado administrativamente. A isso corresponde, no plano programático, a resignação — tanto o conformar-se com o escândalo de um destino naturalmente infligido pelo mercado de trabalho quanto a renúncia à democratização da sociedade". (HABERMAS, 1990, p. 106).

17. Por exemplo, por uma reformulação apenas do conceito de "soberania popular", ver HABERMAS, 1990; NEUENSCHWANDER, 1999; CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 79 e segs.; e ainda PRATES, 2000, p. 22. e segs.

18. Tomamos Habermas como centro de nosso estudo pela atualidade com que tem tratado das novas demandas da atual sociedade complexa. De fato, Habermas supera a filosofia tradicional e trabalha com a linguagem como medium de interação social, possibilitando procedimentos que visam à superação da atual crise de legitimidade de nossas instituições. No próximo capítulo, retomaremos alguns de seus conceitos, o que, esperamos, deixará mais claro a razão da escolha daquele autor.

19. Sobre a modernidade como um projeto inacabado, ver HABERMAS, 1999.

20. Com relação à razão prática, a razão comunicativa começa por ter a vantagem de não ficar "atribuida al actor particular [como em Kant] o a un macrosujeto estatal-social [como em Hegel]". Idem, ibidem. Como mostra Giddens, "a racionalidade [em Habermas] presupone la comunicación, porque algo es racional sólo si reúne las condiciones necesarias para forjar una compresión al menos con otra persona". (GIDDENS, 1994, p. 159). E ainda, José L. Aidar Prado, "o social origina-se em Habermas não a partir da soma de consciências monádicas, mas da capacidade lingüística de produzir atos de fala". (PRADO, 1996, p. 21). Nesse sentido, a ênfase passa da semântica para a pragmática.

21. Sobre performactive act e os fins ilocucionários da linguagem, ver, por exemplo, MAGALHÃES, 1997, onde a autora mostra como Austin e Searle trabalham este tema. Austin promove o chamado "giro pragmático", postulando pela primeira vez que "falar é agir", isto é, que pelo ato da linguagem produzimos algo, assumimos compromissos (veja-se p. 105 e segs.). E também ROUANET, 1989, p. 24 e segs.

22. Segundo ele, "apesar de voltado à estabilização da sociedade, o direito positivo tem em sua própria estrutura uma instabilidade intrínseca" (p. 20).

23. Ou, ainda tomando José E. Farias, "é a partir do estabelecimento do princípio da legalidade que surge o moderno problema da legitimidade das normas constitucionais, em função da pergunta clássica: por que obedecer?" (FARIAS, 1978, p. 34).

24. Sobre a relação interna entre Direito e Política, ver HABERMAS, 1998, Capítulos III e IV e CATTONI DE OLIVEIRA, 2000.

25. Observe-se, contudo, que Habermas não cai na mesma tentação iluminista de propor validade universal às normas jurídicas, mas apenas "um procedimento para a validação dessas normas" (ROUANET, 1989, p. 68).

26. Dito de outra forma, "todas as normas válidas precisam atender à condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que presumivelmente resultarão da observância geral destas normas para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitas não coercitivamente por todos os envolvidos" (ROUANET, 1989, p. 27).

27. Assim, segundo a Teoria do Discurso, a formação da vontade depende dos "pressupostos comunicativos que permitem aos melhores argumentos entrarem em ação em várias formas de deliberação, bem como dos procedimentos que asseguram processos justos de negociação" (HABERMAS, 1995, p. 112).

28. Antes ele já havia dito: "la comprensión no es nunca um comportamiento sólo reproductivo, sino que es, a su vez, siempre productivo" (p. 366).

29. E "la pertencia a la tradición en la hermenéutica jurídica no ha de presentarse como se fuera una restricción de su horizonte, sino como una condición de la possibilidad misma de acceder à la compresión" (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, p. 92).

30. E ainda, como este autor expressa: "la historia de una norma jurídica y su jurisprudencia son vías ineludibles en la compresión de la misma. Ningún intérprete puede pretender estar frente ao texto normativo libre de precompresiones, pues ello equivaldría a estar fuera de la historia y a hacer enmudecer a la norma" (p. 88).

31. E, "el juez individual ha de entender básicamente su interpretación constructiva como una empresa común, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudadanos" (p. 295).

32. Ver também, CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 153 e segs.

33. Apresentação feita por Gilmar F. Mendes ao livro de HÄBERLE, 1997, p. 9. Quanto à condição da norma referida antes, Häbele vai defender mais à frente que a norma não é uma "decisão prévia e acabada", há que se levar em conta os que participam da lei na "arena pública" (pp. 30-31).

34. No mesmo sentido, MENDES, 1998b, especialmente p. 458 e segs.

35. Esta tendência pode ser vista nos já citados textos (nota anterior) e também na clara intenção mostrada por Gimar F. Mendes em querer conceber o Supremo Tribunal Federal como uma Corte Constitucional (semelhante inclusive ao Tribunal Constitucional alemão), como se observa de algumas de suas "teses" colocadas ao final do livro, e.g. : "a gradual evolução [?] de um sistema de controle incidente para um modelo no qual a função principal do controle está concentrado no Supremo Tribunal Federal, reforça o caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional, uma vez que ele não apenas detém o monopólio da censura no processo de controle abstrato de atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, como tem a última palavra na decisão das questões constitucionais submetidas ao controle incidental" (MENDES, 1998a, p. 304, grifos nossos).

36. Além da fusão de horizontes, é importante salientar a importância de dois outros conceitos em Gadamer: a "efectualidade histórica" (a consciência histórica se dirige ao efeito dos fatos históricos, acima de olhar os fenômenos em si documentados) e a "distância no tempo" (a idéia inicial do texto não perdura platonicamente, mas, ao contrário, será definida pela situação do intérprete atual) (OSUNA FERNÁNDEZ-LARGO, 1992, pp. 55-59).

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Sobre o autor
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Advogado no Cron - Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Interpretação jurídica no marco do Estado Democrático de Direito:: um estudo a partir do sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3588. Acesso em: 25 dez. 2024.

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