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A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica

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07/04/2017 às 16:31
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4.0 A narrativa jurídica impessoal

A narrativa impessoal, também conhecida por relatório, constitui um dos gêneros textuais da comunidade discursiva jurídica. Diferentemente da sequência tipológica narrativa, nesta forma textual, a própria narrativa constitui um gênero. Embora, ao longo de seu texto, possa-se evidenciar a presença de sequências descritivas e argumentativas, favorecendo-se o desenvolvimento do contar os fatos. 

A narrativa jurídica impessoal “sintetiza todas as fases da lide”, conforme explica Lellis (2006, p. 1637). É uma narrativa sem o compromisso de representar qualquer das partes. Deve apresentar todo e qualquer fato importante para a compreensão da lide ou demanda processual, de forma imparcial.

É chamada de impessoal ou não valorada por tentar abster-se dos atributos e adjetivações próprias que podem caracterizar as partes e os fatos apresentados. Desta forma, tenciona-se a impessoalidade discursiva neste gênero. Embora possa ser questionada a possibilidade de uma forma discursiva ser impessoal – perspectiva que se endossa neste trabalho, uma vez que a própria seleção do que é importante ou não de ser mencionado atesta a pessoalidade da tarefa – ainda assim, este é o propósito desse gênero textual: apresentar/contar os fatos de forma impessoal.

Na narrativa jurídica impessoal, é preciso saber selecionar-se quais os fatos que merecem ser narrados, tendo em vista que nem todos os fatos são importantes para o reconhecimento do direito e acabam, quando elencados no texto, comprometendo a clareza, a objetividade e a lógica da narrativa.

E, se for o caso de a narrativa jurídica não deixar claro os fatos, podendo comprometer a compreensão e até mesmo a interpretação, o juiz ou sujeito competente pode solicitar ao relator que o reescreva, aditando-o para esclarecer pontos obscuros ou  de  difícil  compreensão. E em alguns casos, não atendida à qualidade desejável, ser até anulada.

Pois, como já se propôs, o jurista não lida com os fatos diretamente, mas com as palavras ditas sobre os fatos.

4.1 A estrutura potencial do gênero (EPG) da narrativa jurídica impessoal

A configuração contextual de um gênero textual permite fazer previsões sobre qualquer texto adequado a um determinado contexto, ou seja, qualquer texto que possa ser considerado um exemplo “em potencial” de um gênero específico, de acordo com Motta-Roth & Herbele (2005).

Os traços específicos de um contexto permitem predizer a sequência e a recorrência de certos elementos textuais obrigatórios e opcionais da estrutura potencial do gênero (EPG) e vice-versa. Todavia, uma EPG não é um plano rígido, podendo ocorrer variações. Segundo as autoras mencionadas acima, o principal objetivo da EPG é:

dar conta do leque de opções de estruturas esquemáticas específicas potencialmente disponíveis aos textos de um mesmo gênero (Hasan, 1994, p.145), de tal forma que as propriedades cruciais de um gênero possam ser abstraídas e qualquer exemplar desse gênero possa ser representado (MOTTA-ROTH; HEBERLE, 2005, p. 19). Referência das autoras

Hasan (1989, p.55 apud MOTTA-ROTH; HEBERLE, 2005, p. 18) propõe que dentro de uma EPG essas variações ocorrem dentro de limites de acordo com as seguintes considerações:

  1. Que elementos devem ocorrer em cada exemplar de um determinado gênero? (elementos obrigatórios)
  2. Que elementos podem ocorrer, embora não precisem estar presentes em cada exemplar de um determinado gênero? (elementos opcionais)
  3. Que elementos podem ocorrer mais de uma vez ao longo do texto? (elementos iterativos)
  4. Que elementos têm uma ordem fixa de ocorrência se comparados a outros elementos?
  5. Que elementos têm uma ordem variável de ocorrência se comparados a outros elementos?

Com base nessas proposições sobre EPG e na observação de algumas narrativas jurídicas impessoais, chegou-se ao seguinte esquema textual, que se acredita ser representativo da estrutura desse gênero:

EPG do relatório jurídico ou Narrativa Jurídica imparcial 

Movimento 1: Caracterização/ identificação do fato gerador em ordem cronológica

Passo 1: Quem? Quem são os envolvidos na lide? e/

Passo 2: O quê? Qual o fato gerador do conflito? e/

Passo 3: Quando? Onde e quando os fatos ocorreram? e/

Passo 4: Como? Como se desenvolveu o conflito? e/

Passo 5? Por quê? Por que ocorreu o conflito de interesses? e/ou

Passo 6: Quais as consequências dos fatos narrados? e/ou

 

Movimento 2: Detalhamento do fato gerador/ contextualização do fato

Passo 7: Destaque para detalhes importantes em cronologia linear e/ou

Passo 8: Polifonia: outras partes e/ou, outras provas e/ou, outras testemunhas

 

MOVIMENTO 3: FECHAMENTO

Passo 9: Dar um fecho à narrativa/ em que “pé” as coisas estão?

Além disso, todos os fatos relevantes do caso concreto devem ser narrados no pretérito (firmou, alegou, descobriu...) e na 3ª pessoa (ela, ele, elas, eles). Deve ocorrer, pelo menos em tese, a ausência de opinião, de posicionamento ou de valoração por parte do relator.

O movimento retórico pode ser entendido como o modo como o texto realiza os propósitos comunicativos. No esquema proposto, os três movimentos constituem as partes obrigatórias, os passos que apresentam “e” são obrigatórios, embora possam apresentar variação na ordem, desde que não quebre a cronologia dos fatos, e os que apresentam “e/ou” podem alternados entre si.

Veja-se um exemplo de narrativa jurídica impessoal[5] prototípica que segue todos os movimentos retóricos e também os passos obrigatórios, mas que não apresenta os elementos do passo 8, “testemunhas” e “outras provas”, já que estes são passíveis ou não de compor a EPG da narrativa jurídica impessoal:

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Marcelo e Camila são casados há 10 anos. Em 01 de novembro de 2008, quando Camila digitava um trabalho da faculdade no computador utilizado pelo casal, ficou estarrecida: encontrou uma série de e-mails comprometedores, armazenados pelo marido, na máquina da família.

Descobriu que, no período de 12 de fevereiro de 2008 a 30 de outubro de 2008, seu marido, usando o apelido “homem carente de meia idade”, trocava quase diariamente mensagens de natureza erótica com uma mulher que assinava “cheia de amor pra dar”.

Ao ler as mensagens, constatou que o marido se declarara diversas vezes para a internauta, com quem construía fantasias sexuais e praticava sexo virtual. A situação ficou ainda mais grave, porque, nessas ocasiões, Marcelo fazia comentários jocosos sobre o desempenho sexual de Camila e afirmava que ela seria uma pessoa "fria" na cama.

Por conta de todos esses fatos, Camila se separou de Marcelo. Cerca de quatro meses após a separação, ajuizou ação de reparação por danos morais em face do ex-marido, na qual pediu indenização no valor de 20 mil reais. Em síntese, alegou na Petição Inicial que: a) o ex-marido manteve relacionamento com outra mulher na constância do casamento; b) a traição foi comprovada por meio de e-mails trocados entre o acusado e sua amante; c) a traição foi demonstrada pela troca de fantasias eróticas (sexo virtual) entre os dois; d) precisou passar por tratamento psicológico para superar a dor que sofria; e) foram violados sua honra subjetiva e seu direito à privacidade no casamento.

Em sua defesa, o ex-marido alegou a improcedência do pedido sustentando o seguinte: a) sexo virtual não caracteriza traição; b) houve invasão de privacidade e violação do sigilo das correspondências; c) os e-mails devem ser desconsiderados como prova da infidelidade; d) não difamou a ex-esposa, ao contrário, ela mesma denegria sua imagem ao mostrar as correspondências às outras pessoas.

Em entrevista à imprensa, a autora afirmou que não houve violação de sigilo das correspondências. Para ela, não está caracterizada a invasão de privacidade porque os e-mails estavam gravados no computador de uso da família e os cônjuges compartilhavam a mesma senha de acesso. "Simples arquivos não estão resguardados pelo sigilo conferido às correspondências", concluiu.


Considerações finais:

O estudo dos gêneros textuais, de sua tipologia e das estruturas potenciais do gênero pode levar a um melhoramento na qualidade dos textos produzidos, especialmente, pelos iniciantes na comunidade discursiva jurídica, uma vez que possibilita a percepção dos movimentos retóricos e dos passos que compõem determinado texto.

Tendo em vista que os gêneros textuais servem como “chaves” para o entendimento de como participar das ações da comunidade discursiva, o bom desenvolvimento destes torna a adequação às convenções estabelecidas mais facilitada, e a inserção na comunidade, menos problemática, possibilitando-se o reconhecimento do indivíduo como sendo um operador do direito, de fato.

Além disso, busca-se a fuga aos modelos e fórmulas já preparadas nos manuais de redação forense, que, não raro, propiciam a proliferação de textos com uma linguagem em desuso, farta da condenável prolixidade e do juridiquês, combatido até mesmo pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

A EPG, embora sirva para orientar, não é um engessamento da linguagem, mas uma proposta de evidenciação da estrutura do gênero textual, para que, a partir de seu conhecimento, possa-se elaborar o texto com a qualidade composicional desejável.


Referências bibliográficas:

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2006.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 2003.

HEMAIS, Barbara; BIASI-RODRIGUES, Bernadete. A proposta sociorretórica de John M. Swales para o estudo de gêneros textuais. In: MEURER. J. L., BONINI, Adair., MOTTA-ROTH, Désirée. (Orgs.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p.108-129.

LELLIS, Lélio Maximino. A subjetividade nos acórdãos judiciais e seus efeitos. IEEL. 2006. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_344.pdf. Acesso em: 30 ago. 2011.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Definições de tipo e gênero textual. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola, 2010. P.22-31.

MEURER, José Luiz; MOTTA ROTH, Désirée. Gêneros textuais e práticas discursivas. São Paulo: EDUSC, 2002.

MOTTA-ROTH, Désirée. HEBERLE, Viviane Maria. O conceito de “estrutura potencial de gênero” em Ruqayia Hasan. In: MEURER. J. L., BONINI, Adair., MOTTA-ROTH, Désirée. (Orgs.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. P. 12-28.

PIMENTA, Viviane Raposo. Textos forenses: um estudo de seus gêneros textuais e sua relevância para o gênero “sentença”. 207f. (Dissertação) – Programa de Pós-graduação em Linguística do Instituto de Letras e Linguística da UFU. 2007.

SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Análise de gênero textual: concepção sócio-retórica. Maceió: EDUFAL, 2005. 

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Sobre a autora
Magna Campos

Professora de Técnica de Redação Jurídica; Mestre em Letras: Discurso e Representação Social

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Magna. A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5028, 7 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35940. Acesso em: 26 abr. 2024.

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