SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O Processo Constitucional no Estado Democrático de Direito; 3. O mito do Poder 4. As formas de Poder. 5. A Biopolítica como fator de implementação de Direitos Fundamentais 6. Considerações finais ; 6. Referências.
SUMMARY: 1. Introduction 2. The Constitutional Process in a democratic state 3. The Power of Myth 4. Forms of Power 5. Biopolitics as The Fundamental Rights implementation factor 6. Final remarks 7. References.
RESUMO:Com a institucionalização do modelo de Estado Democrático de Direito, surgido com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a estrutura constitucionalizada determina que sejam observados e assegurados aplicabilidade das garantias constitucionais e direitos fundamentais. Nos Estados liberal e social de Direito, a crença de uma nação democrática brasileira que priorizava a observância de direitos fundamentais não passava, na realidade, de uma farsa. No Estado Democrático, essa farsa teve continuação, conquanto a atual Constituição se declarar cidadã, haja vista os cidadãos estarem a um constante defender-se de iniciativas ilegais, autoritárias e burocráticas efetivadas por parte do aparato do Estado constituído. Propõe-se demonstrar que a interferência do poder, em suas várias formas, em “roupagens” de dominação legal, tradicional ou carismática, conduz à impossibilidade, no caso brasileiro, de instalar uma discussão a sua legitimidade. Entretanto, pela via da processualidade democrática, por um Devido Processo Constitucionalizante, a sociedade legitimada pode-se encontrar amparada na fiscalidade incessante pela busca de seus direitos fundamentais, chamando o Estado à responsabilidade pelo cumprimento da tutela constitucional no Estado democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Processo. Poder. Estado Democrático. Processualidade Constitucionalizada. Biopolítica.
ABSTRACT:With the institutionalization of the democratic state model, emerged with the enactment of the 1988 Federal Constitution, the constitutionalized structure requires to be observed and guaranteed the enforcement of constitutional guarantees and fundamental rights. In the liberal and social state of law, the belief of a Brazilian democratic nation which has prioritized the observance of fundamental rights resembles actually is was just a farce. In a democratic state, this farce had continued the idea, although that the current Constitution to be declared as a “Citizen Constitution”, considering that the citizens are at a constant state of defending themselves against illegal, authoritarian and bureaucratic initiatives, implemented by the apparatus of the constituted State. For that reason is proposed to demonstrate that the interference of power, in its various forms and in a “guise” of legal, traditional or charismatic rule, leads to the impossibility of promoting in Brazil, a discussion of its legitimacy, indeed. However, by the path of democratic specific legal procedures for a Due Constitutionalizing Process, the legitimated society may be found iteself supported by the incessant taxation by the pursuit of their fundamental rights, calling the state to the responsibility for compliance with the constitutional protection of the democratic rule of law.
KEYWORDS: Process. Power. Democratic state. Processuality constitutionalized. Biopolitics.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe alterações significativas para a democracia brasileira. Com a institucionalização do modelo de Estado Democrático de Direito, que se entende ser uma consequência da complexidade e uma legítima demanda da modernidade, os parâmetros de tratamento dos direitos e garantias dos cidadãos foram modificados. O Estado passa a reconhecer, em um ambiente jurídico onde sedimenta-se cada vez mais a supremacia da Constituição, a necessidade da efetivação dos direitos fundamentais.
Há um novo paradigma constitucional regendo o país, qual seja, o Estado Democrático de Direito. Entretanto, “em prol de um modelo de Estado-Segurança vinculado ao sistema de common law que, adotando o critério da livre convicção (que não é hermenêutico), confere ao julgador uma interpretação axiológica do direito calcada em juízos de equidade, bom senso, sensibilidade,...”[2], manteve a mesma estrutura de poder nas legislações infraconstitucionais, qual seja, o poder do julgador de dizer o direito sem a preocupação da observância dos princípios institutivos constitucionais que legitimam os provimentos jurisdicionais, vale dizer, princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia, em um modelo de constitucionalidade democrática que “(...) ainda é manejado pela hermenêutica do status necessitas em que o judiciário e o executivo criam, por suas decisões, escopos metajurídicos a pretexto das lacunas da lei supostamente impeditivas de realização de uma justiça social rápida, valendo-se da dogmática analítica (compulsoriedade das decisões) pela proibição do non-liquet...”[3]. E mais, o legislador parece que desconhece o que acontecera na Assembléia Nacional Constituinte Brasileira, ao que se refere à institucionalização de um Estado que transformou o Direito em Democrático, haja vista que ele, o legislador, “ainda reza na cartilha mitológica da Paideia grega de que estamos juntos (humanamente agrupados) pelo magnetismo do bios-polytikos ou de uma sociedade civil pressuposta (Rousseau)”[4].
No direito brasileiro, conquanto as novas legislações, em âmbito constitucional e infraconstitucional, estarem sendo promulgadas e sancionadas no sentido de combater o subjetivismo do julgador, o que permitiria uma construção do provimento jurisdicional de forma democrática, com a participação dos que sofrerão as consequências da decisão jurisdicional, o magistrado ainda pratica o que de forma solitária entende por aplicar a “justiça”, cuja expressão comporta uma carga axiológica que pode ser estrategicamente manipulada segundo a ideologia dominante em uma sociedade. A interferência do poder, em sua capacidade de decisão de uma pessoa com primazia sobre as outras, conduz à impossibilidade de se construir uma sociedade constitucionalmente democrática. O poder primeiramente se apresenta como a capacidade de impor uma vontade em uma relação social. Mas o poder “permanece algo indeterminado, difícil de ser definido com precisão. Quando se fala em poder, não se tem uma imagem acurada do que a palavra designa. Seu significado não se estabelece com exatidão, e vem auxiliado por outros termos, como ‘dominação’, ‘força’, ‘superioridade’, ‘influência’, ‘soberania’, ‘império’”[5].
O presente artigo tem como objetivo, sem a pretensão de sua originalidade nestas poucas linhas, muito menos do esgotamento do tema, de debater o processo na constitucionalidade democrática como contrapondo ao poder, retirando deste a carga ideológica classicamente aceita, mas na contemporaneidade desprezada de um “poder – que o direito atual procura retirar do indivíduo em todas as áreas de atuação – se manifesta realmente como ameaça e, mesmo sendo subjugado, ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o direito”[6]. A consequência poderá ser uma nova perspectiva sobre a autonomia do cidadão em uma construção jurisdicional com interferência concreta em uma decisão final, portanto, debater, sob um ponto de vista de autonomia do conhecimento, processo e o mito do poder no contexto democrático como fatores de biopolítica, entendendo esta como “a crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder”[7].
2 O PROCESSO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A concepção de direito no Estado Constitucional Democratizado é totalmente diferente da que lhe foi atribuída pelos Estados liberal e Social de direito. Nesses, o direito nada mais era do que a lei, ou seja, do que a norma geral a ser aplicada aos casos concretos. No estado Constitucional não mais prevalece o princípio da supremacia da lei. Esta, nos dias atuais, submete-se às normas constitucionais de justiça e pelos direitos fundamentais. A compreensão e aplicação da lei devem estar de acordo com a Constituição, sendo que ao magistrado, encontrando mais de uma solução a partir dos critérios clássicos de interpretação, é imperioso escolher o meio pelo qual possa, em uma construção isonômica com as partes (cidadãos) do seu ato estatal, sem a qual não há amparo de legitimidade, outorgar a maior efetividade à Constituição. Entretanto, em uma provimento jurisdicional, em sua totalidade, “O que se testemunha é o ativismo-garantismo de um direito homologatório de realidades políticas miticamente implantadas em que decisores (autoridades) já pertencem a uma sociedade pressuposta antes mesmo de se considerarem integrantes de um projeto de uma Sociedade Democrática de Direito Constitucionalizado”[8].
O dever estatal, cujo direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre a jurisdição, incide também na estruturação legal do processo. Sendo a jurisdição um instrumento do processo, e não o contrário, a processualidade democrática é que legitima a jurisdicionalidade constitucional. A atividade-dever jurisdicional só pode ser realizada constitucionalmente, e, portanto, fundamentada, com uma construção dialógica de formação de provimentos jurisdicionais e, sobretudo, com o dever da aplicação dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito. Este “apresenta-se como uma nova síntese que integra direitos sociais e garantias na gama dos direitos fundamentais. Impõem-se a distinção entre o público e o privado. A sociedade passa a fomentar a construção do direito positivo e de sua interpretação. Tem-se, assim, a democracia participativa”[9]. É a concretização de um processo constitucionalmente democratizado.
3 O MITO DO PODER
O poder sempre constituiu uma preocupação para os estudiosos das várias ciências, sobretudo nos campos do direito, filosofia e sociologia. Houve uma proliferação de teorias sobre sua natureza e legitimidade, analisando-o a partir do pressuposto das forças dominantes, sejam estas políticas, econômicas ou sociais. O poder é exercido de várias formas, e não é uma força que opera de maneira verticalizada ou que tem sua origem do centro para as extremidades. Se for entendido dessa forma, essa força dominante não se mostra capaz de explicar certos fatos sociais. O poder gera a “dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato, pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece”[10]. É o poder cujo Direito associa o subjetivismo à ideia de arbitrariedade do julgador, bem como a “ligação entre poder e decisão por seqüelas históricas consolidou, na modernidade, uma compreensão distorcida do julgar em que vontade e inteligência freqüentam, por ensino de muitos, a mesma sede, que é a mente predestinada do sábio-julgador”[11]. O poder possui um caráter nebuloso envolto em uma mística e mítica, tal como “o poder que Weber havia definido como ‘carismático’ é ligado ao conceito de auctoritas e elaborado em uma doutrina do Führertum como poder original e pessoal de um chefe”[12], como encarnado em Hitler.
O homem, em sua breve jornada pela vida, tem dois desejos principais: glória e poder. E a mais fundamental é a ânsia pelo segundo desejo, porque jamais será saciada. O poder é companheiro indissociável do ser humano com suas maiores aspirações, quais sejam riqueza e prestígio. É o que objetiva como maior desejo, porque a ambição pelo poder é a mais antiga. Remonta na vida do ser humano há milhares de anos, estando presente nas discussões teocêntricas (Deus como ponto de conveniência para tudo) e antropocêntrico (o homem no centro do universo). Portanto, encontra-se “encravado” na “alma” e no consciente de tal forma que eliminá-lo seria eliminar as formas como as sociedades se organizaram e continuam a sê-lo. O poder possui a característica e a capacidade de criar saberes. E para seu exercício, é imprescindível a existência de um saber, já que “O poder não pára de questionar, de nos questionar; não pára de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa”[13]. O poder exercita-se de diferentes técnicas pelos mais variados meios em uma determinada época. As tecnologias coexistem e não se identificam sempre. Ele, o poder, atrai e seduz. Pode perverter ou enobrecer o homem. O poder fascina e deslumbra, na medida em que tem ao seu alcance meios de se impor e transformar algo ou a existência de alguém. O poder, em suas outras relações, é encontrado funcionando de formas aparentemente distintas. Conforme Gerard Lebrun:
(...) o poder não é um ser, ‘alguma coisa que se adquire, se toma ou se divide, algo que se deixa escapar’. É o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda a parte na espessura do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial, poder do contramestre, poder do psicanalista, poder do padre etc.etc.).[14]
Os mecanismos de poder têm que ser questionados. O mito do poder tem que ser “quebrado”. Não podemos mais aceitar de que “ao homem todas as coisas parecem naturais, nas quais é criado e nas quais se habitua, mas isso só o torna ingênuo, naquilo que a natureza simples e inalterada o chama; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume”[15]. O povo não é objeto de dominação. O povo é sujeito constitucional. O processo, por uma “teoria do discurso jurídico no Estado Democrático de Direito”[16] é o meio, senão o único, capaz de tirar do poder sua pretensa concepção de legitimada juridicamente.
4 AS FORMA DE PODER
Um dos desafios impostos é abordar a questão do poder na tentativa de defini-lo com certa exatidão. Não seria uma tarefa fácil, haja vista que para isso se tem que delimitar seu sentido, indicar seus aspectos fundamentais, fazer uma demarcação precisa do que é poder e, sobretudo, o que não deve ser considerado como semelhante. Uma das definições dentro de um contexto de poder político e funções do Estado, é que “O poder pode ser compreendido como relação sócio-psicológica, fundada no efeito recíproco das ações daqueles que o detêm e o exercem e das ações de seus destinatários, ou seja, daqueles frente aos quais o poder é exercido”[17]. Cotidianamente, depara-se com várias formas nas quais há a palavra poder, quais sejam: o poder do pai sobre o filho; o poder do dinheiro; o poder do patrão, o poder da justiça; o poder do juiz; o poder do Estado; os Três Poderes (executivo, legislativo e judiciário). Nesse último caso, e não podemos deixar de nos manifestar, alinhamo-nos com o pensamento do professor Brêtas, quando afirma:
(...) Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Tal teoria é atribuída com certa deturpação de seu enfoque original a Montesquieu, o qual, por sua vez, inspirou-se nas idéias de Locke. Porém, de qualquer forma, embora os doutrinadores, sobretudo os processualistas, em maioria, não percebam, a esclerosada e deturpada teoria da tripartição dos poderes restou revisada por importantes manifestações doutrinárias produzidas nos últimos cem anos e amplamente criticada, por sugerir a idéia de fragmentação ou divisão do poder e de fracionamento da soberania do Estado. Tal aspecto suscitou a moderna posição doutrinária tendente à substituição da expressão separação dos poderes do Estado pela locução separação das funções do Estado.[18]
O poder, em suas várias manifestações, gera e produz a coação física, psicológica e econômica. E esta, a coação, é o elemento principal para que se possa entender esse fenômeno, qual seja, o poder, sobretudo quanto aos efeitos psicológicos sobre quem ele é exercido. O poder só pode ser explicado no contexto social, no qual se evidencia uma de suas formas, ou seja, a sociabilidade. Está se encontra presente na expressão cultural, bem como no inevitável contato e interação entre os homens. Ele não adquire a forma de uma coisa, mas manifesta-se em uma relação, haja vista que “o poder não é, justamente, uma substância, um fluido, algo que decorreria disto ou daquilo, mas simplesmente na medida em que se admita que o poder é um conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou função e tema manter (...) justamente o poder”[19]. Ele “não pode ser armazenado para ser utilizado numa emergência, como é o caso dos instrumentos de violência, pois tal potencial de poder só existe quando se realiza na ação”[20]. O poder é um elemento que constitui toda forma de organização social. Ele sempre esteve nas formas de organização social do homem, e este sempre viveu em sua sombra.