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A compensação dos débitos fiscais no Novo Código Civil

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01/01/2003 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução 2. Estrutura normativa da compensação 2.1 Constituição Federal. 2.2 Código Civil. 2.3 Código Tributário Nacional. 2.4 Lei 8.383, de 30 de dezembro de 1991. 2.5 Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. 3. A compensação das dívidas fiscais no Novo Código Civil 3.1 A vigência da legislação tributária 3.2 A (in)compatibilidade do art. 374 do Novo Código Civil face à legislação tributária 3.2.1 Art. 374 do Novo Código Civil X Art. 170 do Código Tributário Nacional 3.2.2 Art. 374 do Novo Código Civil X Lei 8.383/91 3.2.3 Art. 374 do Novo Código Civil X Lei 8.212/91 4 Conclusão


1.Introdução

É assente, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, que o instituto da compensação, em matéria tributária, constitui tema dos mais fecundos. Incrementando este quadro, através da Lei n. 10.406, publicada no Diário Oficial da União no dia 11 de janeiro de 2002, foi instituído o denominado "Novo Código Civil". Com efeito, diante das proximidades da data de vigência da lei em apreço, calha examinar suas disposições acerca da compensação.

O trabalho em comento visa analisar o instituto da compensação pelo cotejo entre o preceituado pelo "Novo Código Civil" e o que ditam as regras vigentes atualmente. Para tanto, o texto é dividido em duas partes: a primeira parte foi destinada a um breve retrospecto das bases legais da compensação, procurando delinear a regulamentação atual do instituto. À segunda parte foi reservado o exame propriamente dito da vigência normativa das regras da compensação, estabelecidas no Novo Código Civil, face às regras já existentes.

Em síntese, pode-se afirmar que a escolha do tema e o propósito deste trabalho decorrem da observação de como tem sido tratado o instituto da compensação no âmbito tributário e, em especial, de como as disposições legais têm afetado os milhares de contribuintes que buscam reaver o que indevidamente recolheram aos cofres públicos.


2. Estrutura normativa da compensação

No escopo de melhor localizar o leitor, imprescindível é, primeiramente, proceder a uma análise cronológica das disposições legais a respeito do instituto da compensação, conforme o que segue.

2.1 Constituição Federal. Fruto da oposição entre a nobreza e o soberano absolutista, o grande mérito da Magna Carta do Rei João Sem Terra, outorgada em 1215, foi justamente substituir a força real pela força da lei. Dessa forma, firmou-se a idéia de que a estrita vinculação do rei às leis elaboradas pelo parlamento significaria a própria garantia dos direitos individuais [1]. Esse princípio vive até hoje, espraiado pelos ordenamentos jurídicos de todo o mundo.

Como expressão da soberania do Estado, compulsoriamente são retiradas da propriedade dos indivíduos determinadas parcelas, consistentes em prestações pecuniárias, destinadas a subsidiar as atividades estatais. No entanto, esse "poder" encontra limites, sobretudo na Constituição. Em outras palavras, na hipótese de tais prestações pecuniárias não encontrarem total respaldo na Ordem Constitucional, uma gama de direitos e princípios será afetada, tais como o direito de propriedade (art. 5º, XXII); o princípio da legalidade (art. 5º, II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei e art. 150, I - nenhum tributo será exigido sem lei que o estabeleça) e o princípio da moralidade (art. 37, caput).

Assim, em que pese a compensação não encontrar regra explícita no Diploma Maior, não persistem dúvidas acerca da repulsa a todo e qualquer tipo de exigência fiscal sem o resguardo da lei e da imperatividade da devolução de tais valores. Complementando, observação das mais pertinentes é a de MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES [2]: "é necessário que sempre que houver jurisprudência pacificada sobre a inconstitucionalidade da exigência de um determinado tributo, à Administração cumpre expedir normas que possibilitem ao contribuinte a imediata devolução, ou, na impossibilidade de isso ocorrer, que nas ações de repetição do indébito, não crie obstáculos desnecessários para o contribuinte".

Considerando que a compensação importa na transferência para o patrimônio do contribuinte das quantias que tenham sido recolhidas ao Fisco, confirma-se o exposto linhas atrás. Melhor dizendo, pela compensação o contribuinte retoma o que era seu ("restabelecendo" o seu direito de propriedade) e que tinha sido exigido sem a observância do postulado da legalidade. Destarte, inobstante a ausência de previsão expressa a respeito da compensação, são salientes os pilares deste instituto na Constituição Federal.

2.2 Código Civil. Deitando-se os olhos sobre a Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, o Código Civil em vigor, vê-se, em seu art. 1.009: "se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem".

Sustentada, sobretudo, pelos princípios da utilidade e economia, a compensação, ao menos no que toca ao seu conceito, não enseja maiores discussões. A palavra denuncia sua essência: derivado do latim compensatio – de compensare (contrapesar, contrabalançar) -, a compensação tem o mérito de, verificadas as prestações devedoras de um lado e as prestações devedoras de outro, promover o balanceamento dos respectivos créditos havidos por cada um dos titulares, reciprocamente credores e devedores [3].

No entanto, em se tratando de débitos do cidadão para com o Estado, o Diploma Substantivo, através do art. 1.017, é enfático: "As dívidas fiscais da União, dos Estados e dos Municípios também não podem ser objeto de compensação, exceto nos casos de encontro entre a administração e o devedor, autorizados nas leis e regulamentos da Fazenda".

Citando CARVALHO SANTOS, GABRIEL LACERDA TROIANELLI [4] argumenta que o art. 1.017 não objetiva barrar toda e qualquer compensação de dívidas fiscais. Na verdade, estabelece a vedação ao contribuinte de compensar suas dívidas tributárias com créditos decorrentes do pagamento de tributo indevido, embora não vede a compensação promovida pela Fazenda, quando esta possui crédito fundado em dívida fiscal, contra o contribuinte, mas possui, em face deste, débito de outra natureza. Nota-se a iniquidade da hipótese, em um tempo em que prevalecia a regra do solve et repete.

2.3 Código Tributário Nacional. Pelas mãos da Lei n. 5172, publicada no Diário Oficial da União no dia 27 de outubro 1966, conhecida como Código Tributário Nacional, a compensação foi trazida, textualmente, ao âmbito do direito tributário. Em primeira análise, como causa de extinção do crédito tributário, consoante o prescrito pelo inciso II, do art. 156, incumbindo à lei dispor quanto aos efeitos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior verificação da irregularidade da sua constituição [5].

Muitos juristas encontram aqui o diferencial da compensação em matéria tributária. Conforme o consignado na fundamentação do Recurso Especial n. 143.201/SP [6], o pagamento ou a compensação, como hipóteses de extinção do crédito tributário, só serão efetivamente considerados ou perfectibilizados por meio da homologação formal do procedimento ou depois de decorrido o prazo legal para a constituição do crédito tributário ou de diferenças deste.

Entretanto, a compensação foi tratada de modo mais específico, no referido Diploma, através do art. 170:

"Art. 170 - A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública. Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento". A respeito, EDUARDO MARCIAL FERREIRA JARDIM [7] argumenta que a cláusula que remete à lei o meio idôneo para autorizar a compensação, em que pese ser correta, é inócua, na medida em que repete o já prescrito pelo princípio da estrita legalidade, quintessência em matéria tributária, bem como o já estabelecido no art. 1.017 do Código Civil, cujo substrato condiciona a compensação à expressa autorização legal. E acresce: "O asserto deflui do primado da vinculabilidade da tributação, implícito no sistema constitucional e reproduzido com explicitude na cláusula derradeira do art. 3º do Código Tributário Nacional". 2.4 Lei 8.383, de 30 de dezembro de 1991. Afora a chamada "compensação de ofício", instituída pelo Decreto–lei n. 2.287, de 23 de julho de 1986 [8], o Código Tributário Nacional previu a compensação como hipótese de extinção do crédito tributário (art. 156, I), incumbindo, todavia, à lei dispor a respeito das respectivas condições (art. 170). Pelo entendimento da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça [9], no âmbito federal, essa regulamentação só veio a ocorrer vinte cinco anos depois, pelo art. 66, da Lei nº 8.383, de 1991:

Art. 66 - Nos casos de pagamento indevido ou a maior de tributos, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais, mesmo quando resultante de reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória, o contribuinte poderá efetuar a compensação desse valor no recolhimento de importância correspondente a período subseqüente.

§ 1º - A compensação só poderá ser efetuada entre tributos, contribuições e receitas da mesma espécie.

§ 2º - É facultado ao contribuinte optar pelo pedido de restituição.

§ 3º - A compensação ou restituição será efetuada pelo valor do tributo ou contribuição ou receita corrigido monetariamente com base na variação da UFIR.

§ 4º - As Secretarias da Receita Federal e do Patrimônio da União e o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS expedirão as instruções necessárias ao cumprimento do disposto neste artigo".

Abrem-se parênteses para consignar que a redação original do dispositivo em comento sofreu algumas alterações. Primeiro, pela Lei n. 9.069 de 29 de junho de 1995, que inseriu as receitas patrimoniais dentre aqueles créditos passíveis de compensação; a seguir, pela Lei n. 9.250, de 26 de dezembro de 1995, passou-se a exigir que a compensação fosse efetuada somente entre créditos da mesma espécie e destinação constitucional; por fim, a dita exigência foi suprimida pela Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, resultando, enfim, o texto em epígrafe.

2.5 Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Em consonância com o disposto na Lei n. 9.032, de 28 de abril de 1995, o direito do contribuinte à compensação do que indevidamente pagou a título de contribuição previdenciária foi restringido a vinte e cinco por cento do valor a ser recolhido em cada competência, percentual que foi aumentado, através da Lei n. 9.129, de 20 de novembro de 1995, passando a trinta por cento.

Assim, com um breve elenco da legislação que versa sobre a compensação, no âmbito tributário, encerramos a primeira parte do trabalho, partindo para a análise do impacto causado pelo art. 374 da Lei n. 10.406, de 2002, no sistema tributário.


3. A compensação das dívidas fiscais no Novo Código Civil

A Lei n. 10.406, publicada no Diário Oficial da União no dia 11 de janeiro de 2002 inseriu, em nosso ordenamento, o denominado "Novo Código Civil". Sobre a compensação, nesse trabalho referida, versa o art. 374:

"A matéria da compensação, no que concerne às dívidas fiscais e parafiscais, é regida pelo disposto neste capítulo".

O presente capítulo tem o escopo de confrontar o disposto no art. 374 com a legislação vigente, reguladora da compensação, no âmbito tributário. Com isso, busca-se investigar a existência de incompatibilidades entre as regras em vigor e as que terão vigência, a partir de janeiro de 2003, concernentes à compensação das dívidas fiscais.

3.1 A vigência da legislação tributária

O art. 101 do Código Tributário Nacional estabelece que "a vigência, no espaço e no tempo, da legislação tributária, rege-se pelas disposições legais aplicáveis às normas jurídicas em geral, ressalvado o previsto neste capítulo". Os doutrinadores concordam sobre a dispensabilidade do preconizado pelo art. 101. Para VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA [10], "a legislação tributária é legislação tanto quanto qualquer outra que discipline assuntos que digam com coisas diversas". Assim, insta voltar os olhos para a Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942, mais especificamente, para seu art. 2º:

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"Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou a revogue.

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência".

Uma lei vige, consoante a conceituação dada por DE PLÁCIDO E SILVA [11], enquanto se mantém em voga, apta a ser efetivamente aplicada aos casos sob seu regime. Em virtude do princípio da continuidade, acolhido no caput do art. 2º, salvo destinada à vigência temporária, a lei persiste e permanece até o surgimento de força contrária a sua vigência. E essa força só pode decorrer de outra lei. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA [12] esclarece que "pelo princípio da continuidade, a lei somente perde a eficácia em razão de uma força contrária à sua vigência. E tal força é a revogação, consistente na votação de outra lei, com a força de fulminar a sua obrigatoriedade".

A revogação poderá ser expressa (direta) ou tácita (indireta). Essa classificação advém do próprio art. 2º, em seu § 1º, de modo que a revogação é expressa quando a norma revogadora declara qual lei deverá ser extinta, seja em todos os seus dispositivos, seja em alguns de seus artigos. No que tange à revogação tácita, CAIO MARIO [13] acentua que "o princípio cardeal em torno da revogação tácita é o da incompatibilidade". E essa incompatibilidade, segundo o autor, pode ser oriunda da contrariedade entre o previsto na lei nova e na lei velha ou pode resultar da normação geral instituída, quando a lei nova passa a regular inteiramente a matéria versada na lei velha.

Note-se que o disposto no art. 2º respalda o pensamento de NORBERTO BOBBIO [14] a respeito: "diz-se que um ordenamento jurídico constituiu um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis". Nesse diapasão, quando duas normas que pertençam ao mesmo ordenamento e tenham o mesmo âmbito de validade são incompatíveis, está-se diante de uma antinomia jurídica.

Por fim, revela-se pertinente a observação de MARIA HELENA DINIZ [15], para quem, "em razão da impossibilidade do legislador conhecer todas as normas que existem no ordenamento jurídico, é plausível a edição de normas antinômicas, de sorte que a antinomia, diante da dinamicidade do direito, poderá ser encarada pelo jurista como decorrência da própria estrutura do sistema jurídico, que, além de dinâmico, é aberto e prospectivo".

Destina-se ao próximo tópico, portanto, a investigação concernente à existência de antinomia jurídica, provocada pela regra do art. 374 do Novo Código Civil.

3.2 A (in)compatibilidade do art. 374 do Novo Código Civil face à legislação tributária

Imperativo é que sejam solucionadas essas antinomias, em primeira instância, para a manutenção da própria integridade do sistema e, última instância, é necessário que o sujeito, para o qual a norma é dirigida, possa cumprir a determinação legal sem se deparar com proibições ou imposições que se destruam mutuamente [16].

Seguindo a lição de NORBERTO BOBBIO [17], a antinomia caracteriza-se como a situação na qual são colocadas em existência duas normas, cujos mandamentos excluem-se mutuamente. Mas não é só, pois para que a antinomia exista impõe-se que as duas normas pertençam ao mesmo ordenamento e que tenham o mesmo âmbito de validade. Partindo dessas premissas, o encontro de duas normas que não podem ser simultaneamente aplicadas implica a eliminação de uma das duas. MARIA HELENA DINIZ [18] assevera que a solução da antinomia aparente – aquela que é passível de solução – envolve critérios constantes de normas integrantes do próprio ordenamento jurídico. Entende a autora que, inobstante estarem muito próximos das presunções, os critérios hierárquico, cronológico e da especialidade são critérios normativos, princípios jurídico-positivos, explícitos ou implícitos na lei.

Passa-se, em vista do anotado, ao exame pontual do art. 374, em epígrafe.

3.2.1 Art. 374 do Novo Código Civil X Art. 170 do Código Tributário Nacional

Por força do inciso II do art. 146 da Carta Magna, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários. Em se tratando de compensação, o mandamento constitucional é amparado pelos arts. 156 e 170 do Código Tributário Nacional, Diploma erigido ao patamar de legislação complementar.

É comumente falado que o instituto da compensação é, em essência, oriundo do direito privado e que, nos termos do Código Civil, a compensação não se aplica ao Direito Tributário. Por outro lado, SÍLVIO RODRIGUES [19] assinala que a compensação pode articular-se sobre dois sistemas: no primeiro, a compensação opera automaticamente, desde que se encontrem presentes os requisitos necessários para sua efetivação; no segundo, a efetivação da compensação pode ser condicionada à manifestação da vontade das partes. Com efeito, a primeira é chamada de compensação legal e a segunda, compensação convencional. Para o autor, a opção do Código Civil foi pelo primeiro sistema, a compensação legal, na medida em que o art. 1.009 estabelece que as obrigações em causa extinguem-se até onde se compensarem, não condicionando tal extinção a qualquer manifestação de vontade das partes [20].

Sob o império do princípio da legalidade, o direito tributário não poderia acolher a compensação se a esta não encontrasse previsão legal em seu sistema. De fato, assim o foi, na esteira dos arts. acima registrados. Portanto, afirmar que o instituto da compensação é derivado do direito privado emerge como aspecto secundário e, até mesmo, irrelevante, em face das disposições legais já constantes no que poderíamos chamar de legislação tributária.

Com o Novo Código Civil a compensação das "dívidas fiscais e parafiscais" passou a ser regulada, especificamente, pelo constante no Diploma Substantivo. A nosso ver, mesmo sendo reconhecida alguma antinomia entre o inscrito no art. 170 e o art. 374, esta queda diante do critério hierárquico.

MARIA HELENA DINIZ [21] acentua que "o critério hierárquico (lex superior derogat legi inferiori) é baseado na superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra". A superioridade, no caso do art. 170, é conferida pela Constituição Federal, ao permitir unicamente a esse tipo de norma versar sobre extinção do crédito tributário. Logo, em respeito ao preconizado pela Carta Magna, há que prevalecer o estatuído no art. 170.

Analisando essa questão, GABRIEL LACERDA TROIANELLI [22] ainda oferece outra observação. Para o doutrinador, na medida em que o Código Tributário Nacional delegou aos diversos legisladores ordinários - federal, estadual e municipal -, a função de dispor sobre a compensação em matéria tributária, cada um desses entes tem ampla liberdade para tanto, desde que não contrarie as regras gerais contidas no art. 170. Sendo a instituição do Novo Código Civil competência privativa da União, tão logo entre em vigor, o artigo 374 exercerá, para os tributos federais, o papel previsto no art. 170. A propósito, foi aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, entre 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro RUY ROSADO, do Superior Tribunal de Justiça, o Enunciado n. 19 - Art. 374: a matéria da compensação, no que concerne às dívidas fiscais e parafiscais de Estados, Distrito Federal e Municípios, não é regida pelo art. 374 do Código Civil.

Em conclusão, analisando-se mais detidamente o art. 170 do Código Tributário Nacional, nota-se que o seu teor possui uma amplitude considerável. De fato, a Constituição deixou para a lei complementar instituir as normas gerais de direito tributário e, no caso, foi cumprido o mister.

3.2.2 Art. 374 do Novo Código Civil X Lei 8.383/91

Interessa saber é que o instituto da compensação só encontrará guarida no sistema tributário se estiver previsto em lei. Nesse sentido, ao menos formalmente, as regras em liça prestam-se a esse mister, acrescentando-se que ambas estão no mesmo "nível hierárquico", leis ordinárias que são. Nessa esteira, qualquer solução de antinomia não poderá valer-se do critério hierárquico, nos termos do explicitado anteriormente.

A incompatibilidade entre uma regra e outra pode advir, como já consignado, da divergência no tratamento da mesma matéria ou, ainda, da regulação total pela lei nova. Logo, à primeira vista, dispondo o art. 374 que "a matéria da compensação, no que concerne às dívidas fiscais e parafiscais, é regida pelo disposto neste capítulo" conclui-se que, realmente, todas as outras disposições a respeito foram revogadas, vez que o art. 374 trouxe para si a regulamentação de toda a matéria. Ao contrário do art. 1017 do Código Civil em vigor, que veda a compensação de dívidas fiscais, salvo se autorizada nas leis e regulamentos da Fazenda, o art. 374 centra, no capítulo do Diploma Substantivo destinado à compensação, a regulação do instituto, em matéria tributária.

Visto por outro ângulo, é do magistério de HANS KELSEN [23] que, "se se tratar de normas gerais estabelecidas pelo mesmo órgão em diferentes ocasiões, a validade de norma editada em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz". É o que preconiza o critério cronológico para solução das antinomias. No entanto, a utilização desse critério imprescinde que as duas normas em cotejo sejam normas gerais. Logo, cumpre saber se o art. 374 encerra regra especial ou regra geral. Mais uma vez recorremos aos ensinamentos de MARIA HELENA DINIZ [24]:

"Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também esteja previsto na geral".

Lei especial, para NORBERTO BOBBIO [25], "é aquela que anula uma lei mais geral ou que subtrai de uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)". Ocorre que o art. 66 limita a compensação aos casos de pagamento indevido de tributo, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais e, além disso, autoriza o contribuinte a efetuá-la somente entre receitas da mesma espécie. Com isso, certamente tolhe o direito do contribuinte de compensar outros créditos que por ventura tenha com o Fisco e, ainda, restringe a efetivação da compensação com receitas da mesma espécie.

Sob as luzes da conceituação acima, a conclusão é que o art. 66 da Lei n. 8.383/91 encerra regra especial, ao passo que o art. 374, por ser mais amplo, a regra geral. E, assim sendo, pelo princípio da especialidade, as limitações impostas pelo art. 66 estariam em pleno vigor.

Entretanto, há um ponto a ser considerado, oriundo do que dita o § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, ou seja, a lei posterior revoga a anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Nesse sentido, PAULO DE LACERDA [26] explica que, "se a nova norma vier a regular diversa e inteiramente a matéria regida pela anterior, esta poderá ser tida como revogada, seja geral ou especial, pois haverá aniquilamento total das leis reguladoras da matéria, sem distinguir entre gerais e especiais, como condição inelutável para a implantação de um regime jurídico integral diferente". RUBENS LIMONGI FRANÇA [27] é mais enfático: "se uma nova lei se declara absoluta e é aplicável a todos os casos, as exceções da velha norma serão tidas como abolidas".

Na jurisprudência um interessante exemplo é colhido. Segundo julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial n. 168.339/SO, publicado no Diário de Justiça de 16 de agosto de 1999, não persiste o desconto na mensalidade escolar, por mais de um filho estudar na mesma escola, uma vez que houve a revogação tácita do art. 24 do Decreto-lei n. 3.200/41 pela legislação posterior, a saber, o Decreto-lei n. 532/69, que regulou toda a matéria e não previu o referido desconto. Conforme as razões expostas no decisum, o Decreto-lei n. 532/69 dispôs, expressamente, que a fixação e o reajuste dos valores relativos à retribuição, devida em virtude da prestação de serviço de ensino, seria feita nos termos constantes do próprio Decreto-lei. Assim, "neste se buscariam os parâmetros. Não há pois, cogitar de outros, que se haverão de reputar insubsistentes".

Por esse prisma, incidindo a regra constante do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução, o art. 66 da Lei 8.383/91 estaria revogado, pois o art. 374 do Novo Código Civil trouxe para si toda a regulação da matéria.

3.2.3 Art. 374 do Novo Código Civil X Lei 8.212/91

A problemática aqui segue o já demonstrado no item anterior, o que justifica a sumariedade do tópico.

A Lei n. 8.212/91 determina que a compensação das contribuições previdenciárias deverá ser efetuada no limite de trinta por cento do valor a ser recolhido em cada competência. Na prática, imagine-se em quanto tempo estarão totalmente compensados valores pagos indevidamente durante dez anos, por exemplo. A regra em questão já foi objeto de análise por parte do Superior Tribunal de Justiça:

É de natureza agressiva aos direitos fundamentais do contribuinte a pretensão de fazer cumprir legislação infraconstitucional que impõe limites à compensação tributária, quando tal fenômeno é referente a parcelas das contribuições recolhidas por exigência fiscal que veio a ser considerada inconstitucional pelo STF. (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 247891/GO, 1ª Turma do STJ, Rel. Min. José Delgado. j. 16.05.2000, Publ. DJU 19.06.2000, p. 119)

No que toca à incompatibilidade ou não do art. 374 com o dispositivo em análise, como dito, o raciocínio é o mesmo despendido no item antecedente. Isto é, se o art. 374 for considerado regra geral e o art. 89 da Lei 8.212/91, regra especial, a conclusão, pelo princípio da especialidade, é pelo vigor desta última norma. Ao contrário, admitindo-se o caráter de especialidade do art. 374 do Novo Código Civil é certo que este artigo também revogará as limitações impostas pela Lei n. 8.212/91. Por fim, mesmo que abandonada a discussão acima, consubstanciada na precisão do que seja regra especial e o que seja regra geral, a incidência do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução impõe o fim à questão.

Jurista estudioso do tema, GABRIEL LACERDA TROIANELLI [28] oferece pertinente observação. Para o autor, "se no artigo 374 se tivesse dito que as regras do novo Código Civil seriam aplicadas ´subsidiariamente´ à compensação tributária ou que a compensação tributária seria regida pelo novo Código Civil, ´sem prejuízo das normas em vigor´, poderíamos aceitar, sem qualquer dificuldade, a permanência das normas de lei ordinária federal que dispõem sobre compensação".

Pelo estabelecido no art. 374, é expressa a monopolização da regulação da compensação das dívidas fiscais, o que impele o afastamento da incidência de qualquer outra norma, de mesmo nível, que não as do respectivo capítulo do Código.

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Sobre a autora
Michele Cioccari

advogada, acadêmica de Ciências Contábeis na Universidade Federal de Santa Maria

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIOCCARI, Michele. A compensação dos débitos fiscais no Novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3599. Acesso em: 28 mar. 2024.

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