Resumo: A legislação de trânsito é complexa, dinâmica, multidisciplinar e esparsa. Os textos dos diplomas legais são sempre objetivos, não delineando os procedimentos operacionais. A hermenêutica para compreensão do “micro-ordenamento” criado para o direito do trânsito exige do militar o conhecimento jurídico sistemático. O presente estudo tem por escopo elucidar alguns caminhos procedimentais, concernentes as ocorrências envolvendo veículos não registrados ou não devidamente licenciado, alicerçados em argumentos previstos em leis.
Palavras-chave: jurídico, licenciamento, leis, procedimentos, registro, veículo.
Introdução
Na realização das fiscalizações de trânsito é rotineira abordagem a veículos não devidamente licenciados. Nos centros urbanos é comum depararmos com veículos sem placas circulando nas vias. Quais as diretrizes de atuação nesses casos? A Lei n° 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro – prevê objetivamente a infração de trânsito, assim descrita:
Art. 230. Conduzir o veículo:
[...]
V - que não esteja registrado e devidamente licenciado;
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa e apreensão do veículo;
Medida administrativa - remoção do veículo;
A simplicidade do dispositivo esconde diversas implicações procedimentais, basta apenas analisar conjunturalmente. Assim, os questionamentos são comuns: caso o cidadão efetue o pagamento e apresente o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) no local da fiscalização, poderá ter ser veículo restituído? Caso o município não disponha de serviço de remoção no momento, situação muito comum no interior dos estados brasileiros, o policial deverá liberar o veículo? O policial pode utilizar da própria capacidade de locomoção do veículo para removê-lo até o pátio credenciado? O veículo estacionado pode ser autuado por não estar devidamente licenciado? Condutor com veículo não devidamente licenciado e portando CRLV do exercício anterior cabe autuação por falta de documento de porte obrigatório? Carro sem placas pode circular? Qual o prazo para o registro? Com a finalidade de responder tais questionamentos urge a análise sistemática da legislação de trânsito vigente no país.
Aspectos procedimentais: veículo não devidamente licenciado
Conforme previsão do art. 230 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) a infração de conduzir veículo sem estar devidamente licenciado possui medida administrativa de remoção. Caso o condutor venha a sanar a irregularidade poderá ter a posse do bem restituída? A resposta é: depende.
A medida administrativa de remoção, conforme Resolução CONTRAN n° 371/210 “tem por finalidade restabelecer as condições de segurança e fluidez da via ou garantir a boa ordem administrativa. Consiste em deslocar o veículo do local onde é verificada a infração para depósito fixado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via”. O mesmo documento afirma que “A medida administrativa de remoção é independente da penalidade de apreensão e não se caracteriza como medida antecipatória da penalidade de apreensão”. Nesse sentido, o CTB não vincula à aplicação da penalidade de apreensão do veículo a prévia remoção.
Enveredando pela esteira de interpretação da legislação, a mencionada Resolução traz em seu bojo os seguintes dizeres:
A remoção do veículo não será aplicada se o condutor, regularmente habilitado, solucionar a causa da remoção, desde que isso ocorra antes que a operação de remoção tenha sido iniciada ou quando o agente avaliar que a operação de remoção trará ainda mais prejuízo à segurança e/ou fluidez da via (Resolução CONTRAN n° 371/2010).
A concepção que imperava na doutrina do direito do trânsito, na qual a infração que possuía como medida administrativa a remoção do veículo não poderia ser sanada, caiu por terra. A doutrina afirmava que somente as infrações com previsão de retenção poderiam ser sanadas. Complementando a regulamentação, a Resolução n° 371/2010 impõe que “Este procedimento (sanar irregularidade) somente se aplica para o veículo devidamente licenciado e que esteja em condições de segurança para sua circulação”. É por fim, o retromencionado documento reafirma a previsão do CTB, dizendo que “A restituição dos veículos removidos só ocorrerá após o pagamento das multas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação especifica”.
Com base na interpretação sistemática dos dispositivos apresentados, data vênia, é juridicamente amparado o procedimento de liberação do veículo, abordado com licenciamento em atraso, no local de fiscalização. Como requisitos o condutor deverá estar devidamente habilitado, realizar o pagamento de todos os débitos do veículo em tempo hábil, apresentar CRLV do exercício em vigor, a consulta no sistema informatizado deverá constar veículo licenciado, que o veículo esteja em condições seguras para circulação e a operação de remoção não poderá ter sido iniciada. Na maioria da legislação, produzida com base no processo de contrato do serviço, a operação de remoção se inicia com o tracionamento do veículo pelo guincho. Cabe evidenciar que o AIT relativo à infração do veículo não devidamente licenciado deverá ser confeccionado.
Na atual conjuntura logística dos estados brasileiros muitos municípios não possuem serviço de remoção ou o serviço não atende a demanda. Qual o procedimento em caso de abordagem a veículo não devidamente licenciado?
A legislação vincula como obrigatória a confecção do Auto de Infração de Trânsito (AIT) por não estar com veículo devidamente licenciado. Na ausência de recurso logístico para remoção o policial deverá adotar os seguintes procedimentos: a) oportunizar ao proprietário condutor a possibilidade de pagamento e preenchimento dos requisitos apresentados acima; b) Na impossibilidade do primeiro procedimento: constar no campo observação do AIT que o veículo não foi removido por indisponibilidade de recurso. Além disso, registrar BO constando a liberação do veículo irregular e a justificativa, ou seja, a legislação estadual que não prevê o serviço de remoção ou dados do responsável pelo serviço que informou a indisponibilidade. O procedimento de permitir que o proprietário conduza o veículo até estrutura física da Polícia Militar para regularização não possui fundamentação legal. O veículo com irregularidade só poderá sair do local de fiscalização com destino ao pátio credenciado.
Outro questionamento plausível é a possibilidade do agente realizar a remoção do veículo pela própria capacidade de locomoção, assim prevê a Resolução CONTRAN n° 371/2010:
A remoção deve ser feita por meio de veículo destinado para esse fim ou, na falta deste, valendo-se da própria capacidade de movimentação do veículo a ser removido, desde que haja condições de segurança para o trânsito (grifo nosso).
Com fulcro na interpretação do mencionado documento é possível que o veículo seja removido pela sua própria capacidade de locomoção. São requisitos: a) a falta de veículo destinado para este fim; b) condições seguras para o trânsito. A legislação não definiu que iria conduzir o veículo até o pátio. Pela dinâmica jurídica é possível afirmar, data vênia, que seria o agente responsável pela autuação, pois com a constatação da infração e retenção do veículo, o bem passa ser responsabilidade do estado. A experiência operacional alertar quanto deixar o proprietário conduzir o veículo. É comum o autuado empreender fuga para se eximir das responsabilidades. O empirismo também indica que tal procedimento só é viável quando o pátio encontra-se próximo ao local da fiscalização. É imperioso asseverar que tais procedimentos são adaptações jurídicas, alicerçadas em argumentos legais, para suprir a deficiência estrutural e não deixar que o policial cometa atos abusivos.
Situação fática que gera dúvida é a constatação de veículo não devidamente licenciado estacionado. No caso de estacionamento irregular o veículo será removido e confeccionado AIT pela infração de estacionamento em desacordo com a sinalização. Não poderá ser lavrado AIT pela infração de licenciamento em atraso. A remoção se dá pela impossibilidade de sanar a irregularidade. Porém, é importante salientar que o condutor poderá sanar a irregularidade, antes do início da remoção, por intermédio de serviço de guincho.
Noutro giro, no caso de veículo regularmente estacionado, surgiu na seara doutrinária uma celeuma quanto à possibilidade de autuação. O texto legal, art. 230 do CTB, refere-se a “conduzir” veículo. Em análise simplória a primeira percepção é que não poderá ser lavrado AIT. Uma parte da doutrina defende que cabe autuação com base na presunção que para chegar até o local alguém conduziu o veículo. Para sanar o dilema trago a baila o Parecer n° 129/2000 – Coordenação Geral de Instrumentação Jurídica e da Fiscalização – DENATRAN, que prescreve “para que o Agente de trânsito, quando não presenciando o condutor na direção de veículo, possa autuá-lo, o fato terá que se revestir de toda materialidade relativa à infração efetivamente cometida”. Continua “e não por mera presunção subjetiva do agente”. Exemplificando: veículo estacionado regularmente não cabe presumir que o proprietário o conduziu até o local. Caso visualize o veículo sendo conduzido e não consiga abordar ou haja o desrespeito à ordem de parada, após encontrar o veículo estacionado poderá confeccionar o AIT e removê-lo. Outra situação que caracteriza a materialidade relativa à infração é o caso de acidente de trânsito. Quando o agente chega ao local os veículos não estão sendo conduzidos, mas caso não estejam devidamente licenciados poderão ser autuados e removidos.
Caminhando pela subsunção da legislação de trânsito aos tipos administrativos é vital a análise da seguinte situação: veículo não devidamente licenciado abordado. Condutor está portando o CRLV do exercício anterior, cabe à autuação de não portar documento obrigatório ou só a relativa ao licenciamento em atraso?
A doutrina de trânsito, parca e contraditória, apresenta dois posicionamentos. Antes de adentrarmos ao mérito da discussão é salutar apresentar a regulamentação. O CTB prescreve:
Art. 232. Conduzir veículo sem os documentos de porte obrigatório referidos neste Código:
Infração - leve;
Penalidade - multa;
Medida administrativa - retenção do veículo até a apresentação do documento.
A Resolução CONTRAN n° 205/2006 balizou quais são os documentos de porte obrigatório.
Art. 1º. Os documentos de porte obrigatório do condutor do veículo são:
I – Autorização para Conduzir Ciclomotor - ACC, Permissão para Dirigir ou Carteira Nacional de Habilitação - CNH, no original;
II – Certificado de Registro e Licenciamento Anual - CRLV, no original;
No processo de confecção de Auto de Infração de Trânsito a Resolução CONTRAN n° 371/2010 determina, para análise de autuações múltiplas, os seguintes critérios: a) infrações em que os códigos possuam mesma raiz (os três primeiros dígitos), considerar-se-á apenas uma infração; b) nas infrações concorrentes confeccionar apenas uma; c) nas infrações concomitantes confeccionar todas que não tenham mesma raiz.
A sistemática de interpretação originou duas vertentes majoritárias. A primeira aduz pela confecção dos dois AIT’s. O argumento está baseado na hermenêutica literal dos dispositivos. As infrações não possuem mesma raiz (Porte: 6912-0) (Licenciamento: 6599-2). O CRLV é anual. Assim, só tem validade como documento de porte obrigatório o do exercício vigente. A outra vertente entende que só é legal a confecção de um AIT por não estar devidamente licenciado. Tal opinião fundamenta-se no argumento que as infrações são concorrentes. No caso em baila o licenciamento do veículo é conditio sine qua non para emissão do CRLV do exercício atual. Comum nos dois posicionamentos é a obrigatoriedade do porte do CRLV do exercício em vigor. Porém, existe um posicionamento subsidiário alegando que a Resolução mencionada não especificou no texto legal o exercício que seria cobrado o CLRV. Pautam pelo argumento da segurança jurídica. Caso fosse vontade do legislador impor o porte do documento do exercício em vigor, teria feito no dispositivo, como delimitou a obrigatoriedade do original. Decorre deste último posicionamento que o CRLV portado poderá ser de qualquer ano, pois sua função é atestar várias informações do veículo e não somente o licenciamento.
Destarte, com base em toda exposição ora levada a efeito, data venia, dentro de uma lógica jurídica é possível opinar pela confecção de apenas um AIT, concernente ao licenciamento em atraso. Tal fato decorre da natureza concorrente das infrações. Porém, urge evidenciar que o documento de porte obrigatório é o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo do exercício em vigor. Durante todo estudo foi utilizada a sigla CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo), porém urge apresentar, devido o momento oportuno, a imprecisão conceitual da legislação de trânsito. O CTB, em seus artigos, utilizava a nomenclatura de Certificado de Registro e Licenciamento Anual. O documento emitido pelos órgãos de trânsito utiliza a nomenclatura de Certificado e Registro e Licenciamento de Veículo. A Resolução CONTRAN n° 205/2006, utiliza Certificado de Registro e Licenciamento Anual e apresenta a sigla CRLV. Outros documentos utilizam o termo Certificado de Licenciamento Anual (CLA). Tal fato não altera o conteúdo jurídico. O CRLV é a atual nomenclatura dada ao documento, pois agregou o antigo Registro de Veículo (CR) e o Certificado de Licenciamento Anual (CLA) em um só. Retornando a temática, caso não fosse esse o entendimento bastaria emitir um único CRLV e todas as consultas seriam feitas via sistema informatizado. Assim, caso o veículo, devidamente licenciado, seja abordado e o condutor possua apenas o CRLV do exercício anterior será autuado por falta de documento de porte obrigatório.