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Lei de Crimes Hediondos:

uma abordagem crítica

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01/01/2003 às 00:00
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2 IMPOSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO DE REGIME E SUA CONSTITUCIONALIDADE

Realizada uma prévia identificação com relação a quais são os crimes hediondos e assemelhados, cumpre-nos explanar a impossibilidade da progressão do regime na execução da pena privativa de liberdade, imposta aos mesmos.

O artigo segundo da lei em comento, após, em seu caput, determinar quais os crimes equiparados aos hediondos, em seu parágrafo primeiro determina que: "A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado". (grifamos)

Na língua portuguesa, o vocábulo "integral", significa [20] total, inteiro, global. Diante disto, a frase acima em destaque, já em seu sentido jurídico tem o significado de que a pena, em toda a sua execução, será cumprida em um só regime, o regime fechado.

Considerando que a progressão de regime é uma das formas de individualização da pena privativa de liberdade em sua fase executória, e que esta individualização é garantida pela Constituição Federal, em princípio, a lei de crimes hediondos, ao vedar a progressão de regimes seria materialmente inconstitucional, embora tal aspecto, no plano formal já tenha sido amplamente debatido perante os Tribunais Superiores.

Com relação ao assunto, existem duas correntes, que oscilam em torno da constitucionalidade ou não deste inciso. Ambas se formam a nível jurisprudencial e doutrinário.

A primeira corrente, defende a constitucionalidade do referido parágrafo. Esta representa a uniformidade de julgamentos do STJ e do STF.

O STJ, em sua jurisprudência dominante [21], considera que:

"A lei dos crimes hediondos - lei 8.072/1990 -, ao estabelecer no seu art. 2., par. 1., que os delitos nela arrolados devem ser punidos sob o rigor do regime fechado integral, embora dissonante do sistema preconizado no CP - arts. 33/36 - e da lei de execuções penais, que preconizam a execução da pena privativa de liberdade de forma progressiva, não afronta o texto constitucional, pois a carta magna conferiu ao legislador ordinário competência para dispor sobre a individualização da pena (art. 5., XLVI), situando-se aquele diploma legal na linha filosófica do estatuto maior, que estabeleceu princípios rigorosos no trato dos crimes hediondos (art. 5., XLIII)." [22](sic)

O Supremo Tribunal Federal, de acordo com a base jurisprudencial uniforme [23], entende que à lei ordinária compete fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador poderá efetivar ou a concreção ou a individualização da pena. Se o legislador ordinário, segundo este tribunal, dispôs, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional, que nos crimes hediondos o cumprimento da pena será no regime fechado, significa que não quis ele deixar, em relação aos crimes dessa natureza, qualquer discricionariedade ao juiz na fixação do regime prisional, entendendo ser constitucional o referido ordenamento.

Julio Fabrini Mirabete defende a constitucionalidade do dispositivo, através do seguinte argumento:

"Conforme pacífica a jurisprudência, não há qualquer inconstitucionalidade derivada de infringência ao princípio de individualização da pena previsto no art. 5º, XLVI, da Carta Magna, uma vez que cabe à lei determinar as regras para a citada individualização." [24] (sic)

Vitor Eduardo Rios Gonçalves, comenta a mesma posição:

"Veja-se, entretanto, que esse dispositivo da Carta Magna limita-se a dizer que a individualização da pena será regulada por lei, não mencionando que a progressão de regime é direito dos condenados. Analisando-se a legislação ordinária, percebe-se que o sistema de individualização da pena está contido no art. 68 do CP, que dispõe acerca das fases que o juiz deve seguir para fixar a reprimenda. Assim, nada há de inconstitucional na fixação de regime integral fechado, conforme vêm decidindo reiteradamente o STF e o STJ." [25] (sic)

Por outro lado, há uma segunda corrente que defende que a impossibilidade de progressão de regime é inconstitucional.

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Piarangeli [26], ao examinarem o artigo segundo, parágrafo primeiro, da lei, observam ser sua constitucionalidade, no mínimo, duvidosa.

Marco Aurélio Mendes de Faria Mello, ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, é um dos partidários da inconstitucionalidade do dispositivo que veda a progressão de regime na lei de crimes hediondos:

"Destarte, tenho como inconstitucional o preceito do §1º do art. 2º da lei 8.072/90, no que dispõe que a pena imposta pela prática de qualquer dos crimes nela mencionados será cumprida, integralmente, no regime fechado. Com isto, concedo parcialmente a ordem, não para ensejar ao paciente qualquer dos regimes mais favoráveis, mas para reconhecer-lhe, porque cidadão e acima de tudo pessoa humana, os benefícios do instituto geral que é o da progressão do regime de cumprimento da pena, providenciando o Estado os exames cabíveis". [27] (sic)

Da mesma forma, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, atualmente aposentado [28], Luiz Vicente Cernicchiaro, também, enquanto em atividade, demonstrou-se favorável à referida inconstitucionalidade, porém, também com inúmeros votos vencidos:

"A Constituição da República consagra o princípio da individualização da pena. Compreende três fases: cominação, aplicação e execução. Individualizar é ajustar a pena cominada, considerando os dados objetivos e subjetivos da infração penal, no momento da aplicação e da execução. Impossível, por isso, legislação ordinária impor (desconsiderando os dados objetivos e subjetivos) regime único inflexível" [29], e ainda: "Individualização de pena significa ensejar ao juiz definir a qualidade e quantidade da pena, nos limites da cominação legal. Imperativo de justiça e de boa aplicação da sanção penal. inconstitucional, por isso, lei ordinária impor, inflexivelmente que a pena ‘será cumprida integralmente em regime fechado’." [30] (sic)

Carmem Silvia de Moraes Barros, também demonstra a inconstitucionalidade do referido dispositivo:

"Em que pesem as vozes em contrário, é obvio que, ao impedir a progressão de regime de cumprimento de pena, a lei de crimes hediondos inviabiliza a individualização da pena na execução penal e contraria o preceito constitucional que garante o direito à pena individualizada", e ainda comenta: "Ao vedar a progressão de regime de cumprimento de pena, a lei de crimes hediondos volta aos primórdios do direito penal para relevar o crime e ignorar por completo o homem." [31] (sic)

Paulo José de Costa Júnior, também demonstra boa doutrina:

"..., tem-se apontado, com acerto, a inconstitucionalidade desse dispositivo legal, por ferir o princípio constitucional de individualização da pena, agasalhado expressamente no artigo 5º, da Constituição Federal". [32] (sic)

Thaís Vani Bemfica, em obra sobre o assunto afirma:

"Cumprimento de pena severa em regime totalmente fechado é o mesmo que pena perpétua, vedada pela Constituição Federal. Uma disposição penal que inadmite o livramento não é apenas retrógrada: é degenerada, mormente porque pode ser aplicada contra santos e bandidos, jogando perigosos e não perigosos no mesmo caldo de cultura da microbiogenia dos presídios em que eventuais predisposições para o crime explodem, com nítidos prejuízos ao condenado, à sua família e a sociedade". [33] (sic)

Diante de respeitáveis posições doutrinárias percebemos ser variada a gama de argumentos, de uma e outra corrente, porém, cumpre-nos analisar neste momento a questão com base nos princípios constitucionais pertinentes ao Direito Penal.

Dessa forma, consideremos como fundamentais cinco princípios quais sejam: legalidade, individualização, personalidade, humanidade e culpabilidade.

A impossibilidade de progressão de regimes, imposta pela lei de Crimes Hediondos em seu artigo segundo, parágrafo primeiro, para os condenados por crimes por regidos, se mostra aderente aos princípios da legalidade, da personalidade e da culpabilidade, não carecendo maiores aprofundamentos.

Por outro lado, ao nosso entendimento, esta impossibilidade de progressão de regimes fere os dois dos princípios constitucionais basilares da pena privativa de liberdade, os princípios da humanidade e da individualização, além de ferir o princípio da proporcionalidade adotado pelo nosso ordenamento jurídico. Para o momento, porém, nos ateremos em analisar os princípios constitucionais violados, destacando, desde já, que ambos estão correlacionados.

O princípio da humanidade, é um dos mais importantes princípios pertinentes a pena, em nosso direito penal nacional, uma vez que este harmoniza os direitos fundamentais garantidos a todos com os que são vedados ao condenado com a segregação.

Assim, o princípio da humanidade garante aos condenados, independente do tipo e quantidade de pena, certos direitos que lhe alcançam o direito natural de vivência como ser humano.

O regime integralmente fechado, ao segregar uma pessoa por um longo período de tempo (durante toda a pena), sem que a mesma tenha qualquer perspectiva ou esperança, seja de abrandar sua pena, seja de voltar a ter os direitos que lhe foram suprimidos, está sendo levando a condições desumanas. Com isto, o condenado é comparando a certos animais que passam a toda vida a mantidos em cativeiro.

Tamanha a desumanidade se demonstra pelo fato de que, se um condenado passar toda a sua pena recluso e sem contato com o mundo exterior e com a sociedade, certamente não se readaptará a esta. Quando do fim de sua pena, o recluso estará, como um ser alheio aos acontecimentos sociais, bitolado à vida interna de uma penitenciária, na qual viveu fechado por, no mínimo, seis anos. Isto o faz deixar de compreender regras básicas de vivência em sociedade, o que lhe confere uma consciência desumana.

Já com relação ao princípio da individualização, esta, dentre outras formas, se dá através da progressão de regime na fase de execução. Sobre este princípios devemos considerar que "a lei regulará a individualização". Com isto se torna explícito que esta individualização deve ser regulada e não privada por uma lei.

A Lei de Crimes Hediondos, quanto a impossibilidade de progressão de regime, fere estes dois princípios constitucionais básicos relativos à pena. Por este motivo, a referida lei se demonstra inconstitucional, embora a situação política, criminal e carcerária atual em nosso país leve, infelizmente, nossos tribunais superiores a desconsiderarem estes princípios de imensurável importância.

O legislador ao vedar a progressão de regime para os delinqüentes que cometem os delitos hediondos e equiparados, esta abandonando toda a orientação principiológica (princípios da individualização, da proporcionalidade e da humanidade) resguardadas pela Carta Magna a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, evidenciando imposições, aos baseados nela condenados, uma única função retributiva, a qual representa uma regressão à idéia penal constituída anteriormente ao século XVIII, caracterizada como desumana e cruel.

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2.1 Legislação Correlata ao Assunto.

Sendo que a lei de crimes hediondos não tem uma tipificação descrita entre seus artigos, para os crimes por ela regidos, a mesma se utiliza de tipificações existentes no Código Penal, em artigos que cita, além das tipificações existentes em leis esparsas.

Desta forma, a lei de crimes hediondos, se relaciona com as seguintes leis, diretamente: Lei 9.677/98, que regula os crimes contra a saúde pública (artigo primeiro, inciso VII – B), lei 2.889/56, regula o crime de genocídio (artigo primeiro, parágrafo único), lei 9.455/97, regula o crime de tortura (equiparado aos crimes hediondos – artigo segundo caput), leis 9.368/76, combinada com a lei 10.409/02, que regulam os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (equiparado aos crimes hediondos – artigo segundo caput) e lei 7.170/83, que diz respeito a lei de segurança nacional, a qual regula a prática de terrorismo (equiparado aos crimes hediondos – artigo segundo caput).

Além destas, o artigo 8º, da mesma lei, regulamenta uma forma qualificada para o crime de "quadrilha ou bando", regulada pelo artigo 288 do Código Penal, de forma que quando esta formação tiver o fim praticar crimes hediondos ou assemelhados a pena é aumentada.

Diante deste complexo de relações entre a lei objeto, código penal e as demais leis citadas, naturalmente as alterações que ocorrerem nos artigos deste código e nestas leis, repercutirão naquela. Corolário disso, podemos citar três leis que alteraram as tipificações utilizadas e refletem na lei 8072/90.

A lei 9.034, de 03 de maio de 1995, define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos tipificados no artigo 288, do Código Penal. Esta lei, em seu artigo 10, define que "os condenados por crimes decorrentes de organização criminosa iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado."(sic)

Já a lei 9.455, de 07 de abri de 1997, que regula os crimes de tortura, no parágrafo 7º, do artigo primeiro, determina que "o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado".(sic)

Diante destas duas leis que possibilitam a progressão de regimes para os crimes por elas regulados, que constam dentre os hediondos e equiparados, surge-nos uma discussão relacionada ao conflito legislativo existente, pois haveria a derrogação (revogação parcial) da lei em comento, ou seja, a lei 9.455/97 (e a lei 9.034/95, menos comentada, mas no mesmo sentido) revogou tacitamente o parágrafo primeiro do artigo segundo da mesma.

Com relação a assunto, é entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que

"A lei 9.455, de 1997 não revoga, por extensão, o art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90. Esta não autoriza a progressão nos denominados crimes hediondos relativos ao terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes, etc. Já aquela, consagra o benefício apenas (unicamente) para o delito de tortura." [34](sic)

Assim, os crimes de formação de quadrilha ou bando com o intuito da prática de crime hediondo e nos crimes de tortura, a execução somente iniciará em regime fechado, sendo permitida a progressão, porém, não sendo extensiva esta regra aos demais crimes hediondos.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VEIGA, Marcio Gai. Lei de Crimes Hediondos:: uma abordagem crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3637. Acesso em: 5 nov. 2024.

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