3 IMPOSSIBILIDADE DE LIVRAMENTO CONDICIONAL ORDINÁRIO E SUA CONSTITUCIONALIDADE
A Lei de Crimes Hediondos, em seu artigo 5º, acresceu o inciso V, ao artigo 83, do Código Penal. O referido inciso criou o Livramento Condicional Extraordinário, segundo o qual o juiz poderá conceder este substitutivo de pena, desde que o apenado tenha "cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza."(sic)
Desta forma, como na proibição da progressão de regime, a Lei que temos como objeto, sob o ponto de vista de que a individualização é garantida pela Carta Magna, veda um dos mais importantes direitos do apenado, o direito ao Livramento Condicional ordinário.
Além do mais, ao contrário da impossibilidade de progressão de regime, que admite exceções, o Livramento Condicional extraordinário, é extensivo a todos os casos de condenações por crimes hediondos ou assemelhados, o que o caracteriza como ainda mais severo e desumano que a impossibilidade de progressão de regime.
De outra monta, assim como na impossibilidade de progressão de regimes, a impossibilidade de concessão de Livramento Condicional Ordinário aos condenados por crimes hediondos, merece uma analise com relação a sua constitucionalidade sob o ponto de vista principiológico constitucional, que já apresentamos.
Não Obstante, reafirmamos que o princípio da individualização da pena é regido pelo artigo quinto, inciso quarenta e seis da Constituição Federal, o qual, como já referimos, determina que "a lei regulará a individualização da pena". Consideramos ainda que o livramento condicional é outra das formas de individualização da pena privativa de liberdade, na fase de execução.
Todavia, a impossibilidade de Livramento Condicional Ordinário, não proíbe a aplicação do instituto do Livramento Condicional, haja visto que a forma ordinária de Livramento é apenas substituída pela forma extraordinária, que é mais rigorosa, mas não ao ponto de proibir a aplicação do referido instituto, como ocorre com a impossibilidade de progressão de regimes. Diante disto, cumpre-nos posicionarmos no sentido de que, sob o ponto de vista do princípio da individualização o Livramento Condicional Extraordinário é constitucional.
Por outro lado, quanto ao princípio da humanidade, o quadro se modifica em relação ao assunto. Enquanto, conforme já discorremos, a pena privativa de liberdade suprime alguns direitos do condenado, dentre eles a liberdade, por outro lado, não pode restringir outros direitos que também são assegurados pela Constituição Federal, como o princípio em comento.
Diante disto, não podemos nos posicionar na sentido de que uma pena cumprida, em dois terços de seu total, em regime fechado, seja acordada com condições humanas de sobrevivência. Assim, ao nosso ver, o Livramento Condicional Extraordinário fere a Constituição Federal, quanto à humanidade que deveria ser dispensada a pena.
Porém, cumpre ainda ressaltar que o princípio da humanidade, ao contrário do princípio da individualização, não possui uma forma específica de aplicação o que torna subjetiva a análise com relação a sua constitucionalidade.
Conseqüência desta subjetividade é a falta de argumentos firmes o suficiente para que possamos enquadrar o referido instituto como inconstitucional, falta esta que se verifica também na doutrina.
Em face de todo o exposto, cabe posicionarmos pela constitucionalidade do referido dispositivo.
3.1 A Reincidência Específica
A reincidência específica, relacionada ao livramento Condicional, assume imensa importância, uma vez que se o condenado for considerado reincidente específico, não terá direito nem ao Livramento Condicional Extraordinário.
Sobre o assunto, Carmen Silvia de Moraes Barros faz importante crítica:
"Se a lei de crimes hediondos só não fosse inconstitucional por impedir a aplicação do princípio de individualização da pena na execução penal, também seria por ressuscitar a arcaica figura da reincidência específica, ligada a culpabilidade do autor e que permite a apenação não pelo que se fez, mas pelo que se é." [35] (sic)
A reincidência específica é originária do Código Penal de 1940. Porém, foi abolida pela reforma penal ocorrida em 1984, por meio do artigo 61, inciso I, que trata simplesmente sobre reincidência, conceituando o assunto, sem citar classificações.
A doutrina com relação ao assunto é diversa. A discussão ocorre no sentido de haver necessidade que para a existência da reincidência específica, ocorra o mesmo tipo penal, cometido duas vezes, ou se bastaria que o condenado cometesse dois crimes, mesmo de diferente tipificação, porém ambos elencados no rol dos hediondos ou equiparados.
Damásio E. de Jesus, se posiciona da seguinte maneira:
"Há reincidência específica, para efeito da disposição, quando o sujeito, já tendo sido irrecorrivelmente condenado por qualquer um dos delitos relacionados, vem novamente a cometer um deles, observado o artigo 64, I, do CP. Exemplos: Tráfico de drogas e estupro; latrocínio e latrocínio; latrocínio e tortura; terrorismo e extorsão mediante seqüestro, etc". [36] (sic)
Antônio Lopes Monteiro [37] tem a mesma posição, apoiada também por Mirabete [38] e Magalhães Noronha [39]:
"Reincidente específico, para efeito da lei, é o sujeito que comete crime hediondo, terrorismo, de drogas ou tortura depois de transitar em julgado sentença que, no pais ou no estrangeiro, o tenha condenado por um desses crimes. E dentro do elenco pode haver diversificação: o primeiro delito pode ser tortura; o segundo, terrorismo".(sic)
Esta corrente doutrinária é dominante e coerente com os julgamentos atuais. Assim, a reincidência específica, prevista originalmente no Código Penal de 1940, foi extinta restando apenas a reincidência ficta [40], devendo-se ainda deduzir novo conceito para a expressão, qual seja, o crime anterior e o posterior devem ter a mesma natureza significando que ambos devem estar dentre os classificados por hediondos ou equiparados.
4 CRIMES HEDIONDOS E OS PACTOS INTERNACIONAIS RATIFICADOS PELO BRASIL
A Carta Política brasileira, em seu artigo 5º, garante a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, que "III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" e "XLVII - não haverá penas: b) de caráter perpétuo". Além disso, o parágrafo segundo, do mesmo artigo, versa o seguinte: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." (grifamos)
Ambos os direitos citados, são de suma importância para o presente estudo. O parágrafo acima citado, abre caminho para os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e, dentre estes, os tratados referentes aos Direitos humanos.
Nesta área, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José da Costa Rica representam os principais tratados ratificados pelo Brasil.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi adotado pela Resolução número 2.200-A da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. No Brasil foi aprovado pelo Decreto Legislativo número 226, publicado em 13 de dezembro de 1991. Após, foi ratificado em 24 de janeiro de 1992 e promulgado pelo Decreto número 592, publicado em 7 de julho de 1992, quando entrou em vigor. Este decreto em seu artigo primeiro versa o seguinte: "O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém."(sic)
Não obstante, o artigo sétimo do referido pacto determina que "ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas." (grifamos)
Além deste, em 22 de novembro de 1969, em San José de Costa Rica, foi adotada pela Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada de "Pacto de San José da Costa Rica". Este pacto foi assinado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo decreto numero 678, publicado em 09 de novembro de 1992, quando entrou em vigor.
Ao promulgar este tratado, o referido decreto, em seu artigo primeiro, determinou o seguinte: "a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente Decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém." (grifamos)
Assim, também em vigor em nosso país, o referido pacto garante o seguinte:
"Artigo 5º - direito à integridade pessoal; 2 -Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano; 6 - as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados." (sic)
Diante destes compromissos assumidos pelo Brasil em preservar os direitos humanos, o regime integralmente fechado e o livramento condicional extraordinário encontram-se em total desacordo com os mesmos, uma vez que ambos ferem a dignidade humana por trancafiarem os apenados por um longo período sem concederem a estes benefícios proporcionais a sua ressocialização.
Abonam esta desinteligência as posições tomadas pela justiça federal, em relação à progressão de regimes para os condenados pelo crime hediondo de tráfico internacional de entorpecentes, que são de sua competência. Nestes casos, são várias as jurisprudências que confirmam como revogado tacitamente o parágrafo primeiro, do artigo segundo da Lei de Crimes Hediondos. Vejamos, como exemplo, posição tomada pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região [41]:
"Concede-se de ofício ordem de habeas corpus aos réus para autorizar a progressão do regime prisional, nos termos do artigo 33, § 2º, do código penal e do artigo 112 da lei nº 7.210/84. O juízo das execuções penais examinará quando e se os condenados preenchem os requisitos concretos. O artigo 2º, § 1º, da lei nº 8072/90 foi revogado pelo pacto internacional de direitos civis e políticos, artigo 7º, que foi ratificado pelo Brasil, em 24.01.92. Constitui tratamento cruel a um condenado submetê-lo, integralmente, durante o cumprimento da sanção, a regime mais gravoso, excluindo a possibilidade de, pelo mérito, demonstrar que faz jus à progressão prisional." [42](grifamos)
Diante disso, nos posicionamos no sentido de que a impossibilidade de progressão de regime, e, por analogia, o livramento condicional extraordinário, foram revogados tacitamente quando da promulgação da ratificação do "Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos" e do "Pacto de São José da Costa Rica". Esta afirmação se dá porque ambos operam contra a o direito, garantido pelo primeiro e pelo segundo pactos, de que "ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes". Além disso, a mesma impossibilidade de progressão de regime também obra contra outro compromisso assumido no segundo Pacto de que "as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados".
5 A REFORMA DO CÓDIGO PENAL
Diante da situação exposta, em que é a gritante desumanidade e gravíssimo o atentado aos princípios penais, que a Lei de Crimes Hediondos impõe, situação esta que leva muitos a ‘fecharem os olhos’ devido à situação política e social que assola nosso país, nos exaltamos ao mencionar que esta situação, não está ‘jogada ao vento’, pois existem legisladores que tem a consciência de tudo isto.
Esta consciência se confirma com a exposição de motivos número 318/2000, do projeto de lei que propõe uma reforma na parte geral do Código Penal. Tamanha a serenidade desta posição, assinada pelo então ministro da Justiça, José Gregori, que merece a transposição de alguns trechos na íntegra:
"4 - O Direito Penal legislado na década de 90 foi um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. Ao lado dessas reformas, e mesmo em contradição a vários de seus postulados, novos institutos importados sem muito critério do direito americano e italiano promoveram uma completa desorganização do que sobrara do sistema legal, promovendo uma exagerada liberalização de situações, muitas vezes, socialmente graves. Some-se a isso a crise penitenciária vivida pelo Estado brasileiro e as frustrantes tentativas legais de corrigi-la pela via de remédios marcados por um forte sentimento de impunidade e tem-se o retrato da legislação penal atual. Uma completa desarticulação discursiva entre institutos, ausência de correspondência destes a uma política criminal efetiva e paradoxos que se avolumavam em quantidade e qualidade impediam que se pudesse chamar de sistema penal o que brotava dessas reformas."(grifamos)
Com relação às leis, e dentre elas entendemos somada a lei em comento, o eminente ministro relata o seguinte:
"5 - Não é o caso de fazer referência a cada uma das leis responsáveis pelo caos punitivo gerado. Cada uma de ‘per si’ e todas em seu conjunto promoveram o mais sinistro desmantelamento de um sistema penal".(grifamos)
Além de todo o exposto, percebemos que o legislador tem a plena consciência de que leis como a Lei de Crimes Hediondos ‘desmantelaram’ nosso sistema jurídico e se desligaram completamente dos princípios que deveriam obrigatoriamente seguir:
"7 - Dos trabalhos desenvolvidos por esse Grupo de Trabalho Especial e das audiências públicas e com os mais qualificados interlocutores e operadores do sistema criminal com reuniões em diversos pontos do País concluiu-se pela necessidade de reformar, com urgência, ao menos o sistema de penas do Código Penal para reordená-lo aos princípios constitucionais e garantir, simultaneamente, a segurança exigida pela cidadania e a dignidade humana de todos os personagens do processo criminal reclamada pela civilização e pelas leis."(grifamos)
Desta forma, finalizamos o presente capítulo, com palavras de Cezar Roberto Bitencourt: "A lei de crimes hediondos não pode continuar a existir" [43].