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O "erro médico" e o Judiciário: o médico em desvantagem exagerada

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14/03/2015 às 10:13
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2. O SENTIMTALISMO : OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

A imparcialidade do juiz é uma exigência fundamental para a realização do devido processo legal e ela é garantida através da segurança do princípio do contraditório, que é uma das garantias processuais básicas do Estado de Direito, sendo assegurado constitucionalmente, conforme se infere da literalidade do art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988 :

LV- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Sobre esta garantia constitucional, ensinam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, no seu festejado "Teoria Geral do Processo":

 O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de colaboradores necessário: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve"[21]

A garantia do contraditório pode ser considerada, portanto, a medida da imparcialidade do juiz.

"O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e acima delas: esta é a primeira condição para que possa exercer sua função dentro do processo. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente. É nesse sentido que se diz que o órgão jurisdicional deve ser subjetivamente capaz.

A incapacidade subjetiva do juiz, que se origina da suspeita de sua imparcialidade, afeta profundamente a relação processual. Justamente para assegurar a imparcialidade do juiz, as constituições lhe estipulam garantias (Const., art. 95), prescrevem-lhe vedações (art. 95, par. ún.) e proíbem juízos e tribunais de exceção (art. 5º, inc. XXXVII)[22]

Com base no exposto acerca da imparcialidade, entende-se que essa se comprova com o atendimento nos artigos [134] e [135] do CPC, dispositivos que cuidam, respectivamente, do instituto do impedimento e da suspeição. Além dos princípios constitucionais que asseguram o contraditório, ampla defesa, e veda o tribunal de exceção.

Em suma a imparcialidade é o fato o juiz decidir e atuar de acordo com a expressa previsão legal, buscando a solução da lide a que foi submetido por meio do uso da racionalidade em um processo “cognitivo”, afastando-se de um juízo subjetivo eivado de valores morais, éticos e pessoais.

Isto posto, é notório que o sentimentalismo do julgador lesa os princípios constitucionais citados.           


CONCLUSÃO

Os requisitos e tipificações legais que envolvem a responsabilidade civil do médico vêm recebendo por nossos tribunais tratamento maleável. Assim, não se respeita os elementos de avaliação próprios do sistema jurídico que estamos inseridos, aumentando os riscos da justiça que será alcançada vir viciada por uma noção apenas sentimental/ subjetiva do julgador.

O direito não pode ser impulsionado apenas por um "sentimento de justiça". Ora, o direito deve ser baseado em fundamentos técnicos e dogmáticos, que são condição para a manutenção da segurança jurídica. Um direito sentimental e subjetivo cria insegurança, lesando os princípios da legalidade e igualdade.

Este sentimentalismo exacerbado acaba rompendo com requisitos legais tipificados que prescrevem os requisitos mínimos capazes a gerar o dever de indenizar. A culpa, o nexo de causalidade e o dano requisitos indispensáveis para dar ensejo a responsabilidade civil vem sendo mitigados pelas interpretações jurisprudenciais. Brilhantemente SCHREIBER denominou o sentimentalismo do julgador como a "erosão dos filtros de reparação".[23]

A não observância dos requisitos as construções jurisprudenciais desamparadas pelo direito gera por via de consequencia a "erosão" do direito e dos requisitos que ensejam o dever de indenizar.

Ora, a utilização da técnica jurídica/ lei, torna a decisão mais segura. Deve-se afastar o subjetivismo na análise do caso concreto.

Uma jurisprudência sentimental, divorciada da dogmática, e uma doutrina que substitui a produção dogmática por palavras de ordem, ainda que embaladas em bons propósitos, desservem ao Direito, pois dissolvem o sistema. No entanto, a noção de sistema é essencial para a racionalidade do Direito, cabendo razão a Humberto Avila quando anota: “Quando se aplica, sem valorar sistemática e problematicamente, não se aplica: distorce-se a finalidade concreta do Direito”. É urgente, pois, que tenhamos a consciência da necessidade de sistematização, não mais fechada e axiomática, não autárquica e limitada a um formalismo de fachada, mas daquela que, por um lento e constante lavor de construção agrupa, em torno dos critérios materiais acolhidos pelo Direito Privado, as soluções que são progressivamente alcançadas[24].

Como já dissemos o médico vem sendo exposto a uma desvantagem exagerada junto aos julgadores nas demandas do dito "erro médico", que buscam em um verdadeiro sentimentalismo jurídico a proteção a todo custo do paciente, nesta proteção os julgadores acabam desviando do direito, gerando a erosão do direito e dos requisitos que ensejam o dever de indenizar, lesando princípios fundamentais do direito.

Os ilustres autores Antônio Ferreira e Alex Pereira ao concluírem citam de maneira magistral o dilema e a questão atual que cerca a responsabilidade do médico,

...na busca da verdade verdadeira, sempre sob o manto da ética que emana dos Princípios Constitucionais Brasileiros e trazê-los para a realidade única e completa dos autos, cuja maior preocupação e excelência é a sua individualidade. Pelo que gratuidades desmedidas e ao arrepio da constituição (falta de comprovação), inversão do ônus da prova no início da instrução processual, valor da causa manipulando para lesar o erário e desvinculado do pedido, exatamente para dar coragem aos trabalhadores da industria das indenizações e na banalização do Dano Moral, nos pedidos milionários, culpa presumida entre questões que envolvam somente pessoas humanas, servem para mascarar o feito e afastar o Julgador do rastro e do cheiro de justiça, beneficiando infratores, oportunistas da primeira e da última hora, aventureiros e trabalhadores da industria do dano.[25]

O médico nos dias atuais é visto como membro da máfia de branco, demonizado por medidas governamentais e pela mídia.

Notadamente a ação de marketing orquestrada contra médicos fomenta o sentimentalismo do julgador, ora, o julgador não é neutro, não é uma máquina. Contudo, a ação de marketing contra os médicos deve ser reconhecida por estes julgadores, assim, como devem reconhecer que esta classe é sim a "bola da vez" da industria de dano sem fundamento.

O médico infelizmente é a bola da vez na indústria do dano que assola o judiciário brasileiro. O paciente ciente do protecionismo e dos institutos aplicáveis a esta relação procura na demanda uma "loteria jurídica". Ora, é notório que a industria do dano sem fundamento é campeã das demandas do dito erro médico. Esta loteria jurídica infelizmente é fomentada pelo próprio sistema jurídico. E é esta a visão que procuramos demonstrar neste artigo.

Alex Pereira e Antônio Couto citam Miguel Kfouri, que em seu livro Culpa Médica e o ônus da prova, informa que 80% (oitenta por cento) das ações contra médicos são julgadas improcedentes, afirmando que o entusiasmo em proteger o paciente oferecendo fomentos imensuráveis para pedidos infundados de danos morais, gerou a realidade cruel de que em 100% dos processos o médico foi réu, muitas vezes em condições desiguais e no mais alto confronto com o maior dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana[26].

Assim os julgadores devem redobrar seus cuidados nestas demandas, e atentar para o real cenário atual, que vai além das ações de marketing contra esta classe.

A indústria do dano contra médico gera graves consequências nos Estados Unidos da América, o entusiasmo em proteger pacientes a qualquer custo afastou médicos de especialidades "mais processadas", como ginecologia e obstetrícia, pediatria e ortopedia. Os americanos sofrem com a extinção destas especialidades em seus estados.

Certo é que se no Brasil não tivermos mudanças nestes posicionamentos, onde o próprio sistema jurídico e juristas fomentam a indústria do dano contra esta classe, protegendo pacientes a qualquer custo com a implementação da justiça sentimental, o cenário da medicina defensiva e a "fuga" de profissionais de áreas mais visadas por esta indústria repetirá o que já acontece nos EUA, a extinção de profissionais da linha de frente desta relação será realidade, e quem sofrerá demasiadamente com a implementação do caos será a sociedade brasileira em geral.

É certo que os médicos brasileiros atentos ao cenário atual, não contando com nenhuma proteção jurisprudencial, em busca de prevenção, irão se afastar da linha de frente desta relação, implementando a medicina defensiva. Assim como herança iremos nos deparar com médicos se afastando de urgências e emergências, maternidades e demais procedimentos de alto risco.

A saúde brasileira entrará em colapso, com: a extinção e carência de profissionais, onerosidade aos pacientes e aos planos de saúde, o médico irá requisitar maior número de exames para se respaldar, além da interferência negativa na relação médico e paciente, recusa no atendimento de questões mais complexas e o principal será o maior sofrimento do paciente.

Este maior sofrimento não decorre apenas do fato de a medicina tornar-se mais dispendiosa e artificial, mas também a menor resolutividade. Encaminhando-se demais, realizam-se exames excessivamente, quando poderia ser dada  uma solução de maneira mais simples e efetiva à maioria dos males que aflige a população. Assim como outro fator de sofrimento será a recusa de atendimento a pacientes graves, deixando vários pacientes à própria sorte.

Assim é certo que a apuração da responsabilidade médica merece melhor cautela. Como afirmado por Antônio Pereira Couto Filho no artigo "O ovo da serpente eclode na Caixa de Pandora",

         A saúde agoniza no Brasil, mas a esperança é a última que morre. Em 1999, portanto há pouco mais de cinco anos, escrevíamos um artigo, intitulado O Ovo da serpente, cujo conteúdo tinha a proposta de alertar a sociedade brasileira em geral, para os riscos de se copiar o modelo norte-americano, no que permite ao estabelecimento da iníqua "indústria do dano". Na ocasião, sinalizamos que médicos e hospitais, públicos e privados, estariam à mercê de uma avalanche de processos judiciais, dizimando a relação médico- paciente e desnudando a ineficácia do Direito Constitucional como garantidor da saúde de todos os cidadãos. Lamentavelmente, nossa previsão se concretizou, o caos está estabelecido e o ovo da serpente eclode na caixa de pandora.

(...)

         O início da constituição de uma Comissão mista dentro da Frente Parlamentar de Saúde, formada por médicos, advogados e parlamentares, faz-se necessária para parametrar e definitivamente estabelecer lugar de destaque para o seguimento Saúde através do pretendido Código Nacional da Saúde.[27]

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O professor Irany Novah destaca que a profissão do médico é de alto risco, e o êxito de seu trabalho não depende exclusivamente dele mas também de múltiplos fatores que independem de sua vontade.

O malogro dos resultados que às vezes lhe atribuem decorre do fato de o doente ou seus familiares projetarem nele seu inconformismo com a crueldade do destino e a limitação da medicina. A divulgação ampla da insatisfação de resultados pertinentes ou não a casos indiscriminados feita pela mídia tem gerado confusão quanto ao que realmente seja erro médico. Ainda pior são os malefícios decorrentes do abalo da confiança do paciente no médico, que é fundamental para o processo de cura. Não fosse suficiente, a generalização expande para toda a classe e não poupa ninguém. Assim, todos passam a duvidar dos médicos e, mais grave ainda, fica em jogo a própria medicina brasileira. [28]

O autor ainda adverte de maneira magistral :

É de bom alvitre que todos se inteirem bem do assunto, para que saibam discernir o falso do verdadeiro, sem se deixar levar pela emoção na interpretação de fatos publicados e geralmente até mesmo alardeados. (g.n.)[29]

  O autor ainda destaca que a visão do juiz deve ser "extremamente técnica pois é atribuição da justiça dirimir as dúvidas sobre o comportamento dos indivíduos dentro da sociedade".

Assim, ainda continua o autor, para a clara separação entre o que seja real e imaginário, na responsabilidade civil dos médicos.

Nesse contexto a Justiça exige três premissas, a saber: 1.existência de dano (óbito, mutilação, etc); 2. participação do médico e, 3. comprovação de nexo de causa e efeito, ou seja, prova de que o dano foi produzido pelo procedimento médico. Uma vez estabelecido esses pré-requisitos, há de ser comprovada uma ou mais das três condições seguintes: Negligência (displicência, desleixo, preguiça); imperícia (incompetência); e imprudência (procedimento feito com aflição, sem cautela).[30]

Como já dissemos a justiça sentimental implementada nas causas do dito erro médico se afasta do direito e da noção de justiça, pois mitiga pressupostos indispensáveis para configuração do dever de indenizar.

Ao concluir seu estudo o autor destaca

... quanto é importante o médico, o jurista, o jornalista e o cidadão em geral, terem ideias claras dessa problemática para fazer ele próprio o julgamento dos êxitos e dos malogros que a medicina moderna pode propiciar.

(...)

O estudo científico do erro médico, tendo em vista seus aspectos legais, permite a compreensão da problemática em sua essência, dando subsídios para reflexões que conduzam à verdade dos fatos.[31]

É de extrema importância o estudo e a conscientização da problemática que envolve a indústria do erro médico no Brasil. As consequências da fomentação da proteção do paciente a qualquer custo trará herança desastrosa para a comunidade.

Assim, cabe aos juristas e operados do direito maior interação sobre o assunto, extinguindo pré-suposições e pré-conceitos, amparando esta classe nas demandas infundadas de erros imaginários perpetradas por pacientes.

Deve-se extinguir as presunções de culpa, de nexo de causalidade e de dano, ora, em matéria de prova a presunção deve ser legal, e como vimos não há amparo legal para presunção destes institutos e a consequente modificação do encargo probatório.

Cabe aos juristas analisar o cenário atual, ora, com os dados que já apresentamos é notório que o médico vêm sendo exposto a demandas sem fundamentos, e a prova de sua inocência vêm se tornando cada vez mais dispendiosas, com tantos institutos aplicados pela justiça sentimental, onde são lesados direitos fundamentais do médico, como a erosão dos filtros de reparação.

O julgador deve se abster de sentimentalismos, buscando a compreensão da problemática.          É necessário rever posicionamentos e principalmente cabe aos juristas maior estudo sobre o direito da medicina, ora, a medicina possui fatores aleatórios que a diferem de qualquer outra prestação de serviço. A medicina não é ciência exata, a falibilidade da ciência é uma realidade, há ainda o organismo humano que é imprevisível e incompreensível, o resultado não depende apenas do profissional, há riscos em todo e qualquer procedimento, assim o infortúnio cerca esta atividade.

Portanto, merecem e devem ser relidos os institutos flagrantemente protecionistas adotados pelo Judiciário. Cabe ao Judiciário e aos juristas a interação com o cenário atual. E a conscientização do verdadeiro fundamento da Justiça, despedindo de sentimentalismos e pré-suposições perpetradas por nós juristas leigos em medicina, onde foram criadas teorias de culpa presumida, e outras formas de direito descomprometido com a Justiça.

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Sobre a autora
Amanda Bernardes

Advogada Especialista em Defesa Médica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Amanda. O "erro médico" e o Judiciário: o médico em desvantagem exagerada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4273, 14 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36385. Acesso em: 18 nov. 2024.

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