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Justiça Militar: direito de recorrer em liberdade

01/01/2003 às 00:00
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            A liberdade segundo o art. 5 º, caput, da Constituição Federal de 1988, é um direito fundamental do cidadão, assegurado a todos os brasileiros, natos ou naturalizados, aos estrangeiros residentes no país, e até mesmo aos estrangeiros de passagem pelo território nacional. No Estado de Direito, a liberdade é a regra e a prisão a exceção, que somente pode ocorrer no casos expressamente previstos em lei, desde que fundamenta a decisão e preenchidos os requisitos que autorizam a sua decretação, sob pena da prática de abuso ou ilegalidade.

            A prisão na República Federativa do Brasil que subscreveu vários tratados internacionais, dentre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH, somente poderá ser decretada por autoridade judiciária competente. Admite-se exceções, no caso da prisão em flagrante delito, ou em decorrência da prática de crime militar ou transgressão disciplinar militar definidos em lei, o que afasta a possibilidade dos Regulamentos Disciplinares preverem situações de cerceamento da liberdade do militar por meio de decreto proveniente do Poder Executivo, Federal ou Estadual, como ocorreu recentemente com o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro.

            Na área militar, caberá ao juiz auditor militar, ou ao Conselho de Justiça Permanente destinado ao julgamento das praças, ou ao Conselho de Justiça Especial, destinado ao julgamento dos oficiais, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, ou mediante representação da autoridade encarregada do inquérito policial, em qualquer fase deste ou do processo, decretar a prisão preventiva do militar, estadual ou federal, em atendimento ao disposto no art. 254, do Código de Processo Penal Militar.

            Ao decretar a prisão preventiva do militar o auditor ou Conselho de Justiça devem analisar se os requisitos estabelecidos nos arts. 254 ou 255 do Código de Processo Penal Militar estão presentes, caso contrário, esta prisão será ilegal, autorizando por parte do prejudicado a interposição de habeas corpus perante a autoridade judiciária competente, em atendimento aos princípios que foram estabelecidos pela Constituição Federal.

            No direito militar, com fundamento na Constituição Federal e nas leis de organização judiciária federal, o órgão competente para conhecer os pedidos de habeas corpus decorrentes de atos praticados por juízes auditores militares, ou pelos

            Conselhos de Justiça, que sejam considerados ilegais, é na área federal o Superior Tribunal Militar - STM, com jurisdição em todo o território nacional. Na área estadual, nos Estados onde existem os Tribunais Militares, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a competência pertence a estes Pretórios. Nos demais Estados da Federação, caberá aos Tribunais de Justiça que exercem o segundo grau da Justiça Militar Estadual.

            O militar possui os mesmos direitos que são assegurados aos civis em tema de liberdade. O direito de ir e vir somente poderá ser cerceado com base em uma decisão judicial que esteja fundamentada em atendimento ao disposto na Constituição Federal, e quando o caso em discussão não admitir a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, ou a menagem na forma estabelecida pelo Código de Processo Penal Militar.

            O princípio da inocência estabelecido pela Constituição Federal e previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH, assegura ao militar, primário, possuidor de bons antecedentes, o direito de responder ao processo em liberdade, e também o direito de recorrer em liberdade da decisão proferida pelo Conselho de Justiça, que o tenha condenado em 1 ª instância a pena privativa de liberdade. O militar não é obrigado a se recolher preso para que possa apelar, em atendimento ao art. 527 do CPPM.

            Ao analisar a norma do Código de Processo Penal Militar, Luiz Flávio Gomes observa que, "O art. 527 do CPPM tem redação muito parecida com o art. 594 do CPP. Diz aquele dispositivo : ‘O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se primário e de bons antecedentes, reconhecidas tais circunstâncias na sentença condenatória.’ Segundo a tese que compartilhamos, esse art. 527 está revogado, isto é, não foi recepcionado pela ordem constitucional de 88. E se tivesse sido recepcionado, agora estaria revogado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8 º, 2, h)". (1)

            Caso se admita a vigência do artigo do CPPM, jamais pode-se admitir a prisão como decorrência automática ou obrigatória da sentença condenatória. Concebendo-se tal prisão como de natureza cautelar, só não escapará da irrefutável nulidade se devidamente fundamentada, impondo-se ao juiz a demonstração dos motivos fáticos e jurídicos justificadores da medida excepcional. (2)

            Poderia se indagar na busca da aplicação dos princípios constitucionais, se o militar com maus antecedentes, com condenação anterior a pena restritiva de direitos na Justiça Comum, ao responder a um processo perante a Justiça Militar no qual venha a ser condenado a pena privativa de liberdade, poderia apelar da decisão sem a obrigação de se recolher preso, condição esta imposta pelo Conselho de Justiça sem fundamentar os motivos que autorizavam o cerceamento liminar?

            A resposta a esta indagação pode ser encontrada no acórdão proferido com votação unânime pelo Superior Tribunal Militar, no julgamento do HC n º 2002.01.033727-0/RS, publicado no site do IBCCRIM, http://www.ibccrim.org.br, o qual teve como relator o eminente Ministro Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, que decidiu pela concessão da ordem para que os pacientes pudessem apelar da decisão proferida pelo Conselho de Justiça Permanente da 2 ª Auditoria Militar da 3 ª Circunscrição Judiciária Militar.

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            Segundo o voto do relator, "Os maus antecedentes e a perda da primariedade dos Pacientes não são elementos suficientes para negar-lhes o direito de apelar em liberdade, por afrontar o princípio de não-culpabilidade. A prisão processual, recepcionada pela ordem constitucional vigente, exige a demonstração de sua necessidade, sendo que singela referência à perda de primariedade e maus antecedentes não satisfazem o requisito de sua validade. Os pacientes, ademais, responderam ao processo em liberdade, nada ocorrendo que justifique o decreto de prisão".

            Pode-se afirmar, que no vigente ordenamento constitucional, o cerceamento da liberdade não admite meros juízos de possibilidade, ou mesmo de especulação, para que a liberdade sofra qualquer limitação. A autoridade judiciária, civil ou militar, deve fundamentar a sua decisão, apontando os elementos que justificam o encarceramento liminar do acusado sem que exista uma decisão transitada em julgado.

            Deve-se observar, que os Tribunais possuem competência por meio dos relatores de concederem liminar em sede de habeas corpus, que deve ser cumprida imediatamente a partir do momento em que a autoridade coatora for notificada, sob pena de violação dos preceitos processuais, o que traz como conseqüência a responsabilidade do Estado, uma vez que a prisão tornou-se ilegal não podendo o paciente permanecer preso.

            A responsabilidade do Estado em caso de prisões indevidas, processuais ou administrativas, é objetiva, prevista no art. 37, § 6 º, da Constituição Federal. Conforme ensina Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Administrativo Brasileiro, ao ser condenado a indenizar o dano suportado pelo administrado, que deve demonstrar o nexo de causalidade entre o dano e ato praticado pelo agente, o Estado tem legitimidade e deverá propor uma ação de regresso contra o causador do dano, o funcionário público integrante de qualquer dos Poderes da União, do Estado, Distrito Federal ou Município.

            Com base na decisão proferida pelo STM, pode-se afirmar que o militar federal ou estadual possui o direito de recorrer em liberdade, sem a obrigação de se recolher preso. A prisão cautelar somente poderá ocorrer se existirem motivos que demonstrem a sua necessidade, devendo a autoridade judiciária fundamentar a sua a decisão em atendimento ao mandamento constitucional. Caso contrário, a presunção de inocência estabelecida no texto constitucional e na Convenção Americana de Direitos Humanos deve ser observada, sob pena de quando violada o interessado ingressar com a ação constitucional de habeas corpus. Neste caso, caberá a autoridade competente se assim o entender conceder medida liminar, que deverá ser cumprida de forma imediata em atendimento as normas que se aplicam à espécie.


Notas

            1. GOMES, Luiz Flávio. Direito de Apelar em Liberdade – Conforme a Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos. São Paulo : Editora Revistas dos Tribunais, 1994, p. 84.

            2. GOMES, Luiz Flávio, ob. cit., p. 84.

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Sobre o autor
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa

DOM PAULO TADEU RODRIGUES ROSA é Juiz de Direito Titular da 2ª Unidade Judicial da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, Mestre em Direito pela UNESP, Campus de Franca, e Especialista em Direito Administrativo e Administração Pública Municipal pela UNIP. Autor do Livro Código Penal Militar Comentado Artigo por Artigo. 4ª ed. Editora Líder, Belo Horizonte, 2014.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Justiça Militar: direito de recorrer em liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3642. Acesso em: 25 abr. 2024.

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