Estado de sítio em numancia

14/02/2015 às 11:34
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Nuvens escuras e pesadas, onde antes havia céu de brigadeiro.

~~ Nas redes sociais circulou post ou mensagem de uma pessoa que sentia uma espécie de pânico social, mas não é agorafobia: medo do contato social. A diferença básica é que a pessoa não se sente isolada e nem é possuída por algum tipo de repulsa ao convívio social. Alega sentir uma segregação da verdade e da história, porque é como se estivesse/vivesse fora do tempo e do espaço – e também não sofre de nenhuma perturbação da lógica! Apenas tem consciência dos fragmentos de realidade que nos povoam e ludibriam nesta era pós-moderna. O que ela nos diz é simples:
"Diariamente, quando acordo, o calendário no celular me mostra que estamos na segunda década do século 21. Mas a realidade, ao longo do dia, me faz duvidar disso, transportando-me, muitas vezes, para os momentos mais sinistros da Santa Inquisição".
 Um dos comentários foi o seguinte: “Acho que é porque vivemos sob a exceção. Mas a maioria nem sonha com isso, só ‘curte’ a vida”. Seguido de mais um alerta para os males do excesso de consciência.
 Certamente, há muitos significados na proposição do emissor e só ele poderia descrever. Porém, um deles, com certeza, refere-se ao fato de que vivemos em estado de suspensão/suspeita permanente; está suspensa a confiança e se duvida de qualquer sinal de credibilidade: suspeitamos e somos suspeitos contínuos. O mais grave sentimento provocado pelo Estado de Exceção Permanente (global, exemplar e hegemônico) é o de provocar a desconfiança generalizada. Pois, só assim pode vigorar o toque de recolher das almas e o uso recorrente ao Estado Gendarme: um Estado guerreiro, militarizado, sempre apto ao controle armado, penal, prisional da sociedade.
Nesse estado de coisas, há negação da ontologia (o passado não interessa mais e, portanto, deixe para trás) e desconhecimento da teleologia (o futuro não me pertence, só quero viver) e isto resulta, por fim, na supressão proposital do senso de estabilidade e de previsibilidade. Juridicamente, abdica-se do Princípio da Razoabilidade. O Estado de Exceção pode ser tudo, menos razoável no uso/abusivo dos meios de controle/coerção.
Exemplo mórbido disso ocorreu com a morte de David Crowley, diretor e roteirista do filme Estado Cinza: “hipoteticamente” o Estado mais policialesco do mundo. Apareceu morto, juntamente com sua esposa e filha de cinco anos. O filme é uma produção distópica – isto é, sem utopia alguma – que retrata uma América, no futuro próximo, ocupada e regida pelo Estado policial militarista .
Agora, desfeitos da teoria da conspiração – supondo-se ser apenas mais uma de tantas tragédias mórbidas –, olhemos como tem razão o internauta em suspeitar da presença inquisitorial de certas forças ocultas. Para tanto, não é preciso alegar a obviedade de que a privacidade de todos é um amontoado de lixo diante da presença do Estado Gendarme. Também podemos olhar para o passado. Descontando-se o clássico grego de Homero, Ilíada, como a primeira narrativa de um Estado de Sítio, ainda temos Cervantes – e bem ao gosto da Santa Inquisição.
Miguel de Cervantes (1547-1616) teve uma relação interessante com esta visão da política de conquista inerente ao estado da exceção (prudência versus exceção), porque além de produzir exatamente na época em que se engendravam as mais fortes teorias sobre a Razão de Estado, ele mesmo foi seqüestrado, esteve preso e encarcerado. Entrou para o Exército e lutou na Batalha de Lepanto, quando foi ferido e quase perdeu uma das mãos. A obra mais conhecida é Don Quixote, mas a única peça teatral trágica de Cervantes que sobreviveu é O Cerco de Numancia, em que se encena a resistência desesperada da população contra as forças romanas que queriam conquistá-la. Nosso amigo e nós, estamos cercados de romanos e nem desconfiamos.

Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos

Vinicius Valentin Raduan Miguel
Professor da Universidade Federal de Rondônia, onde é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública e Direitos Humanos.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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