Artigo Destaque dos editores

Caso Pedrinho: algumas considerações oportunas

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

6. DOS SUPOSTOS CRIMES PRATICADOS

Segundo a imprensa, houve uma denúncia que imputou à mulher dois delitos, quais sejam: seqüestro 40 e parto suposto, supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido. 41 Ocorre que, pode ter ocorrido prescrição, que é uma causa extintiva da punibilidade, em face do tempo, eis que os dois delitos tem penas com prazo prescricional de 12 anos. 42

Quanto ao crime de parto suposto, não resta qualquer dúvida, é um crime instantâneo, ou seja, sua consumação se deu com o ato do registro. No entanto, o prazo da prescrição, de acordo com o art. 111, inciso IV, do Código Penal, se iniciou no dia em que o fato se tornou ostensivamente conhecido. 43

O crime de seqüestro, por sua vez, é mais complicado. Já se discutiu se a criança pode ser sujeito passivo de referido crime, não pairando mais qualquer dúvida de que a resposta é afirmativa. Outrossim, o crime pode ser praticado mediante violência, grave ameaça ou fraude. No entanto, o núcleo do tipo (palavra que exprime a conduta proibida) é privar, ou seja, é necessário que a vítima tenha a sua liberdade restringida.

Parece-nos, todavia, mais defensável na espécie, o crime de subtração de incapazes. Tal delito visa à proteção familiar, sendo que o Código Penal, em seu art. 249, que dispõe: "Subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial. Pena – detenção de dois meses a dois anos, se o fato não constitui elemento de outro crime".

O delito nupercitado está no rol dos crimes "contra o pátrio poder, tutela ou curatela" (CP, Cap. IV), sendo que os defensores do crime de seqüestro podem estar simplesmente "jogando para a imprensa", como se a eles fosse deferido o direito de contrariar abertamente a norma. Com efeito, há um princípio da especialidade , pelo qual uma norma, quanto mais específica se apresentar, afastará as demais.

É pueril a afirmação de que o crime do art. 249 do CP exige uma relação familiar do agente com a vítima, tendo em vista que é unânime a posição doutrinária, no sentido de que se trata de delito comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa. Sendo assim, em face do princípio da especialidade, o crime perpetrado foi o do art. 249 do CP.

Segundo a imprensa, o Juiz recebeu a denúncia, 44 ou seja, fez um primeiro juízo de admissibilidade sobre a tipicidade da conduta. Não obstante, tal decisão se baseou no princípio in dubio pro societate . Tal princípio prevalece na fase postulatória do processo, mas na decisória haverá de prevalecer o princípio in dubio pro reo , quando, então, o Juiz terá que analisar o momento em que cessou a violação da liberdade.

Até mesmo a criança tem vontade. No caso de uma vítima enganada, tal vontade estará viciada, mas existirá. Desse modo, o crime de seqüestro, há muito cessou. Não se pode dizer que a vítima estava privada de sua liberdade de ir e vir somente porque ela não teria a opção de ir ao encontro de seus pais biológicos. Tal fraude, não integra o núcleo o tipo. Dizer o contrário se assemelha ao argumento de que o louco não tem dolo, ou seja, é insustentável.

O núcleo do tipo pode ter se realizado se alguém se valeu de algum ardil, engodo – fraude -, para subtrair a criança, quando recém-nascida de um hospital de Brasília. O crime do art. 242 do CP (parto suposto) teria ocorrido em conexão teleológica: o crime do art. 148 do CP (seqüestro) constituiu-se em meio para alcançar o crime-fim. Sobre o assunto, consta de um livro não publicado, mas que será no dia que o autor criar coragem para tal:

"O princípio da subsidiariedade enuncia que a prática dois crimes com o mesmo objeto jurídico, sendo o primeiro caminho necessário para a prática do segundo, provoca a imposição unicamente da pena do crime mais grave, v.g., uma pessoa que, com necandi animus, desferir disparo de arma de fogo em outra matando-a, terá praticado dois crimes (arts. 121 e 132 do CP). Ambos têm o mesmo objeto jurídico, ou seja, a vida. Também, não há como praticar homicídio sem causar risco à vida, ou seja, o crime do art. 132 do CP, que é subsidiário. Daí a regra contida expressamente no último artigo mencionado, no sentido que a pena só é imposta "se o fato não constitui crime mais grave".

Entendemos inadequada a expressão do art. 132, transcrita, porque a lei não deve conter palavras vãs, pois é óbvia a regra da absorção do delito mais brando pelo mais grave quando este for impossível de ser praticado sem a realização daquele, mormente quando ambos tem o mesmo objeto jurídico. Desse modo, podemos afirmar que, estando presentes os requisitos para o reconhecimento do princípio da subsidiariedade o Juiz deve aplicar a regra da absorção.

O art. 219 do CP trata do rapto, sendo que este só se caracterizará se estiver presente o dolo específico "para fins libidonosos", 45 mas o rapto para se alcançar o estrupro não é absorvido por este, uma vez que o próprio CP assim determina em seu art. 222.

A penalogia, também denominada ciência penitenciária, é a ciência auxiliar que estuda as penas e demais medidas a serem impostas para o combate à criminalidade. Portanto, é em decorrência dela que decorre o princípio da consunção, que se caracteriza pela tentativa de se imprimir maior humanidade à "justiça do caso concreto". Por tal princípio, diante do caso concreto, o julgador deve verificar se naquele fato concretizado o crime-meio era necessário à consecução do delito-fim, não interessando se eles têm o mesmo objeto jurídico.

O princípio da consunção é mais amplo, visto que não exige que os crimes tenham o mesmo objeto jurídico (embora possam ter), nem que o crime-meio seja essencial para a realização do crime-fim em quaisquer circunstâncias, bastando que, na hipótese sob análise o crime meio tenha sido essencial. Só para exemplificar, imagine-se que um homem mate uma mulher que sabe estar grávida há seis semanas, o que constituirá dois delitos – homicídio (CP, art. 121) e aborto (CP, art. 125) – mas o Juiz pode reconhecer o princípio da consunção. No caso, os dois delitos têm o mesmo objeto jurídico – vida -, mas o homicídio pode ser alcançado, em tese, sem a prática do aborto. No entanto, na hipótese, o aborto é meio necessário para alcançar o homicídio, o que autoriza o reconhecimento do princípio da consução. Ocorre que, enquanto o princípio da subsidiariedade provoca necessariamente a absorção do crime menos grave pelo mais grave, o princípio da consunçao, como decorre de política criminal, depende exclusivamente da vontade judicial, pois o Juiz é quem efetivamente estabelece, ao menos na prática, a política criminal, tendo a faculdade, portanto para dizer se é ou não o caso de aplicação do princípio da consunção.

A conexão material de crimes pode ser: a) teleológica – um crime é praticado como meio para se alcançar um crime fim, v.g., um homem rapta uma mulher e depois a estupra (CP, arts. 219 e 213); b) causal – um crime é praticado apenas porque outro lhe antecedeu, ou seja, o primeiro é causa do segundo, um homem mata pessoa que o viu praticando tráfico ilícito de entorpecente (CP, art. 121, § 2º, inciso IV e Lei nº 6.368/1976, art. 12); c) ocasional – a simples circunstância cria o nexo entre os delitos, v.g., um homem, desejando matar outro desfere-lhe um tiro de fuzil, mas o disparo transfixia a cabeça da vítima, matando também uma mulher que está próxima.

A conexão ocasional, normalmente, induz ao concurso formal ideal de crimes, mas pode gerar outra espécie de concurso de crimes, conforme estudaremos no momento oportuno. Outrossim, a conexão causal, em regra provoca a imposição de duas penas, considerando-se, inclusive, o delito consequente da causa, mais grave, visto que, em regra, praticado para assegurar impunidade ou vantagem do delito anterior.

A conexão teleológica, se não constituir hipótese de aplicação do princípio da subsidiariedade pode ensejar o princípio da consunção. Ocorre que, como a aplicação do princípio da consunção decorre de política criminal e como é Juiz que lhe dá efetividade, é variável sua concretização.

Pode ocorrer de um homem pegar uma arma em sua casa para matar outrem, realizando seu desiderato. Nesse caso, o porte da arma ofende a incolumidade pública Decreto-Lei nº 3.688/1941) e o homicídio a vida (CP, art. 121), não sendo possível falar em aplicação do princípio da subsidiariedade. Não obstante, é plenamente aceitável a aplicação do princípio da consunção, ficando o delito menor absorvido pelo maior".

Pelo princípio da subsidiariedade, o crime do art. 249 seria facilmente absorvido pelo crime de parto suposto, tendo em vista que ambos têm como objeto jurídico que o núcleo da sociedade – a família (CP, título VII). No entanto, quanto ao crime de seqüestro, o qual, mesmo em tese, acreditamos não ter se concretizado, é possível o reconhecimento de que o fim maior era obter o direito de filiação.

Ao nosso sentir, não se faz presente o elemento subjetivo do tipo suprimir ou alterar direito inerente ao estado civil, essencial para configuração do art. 242 do CP. Na verdade, o prejuízo aos país biológicos é corolário do dolo de subtrair incapaz de quem o tem sob sua guarda (art. 249). Desse modo, ao contrário de ter o dolo genérico do seqüestro. Destarte, mais provável é que, se, absurdamente, forem considerados dois tipos possíveis, o delito fim seja o do art. 249 do CP, o que torna aplicável o princípio da consunção.

Ocorre que é complicado em pensar em aplicação do princípio da consunção quando o crime-fim tem pena menor que o crime-meio. Todavia, como estamos tratando de possíveis erros, o próprio Superior Tribunal de Justiça nos dá exemplo de uma política criminal em que o crime-fim, com pena menor, pode absorver o crime meio, v.g., Súmula nº 17, que dispõe: "quando o falso se exaure no estelionato, sem maior potencialidade lesiva, é por este absorvido". 46

Há uma tendência abolicionista do Direito Penal, já o dissemos. Ele é meramente simbólico, servindo basicamente para a uma determinada "política criminal", 47 pouco conhecida por nós. Ele se presta basicamente ao "terror estatal", 48 sendo que Gustav Radbruch já nos alertava para a necessidade de se criar um "direito de melhoria e de conservação da sociedade: alguma coisa melhor que o Direito Penal e, simultaneamente, de mais inteligente e mais humano do que ele". 49


7. DIREITOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS EM JOGO

Não constitui notícia a invasão da privacidade de outrem, ofendendo-lhe a dignidade e afetando a honra subjetiva, sem falar da honra objetiva, manchada pelos inúmeros fatos prejudiciais à imagem de uma pessoa comerciante, no que concerne à sua higidez financeira. Com efeito, não é notícia, mas crime, dizer das dívidas que suposta autora de delito contraiu e não honrou.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A liberdade de comunicação é constitucional, sendo uma norma de eficácia plena. Não obstante, também é de eficácia plena a proteção da dignidade da pessoa humana. Finalmente, estão em jogo todas as normas de proteção ao adolescente e à família, sem falar das normas atinentes à Administração Pública, visto que, embora não estando no Poder Executivo, Juízes e Membros do Ministério Público estão vinculados ao princípio da legalidade. Assim, possível é a proposição de mandado de segurança para, em respeito à vitima de todo "drama familiar", obstar o prejudicial assédio de repórteres, bem como a publicação de matérias capazes de gerar danos irreversíveis à personalidade de uma pessoa em desenvolvimento.


8. NOSSA CONCLUSÃO

Mais adiante, o Juiz poderá se redimir e aplicar o art. 383 do Código de Processo Penal, fazendo imperar a necessária emendatio libeli, corrigindo a capitulação legal para o crime do art. 249 do CP. Este, sendo crime instantâneo, estaria atingido pela extinção da punibilidade, em face da prescrição, visto que sua pena máxima é de dois anos e a prescrição se deu em quatro anos, contados da data da subtração (art. 109, inciso V, do CP).

No entanto, pode o Juiz, violando o princípios da especialidade e da legalidade, entender que restou caracterizado o delito do art. 242 do CP, só corrigindo o libelo quanto ao delito-meio, aplicando, ao caso, o princípio da consunção. De qualquer forma, o crime de seqüestro pode estar prescrito, haja vista que a pena máxima é de cinco, com prescrição em doze anos.

Sendo o Direito Penal é meramente simbólico, não há razão para se pensar em persecução criminal no caso. É certo que o crime é um fato grave. Porém, mais graves serão os reflexos da persecução criminal. É difícil imaginar a cabeça de um adolescente que perdeu um pai – que não era pai – há poucos dias, depois ficou sabendo que de um drástica história e viu que sua "mãe" pode ser uma criminosa e que, pior, ela está ameaçada de prisão por causa de um ato dela, mas que, para ele, será por causa dele.

No "Caso Pedrinho" o ponto central é ele, pessoa em desenvolvimento. Também, está em discussão a família, que não pode ser objeto de pesquisa de opinião pública, promovida por editora de televisão. Tudo o que se fez – e se faz – nesse sentido é violar a intimidade de vítimas de graves infortúnios, sendo melhor a concessão de uma liminar, no sentido de se subtrair de um povo fofoqueiro o conhecimento de fatos que devem ficar adstritos a uma família. Respeitemos a lei e pensemos mais no bem-estar de Pedrinho, abandonando nosso lado "normal" da curiosidade insana.

Seria maravilhoso ver Pedrinho feliz. Ele perdeu um pai, ganhou outro. Encontrou mais uma mãe, agora tem duas. Mas, também, por justiça – como exposto, relativa – vê-lo ao lado dos pais biológicos, que tanto sofreram por muitos anos, é necessário para completar essa felicidade. A mulher que subtraiu Pedrinho, se perdoada por todos – sem exceção -, será feliz e completará a felicidade dele. É certo, que talvez seja exigir demais dos pais biológicos, que, sem dúvida alguma, ponderarão sobre a conveniência da propositura de uma ação para reparação dos elevados danos morais sofridos.

E o Direito Penal? Que seja aplicado na forma da lei, não se pensando em prisão, eis que essa parece impossível na espécie.

E a sociedade? Conforme exposto, o desejo de vingança não deve nortear o Direito Penal, ele não se prestar unicamente a uma regra de maioria. O caso em questão é delicado, portanto, deixemos que técnicos, sem a perniciosa intromissão de empresas que se mantém com abutres, auferindo lucro da desgraça alheia, e de um povo que age movido unicamente por sentimentos. Tal vontade popular, já advertia Rosseau, pode ser corrompida, podendo, às vezes, o povo querer o mal. 50

E o Ministério Público? Ele é integrado, em primeiro nível, por Promotores de Justiça, sendo que a expressão traduz bem seu sentido, ou seja, não quer dizer necessariamente "promoção de acusações". O parquet está vinculado a muitos princípios, dentre eles o da obrigatoriedade e o da indisponibilidade da ação penal, mas isso não quer dizer que em nome de todo um sistema normativo, não possa atuar, inclusive, em favor de pessoa por ele denunciada. Dele se espera o fiel cumprimento de seu papel, eis que adstrito ao princípio da legalidade, devendo, portanto, atuar em silêncio e com as cautelas que o caso merece, inclusive, oportuno é o pedido para que o processo tramite em segredo de justiça.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Caso Pedrinho: algumas considerações oportunas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3645. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos