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A cultura e a sua relação com o direito

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12/05/2017 às 14:20
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O Direito não é sagrado, racional, bom ou ruim. Ele é apenas cultural.

Resumo: No presente ensaio, procura-se demonstrar que, não obstante o Direito tenha assumido diversas roupagens ao longo da história, modificando o seu discurso de legitimação de acordo com as mutações axiológicas de cada grupo social que regula, quando se efetiva uma avaliação isenta dos seus elementos constituintes, chega-se à inexorável conclusão de que ele é, apenas, um produto da cultura na qual se encontra imerso.

Palavras-chave: Direito. Eficácia. Legitimação. Cultura.

SUMÁRIO: Considerações iniciais; 1 A construção do Direito como uma necessidade humana; 1.1 A origem da legitimação na produção normativa; 1.2 Direito e coerção; 2 O surgimento do direito natural; 3 O papel da cultura na construção do Direito; Conclusão; Referências bibliográficas.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Responder questionamentos a respeito do que é o direito e relativos a sua origem e legitimação tem sido objeto de acentuadas controvérsias ao longo do tempo. Isso porque, dada ao aspecto imperativo de suas normas, o Direito sempre buscou respaldo em fundamentos ideológicos[1] aceitos majoritariamente em cada época, a fim de respaldar a sua eficácia social.

É por isso que, num primeiro momento da humanidade, no qual as dificuldades de explicação de fenômenos naturais fortaleceram a explicação metafísica do mundo, sob uma visão religiosa e sacralizada dos fenômenos naturais, o Direito buscou amparo exatamente nesse conjunto de ideias para se legitimar e obter respaldo para a aplicação coercitiva de suas normas.

Posteriormente, com o enfraquecimento das explicações religiosas, que cedeu espaço a um verdadeiro culto da racionalidade oriunda do desenvolvimento científico, o Direito novamente modificou o seu eixo de legitimação, tendo migrado de uma conjuntura religiosa para um arcabouço tido como racional, não abdicando, todavia, do aspecto metafísico que o norteava anteriormente.

No entanto, quando se avalia a sociedade humana no seu contexto histórico-evolutivo, percebe-se que o Direito que surge com os primeiros agrupamentos humanos e com eles se desenvolve, não tem a roupagem sagrada ou racional que sempre procurou assumir. Ao contrário, é produto estritamente humano, construído com base nos valores e elementos da cultura das sociedades que pretende regular, de sorte que, ao se retirar o arcabouço de tais influências, pouco ou nada sobra do Direito.

Dessa forma, pretendemos, ao logo deste ensaio, analisar o Direito sem sacralização, sem arroubos racionais, sem paramentos ideológicos, a fim de identificarmos o que ele, de fato, é, dentro de uma visão descritiva dos fenômenos jurídicos.


1 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO COMO UMA NECESSIDADE HUMANA

Um indivíduo isolado não precisa de normas. Ele é detentor de uma liberdade absoluta, podendo satisfazer todas as suas vontades da forma que melhor lhe aprouver. Mas, a partir do momento em que ele passa a conviver com outros semelhantes, faz-se imprescindível a delimitação do espaço para concreção de suas vontades, pois a satisfação delas não poderá se chocar com os desejos dos demais. É nesse contexto que se impõe a criação de normas reguladoras de condutas que, em seu conjunto, formarão aquilo que conhecemos como Direito.

No início da civilização humana, a estrutura normativa não era bem organizada. Os grupos humanos de caçadores e coletores tinham as suas normas de condutas, voltadas, em especial à divisão dos alimentos obtidos entre o grupo, bem como vinculadas à forma de tratamento entre os integrantes da comunidade, construídas com base no costume e na tradição oral, uma vez que a escrita não existia na fase primitiva do Direito[2].

Divergências fazem parte do cotidiano da humanidade desde os seus primórdios. Evitar que alguém se apropriasse de uma parcela excessiva dos alimentos coletados pelo grupo em prejuízo da comunidade, bem como regular os relacionamentos a fim de que uma eventual disputa pelas mulheres não colocasse em xeque a sobrevivência do grupo são situações que impuseram aos primeiros conglomerados humanos a criação de regras de conduta a serem observadas por todos os seus  integrantes.

Um olhar sobre a humanidade, desde os seus primórdios até os dias atuais demonstra claramente que não é possível conviver com os outros semelhantes sem normas. O homem bom, pacífico e feliz vivendo no estado de natureza provavelmente só existiu no pensamento de Rousseau[3]. O homem real, em todas as épocas, é egoísta, busca incansavelmente satisfazer as suas necessidades e, caso não lhe sejam impostos limites, não hesitará em eliminar os seus semelhantes, se enxergar em tal conduta a forma para concretizar os seus desejos.

Sem a existência de normas, a convivência entre os homens é impossível. Não se encontra um único exemplo na história que demonstre os seres humanos convivendo coletivamente sem a presença de qualquer regra. Elas sempre existiram. A necessidade normativa se encontra tão impregnada na natureza humana que, parece-nos, mesmo eremitas vivendo em absoluto isolamento social, impõem-se regras existenciais que eles que julgam indispensável obedecer.

As regras de conduta, portanto, acompanham a humanidade desde o momento em que dois seres humanos passaram a conviver dentro de um mesmo espaço sem guerrearem entre si.

1.1 A ORIGEM DA LEGITIMAÇÃO NA PRODUÇÃO NORMATIVA

Um outro elemento que guarda estrita consonância com o surgimento de regras de conduta é o conceito de autoridade. Sem ele, as normas norteadoras do comportamento do grupo ficam fragilizadas e, muitas vezes, incapacitadas de atenderem aos reclamos regulatórios esperados.

Temos, então, dois conceitos que se vinculam estritamente, quais sejam, a existência de normas e a autoridade para criá-las. No entanto, essa capacidade de criação normativa reclama a presença de legitimação. Não é qualquer integrante do grupo que pode se arvorar ao papel de produtor normativo. E preciso que haja aceitação pelos destinatários das regras no tocante a essa função e a quem se encontra a desempenhá-la.

A legitimação para alguém assumir o papel de legislador dentro do grupo foi inicialmente buscada no desconhecido. Os fenômenos naturais eram enigmas para os primeiros seres humanos. Em busca de respostas para eles, seres imaginários genericamente denomináveis como deuses são introduzidos na cultura primitiva. Esses deuses mitológicos possibilitavam a explicação de fenômenos naturais que se encontravam distantes da compreensão do homem. Eram eles, na visão primitiva, que produziam os fenômenos fantásticos da natureza como o trovão, a chuva, o relâmpago, por exemplo. Juntamente com os deuses,  criou-se a figura do integrante do grupo que se colocava como intermediário entre essas divindades e os demais seres humanos, personificada na pessoa do feiticeiro, do sacerdote, enfim, do líder religioso.

Criava-se, com isso, o elemento faltante para a legitimação do papel normativo. Os seres humanos dependiam dos seus deuses para explicarem os fenômenos desconhecidos da natureza. Para satisfazer os supostos desejos de suas divindades, sempre estavam dispostos a qualquer sacrifício. O indivíduo considerado pelo grupo como mensageiro dos deuses assumiu uma importância cada vez mais acentuada, passando a exercer um papel de primazia, sendo respeitado e, não raras vezes reverenciados por todos os demais.

Sendo respeitado e tendo as suas opiniões aceitas como verdadeiras mensagens oriundas dos deuses, os detentores do que passaremos a denominar de poder religioso dentro do grupo humano assumiu gradativamente a legitimidade para se colocarem como portadores das normas de conduta supostamente transmitidas pelos deuses. Quando não assumiam diretamente o papel de legisladores, os sacerdotes das divindades legitimavam o exercício de tal função por um outro integrante do grupo que, com a formação de agrupamentos mais complexos, deixaram de serem reconhecidos apenas como chefes e se tornaram verdadeiras personificações das divindades entre os homens, não raras vezes sendo chamados de filhos dos deuses ou até mesmo como um deus vivo entre os homens[4].

Logo, a religião, ainda que em sua forma mais primitiva, foi o primeiro sustentáculo de legitimação para a construção normativa dentro dos primeiros agrupamentos humanos.

A autoridade, por sua vez, encontrava-se vinculada à legitimação para o exercício da produção normativa advinda da religião. Isso porque, os indivíduos que assumiram o papel de transmissores da vontade dos deuses para os demais integrantes do grupo e que, posteriormente, passaram a se autodenominar como verdadeiros representantes das divindades, assumiram também uma autoridade[5] bastante acentuada, de forma que questioná-la representava uma insurreição contra a vontade divina, que não poderia ser tolerada pelo demais membros do grupo, sob pena de trazer a ira divina sobre toda a coletividade, em forma de secas, enchentes, mortandade dos rebanhos, moléstias e outras pragas naturais que poderiam comprometer a sobrevivência de todos.

Com a religião[6], portanto, se forma um consistente sistema de produção normativa, no qual dois conceitos indispensáveis se associam para tal finalidade, a saber, a autoridade e a legitimação para expedir comandos vinculativos tendo os demais integrantes do grupo como destinatários.

1.2 DIREITO E COERÇÃO

A eficácia dos comandos normativos demanda a presença do elemento coerção. Isso porque, se a capacidade de imposição da norma ficar vinculada apenas ao livre arbítrio individual que, de acordo com a sua consciência, optará por obedecer ou não ao comando normativo, não se conseguirá êxito na disciplina das relações sociais, uma vez que sempre haverá alguém disposto a transgredir as normas do grupo.

É nesse contexto que as normas de conduta presentes nos agrupamentos humanos começam a se distinguir entre si. De um lado, existiam aquelas que não perdiam na fase de aplicação a sua absoluta vinculação ao elemento religioso presente em sua formação. No entanto, tais normas tinham a sua observância ligadas ao dever de consciência, sendo que a sua transgressão, embora pudesse ensejar a reprimenda da consciência individual ou até mesmo a reprovação do grupo, não eram providas da força necessária para a imposição de sua obrigatória observância. A esse conjunto de normas se convencionou denominar como regras morais.

Por outro lado, um conjunto de outras regras também produzidas no interior do grupo e que nos primórdios da humanidade também eram contaminadas em seu nascedouro pelo elemento religioso, por terem importância basilar para a sobrevivência do grupo, requeriam que a sua observância fosse imposta coercitivamente a todos, não podendo serem deixadas ao livre arbítrio de cada indivíduo. Logo, o conjunto de normas passíveis de imposição pela força forma o Direito.

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Kelsen (1998, p. 71), distinguiu Moral e Direito nestes termos:

 Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nelas não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física.

Bobbio (2014, p.72), também vê o elemento coercitivo como estritamente vinculado ao direito, uma vez que as normas do ordenamento jurídico reclamam o elemento força como indispensável à sua observância, razão pela qual ele denomina o direito como sendo “um conjunto de regras com eficácia reforçada”, realçando, ainda, que é impensável a existência de um ordenamento jurídico sem o exercício da força.

Vê-se, dessa forma, que o direito surge como produto de uma necessidade de regulação dos agrupamentos humanos, sendo as suas normas produto da edição de um agente ou corpo diretivo dotado de legitimidade perante os seus destinatários, cabendo a obediência a elas como imposição aos potenciais transgressores por meio do elemento coercitivo[7].


2 O SURGIMENTO DO DIREITO NATURAL

O tempo, como faz com todas as coisas, provocou alterações na formação do Direito. A legitimidade, advinda inicialmente de um componente místico-religioso, sem perder o contato com as suas raízes originais, começou a receber incrementos laicos, passando a ser visto como uma norma oriunda da vontade do soberano. Mas, do componente religioso não se divorciou completamente nesta fase. Isso porque, a fonte da autoridade do soberano continuou sedimentada num suposto direito divino de governar, tal como se pode verificar durante a antiguidade clássica, ressurgindo com força no absolutismo monárquico ocidental a partir do século XV, que começou aa ruir com as grandes revoluções do século XVIII, tal como visto na França, bem como no processo de construção do parlamentarismo monárquico na Inglaterra e no movimento republicano que culminou na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América.

Como forma de resistência ao direito posto, oriundo da vontade do soberano, ganhou espaço a noção de direito natural. Por meio dele, passou-se a defesa da existência de um direito inerente à condição humana, resguardado de qualquer ingerência do direito estatal, a ele se sobrepondo pela anterioridade e superioridade.

O direito natural é produto de um anseio de resistência em face do direito estatal. O seu conteúdo é mutável ao longo do tempo, sendo moldado de acordo com a norma estatal em face a qual se opõe. Assim, caso se pretenda questionar uma regra do soberano que viole a vida ou a propriedade dos súditos, por exemplo, o direito natural à preservação da vida ou à propriedade é invocado como superior às pretensões do soberano, devendo elas serem afastadas em face desse direito maior.

É por isso que se sustenta, tal como o faz Giorgi (2010, p. 11), que o direito natural não constitui um problema jurídico, devendo ser tratado no campo filosófico. No entanto, esse direito de oposição às normas postas, cujo fundamento é volátil, ora sendo oriundo de uma concessão dos deuses, ora integrando a própria natureza humana, sendo apropriado por meio da razão, tem sido objeto de críticas. Barreto (1892, p. 38), por exemplo, ao se insurgir contra a existência de um suposto direito natural, arremata que “dizer portanto que o direito é um conjunto de regras, descobertas pela razão, importa simplesmente uma tolice, visto que se dá como característico exclusivo das normas de direito o que aliás é commum à totalidade das regras da vida social”.

Embora se concorde com a crítica de Barreto, o que ele chama de tolice deve, na verdade, ser visto dentro de uma conjuntura filosófica do direito que guarda fortes laços com a sua origem religiosa. Isso porque, com a formação de agrupamentos humanos cada vez mais complexos, as dissidências em relação ao direito positivo - oriundo da vontade do soberano, já agregado às estruturas organizativas que passaram a ser conhecidas como Estados – foram em busca de um fundamento capaz de lhe respaldar a resistência. Esse porto de segurança passou a ser encontrado na ideia de direito natural que, segundo se argumentava, por ser também de origem divina, era capaz de se contrapor à opressão normativa do soberano, legitimando atos de resistência[8]. 

O direito natural, portanto, não é produto do imaginário coletivo, construído sem finalidade. É fonte de resistência filosófica em face do direito positivo reputado como injusto por aqueles que se opõem ao soberano e, assim como o direito positivo, abeberou-se, inicialmente, na mesma fonte religiosa na qual este buscou legitimação em seus primórdios.

Assim, mesmo que se concorde que o direito natural não tem função reguladora, é desprovido de sanção e não se presta para disciplinar as relações entre os homens, não se pode, por outro lado, desconsiderar o seu importante papel de resistência em face de arbitrariedades dos soberanos. Pode-se dizer, na verdade, que o direito natural teve ao longo da história um papel similar à fé religiosa, capaz de conceder esperança em face da opressão e motivar a resistência contra desmandos estatais[9].

Por outro lado, não se desconhece que o mesmo direito natural que serviu como substrato filosófico de resistência contra a opressão, também se prestou a legitimar a ordem social estabelecida, obstando ou protelando mudanças sociais. Dessa forma, a escravidão na Grécia antiga era justificada como sendo produto da ordem cosmológica, na qual cada ser humano ocupava na sociedade o papel que lhe foi previamente atribuído pelos deuses, cerceando, com isso, os movimentos de contestação de escravos e outros trabalhadores explorados.

A ideologia do direito natural também serviu para relegar as mulheres a um papel secundário dentro da sociedade ao longo de séculos, sob o argumento de que, segundo a vontade divina, a função da mulher seria garantir a reprodução dos seres humanos e cuidar dos afazeres domésticos.

Portanto, o direito natural deve sempre ser avaliado fora do ordenamento jurídico, pois não o integra, haja vista que é constituído por conceitos filosóficos, voltados a justificar a manutenção de uma estrutura social, podendo, também, ser utilizado para legitimar a resistência em face de um quadro estatal opressor.


3 O PAPEL DA CULTURA NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO

O direito que nos propomos a investigar é o positivo, ou seja, aquele produzido pelo Estado como forma de regular as relações entre os indivíduos alcançados pelas normas em apreço, sendo provido de mecanismo de coerção voltado a obrigar potenciais transgressores a observar as suas diretrizes.

Quando se avalia o direito que regula as diversas sociedades humanas, pode-se constatar, conforme bem lembrou Barreto(1892, p. 24), que ele não é algo metafísico, produzido por uma entidade  anterior e superior ao homem e estranho ao grupo social que regula.  Ao contrário, ele é produto da cultura[10] humana, agregando em suas normas os valores, costumes e comportamentos presentes na sociedade.

Cada sociedade observa um conjunto de valores, de sorte que “a fisionomia de uma época depende da forma como os valores se distribuem ou se ordenam” (REALE, 1998, p. 191). É por isso que não se tem um direito universal, válido em todas as épocas e para todos os povos. Ao contrário, o que vemos é que o direito é moldado de acordo com a carga axiológica do agrupamento humano regulado. É por isso que o direito muçulmano é diferente do direito dos países ocidentais que, por sua vez é diferente do direito chinês. Os valores são diferentes, a cultura mundial é heterogênea e o direito, por consequência, assume tal característica.

É preciso desmistificar o Direito. Não existem valores absolutos, preexistentes e superiores a serem observados por todos os seres humanos. A carga valorativa de cada agrupamento humano é construída por sua história e o Direito não deixa de ser um reflexo das características culturais do povo. Como já aventamos nas linhas anteriores, conceitos metafísicos como o de Direito Natural se prestou para fomentar discursos de resistência ou de acomodação social, mas nunca desempenhou a tarefa de regular o cotidiano de qualquer agrupamento humano. Essa função sempre foi desempenhada pelo direito positivo, produto da instituição social legitimada para desempenhar a atividade legislativa, sendo esse direito posto o produtor de efeitos sociais concretos.

A roupagem que o direito assume numa sociedade não difere dos valores que ela encampa. Quando esses valores são modificados, o direito segue o mesmo caminho, sob pena de perder a sua legitimidade regulatória e ser reduzido e se tornar ineficaz. No Brasil, por exemplo, durante muito tempo o adultério foi considerado uma conduta criminosa. Isso era produto de uma sociedade fortemente influenciada por valores morais oriundos do Cristianismo. O passar do tempo, no entanto, ensejou uma alteração nos costumes, de forma que o adultério, embora ainda seja reprovado em alguns segmentos sociais, perdeu a carga escandalosa capaz de ensejar turbulências sociais justificadoras da intervenção do direito penal. Com essa modificação no comportamento da sociedade brasileira, o adultério, embora tenha continuado grafado no Código Penal de 1940 como crime, perdeu qualquer efetividade social, vindo a ser finalmente revogado por meio da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005.

Logo, percebe-se que o direito não é uma entidade sacralizada, divina, sobrenatural. É apenas produto da cultura de cada sociedade em que ele é aplicado e seu surgimento é fruto de uma necessidade humana, como forma de aplacar os conflitos oriundos da vida em coletividade. O isolamento do ser humano não demanda a presença do Direito. É a interatividade humana que o torna uma necessidade. Nada mais do que isso.

Ao longo da história não se identifica um Direito estático, pois a sua inércia lhe retira a eficácia, na medida em que os valores sociais são modificados. A existência de sistemas jurídicos diferenciados convivendo simultaneamente dentro de um mesmo período histórico demonstra a própria diferenciação dos agrupamentos humanos e dos valores que cada um deles encampa[11]. É por isso que as tentativas de universalização de conceitos jurídicos, tal como se pretende fazer com os direitos humanos, por exemplo, caminham inexoravelmente para o fracasso[12].

Enquanto os seres humanos tiverem valores e culturas diferenciadas, o Direito sempre será heterogêneo. Não há como uniformizá-lo ou universalizar normas se os agrupamentos humanos não forem homogeneizados e, como isso não tem perspectivas de se concretizar nem mesmo a longo prazo, o Direito seguirá sendo particularizado de acordo com a cultura de cada povo, amoldando-se aos valores de cada agrupamento humano que ele se propõe a regular.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. A cultura e a sua relação com o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5063, 12 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36466. Acesso em: 2 nov. 2024.

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