Embriaguez e direção perigosa: a aplicação da Lei Seca e o conflito entre princípios e direitos constitucionais

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23/02/2015 às 09:42
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O presente artigo expõe uma análise do Código de Trânsito Brasileiro no que tange ao crime de embriaguez ao volante, considerando o conflito existente entre os princípios e os direitos constitucionais do condutor e de toda coletividade.

Resumo: Esse artigo apresenta uma análise do Código de Trânsito Brasileiro no que se refere à embriaguez ao volante, incluindo a evolução das penalidades administrativas e do crime preceituado no art. 306, do CTB trazidas por todas as alterações legislativas realizadas desde 1997. Através de pesquisa foi possível constatar que o hábito de beber e dirigir tem causado muitas mortes e mutilações, todavia, as mudanças nas leis ainda não foram capazes de alterar esse triste realidade. A conclusão obtida é que a impunidade dos condutores prevalece em razão da impropriedade legislativa no que tange ao crime de embriaguez ao volante, entretanto, é possível a aplicação de princípios e direitos constitucionais nas demandas judiciais não só para defender os condutores embriagados, como também proteger as vítimas fáticas ou em potencial, qual seja, a coletividade. Salvaguardando a sociedade há direitos relevantíssimos, tais como: o direito à vida, à saúde, à incolumidade física e à dignidade da pessoa humana, que efetivamente devem preponderar sobre os demais.

Palavras-chave: Código de Trânsito Brasileiro, embriaguez, direção perigosa, Lei Seca, Princípio da não autoincriminação, crime de perigo abstrato, crime de perigo concreto, infração administrativa.


INTRODUÇÃO

Não é de hoje a preocupação com a associação da embriaguez e a direção de veículo automotor em função do número crescente de mortes e mutilações causadas pelos acidentes de trânsito. Durante a pesquisa foi possível observar artigos que datam de 1996, isto é, muito antes da vigência do Código de Trânsito Brasileiro.

Os dados são assustadores: há aproximadamente 40 mil mortos por ano no trânsito, isso sem sequer considerar o número de mutilados, 130 mil hospitalizados por ano e mais de 37 milhões de reais de prejuízos para os cofres públicos. Convém salientar que grande parte desse quantitativo se refere aos acidentes envolvendo condutores embriagados. Obviamente que parecem apenas dados, todavia, atrás de cada número há uma vida ceifada ou uma perda parcial ou total da saúde ou mesmo da própria dignidade, no caso dos mutilados, além do sofrimento dos familiares de cada um desses.

Com a finalidade de alterar essas estatísticas, a legislação brasileira relacionada ao trânsito têm sido alterada. Ressalte-se que não se trata de uma ação isolada do Brasil, ao contrário, tratam-se de ações sugeridas pela OMS para a década de 2011-2020, denominada a Década Mundial das Ações de Segurança do Trânsito, na qual se propõe a redução de 50% do índices de acidentes no trânsito.

Apesar dos esforços estatais em observar as ações sugeridas pela OMS, aumentando a fiscalização nas vias terrestres e investindo nas conscientização da população, insta ressaltar que tal tarefa não será fácil por uma questão cultural, uma vez que muitos condutores não acatam a proibição de conduzir veículo automotor embriagado, seja porque se sentem capazes de guiar perfeitamente mesmo sob efeito de substância alcóolica, seja por certeza da impunidade apoiada nos Princípios da não autoincriminação e da não produção de provas contra si mesmo.

Além disso, o Brasil é o 1º produtor mundial de bebida destilada do mundo, produz o equivalente a 1,3 bilhão de litros por ano e o 3º produtor mundial de cerveja, que equivale à produção de 11 bilhões de litros por ano, o mais surpreendente é que toda essa bebida é para consumo interno. Esses dados só demonstram a dimensão do desafio que será conscientizar todos esses consumidores de que álcool não combina com volante.

Inúmeras foram as alterações legislativas, no sentido de aumentar a penalidade administrativa e mesmo de facilitar a comprovação da embriaguez ao volante, entretanto, a sociedade continua acreditando que tais medidas são prejudiciais, e ao contrário, tem o objetivo de proteger a coletividade.

Em que pese todas as garantias constitucionais relacionadas ao Princípio da não autoincriminação e ao Princípio da não produção de provas contra si mesmo, é necessária uma análise apurada acerca da mens legis, e acima de tudo, na ponderação dos direitos e dos princípios constitucionais. Não se pretende aprofundar o conceito de cada princípio, a proposta é apenas criar o debate acerca dessa ponderação e aplicação desses direitos e princípios no julgamento das demandas judiciais. Diante disso, resta o seguinte questionamento: Qual princípio prepondera ao direito à vida, à incolumidade física e à Dignidade da Pessoa Humana? E é exatamente essa resposta que se busca na presente pesquisa.


1. A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO ACERCA DA EMBRIAGUEZ ASSOCIADA À DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR

Para uma melhor análise do assunto, é necessária uma abordagem cronológica acerca da legislação sobre a embriaguez associada à direção de veículo automotor.

Antes da vigência da Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, a conduta de dirigir embriagado era preceituada como uma infração administrativa no art. 89, III da Lei 5.108 de 21 de setembro de 1966, o revogado Código Nacional de Trânsito, na conformidade com a redação incluída pela Lei 9.121 de 1969. Vale ressaltar que na redação original, essa infração gerava a penalidade de grupo 1, que era uma multa no valor de 50% a 100% do salário mínimo vigente na região, além da apreensão da Carteira de Habilitação e do veículo. Posteriormente, o Decreto lei nº 2.448 de 1988 modificou tais percentuais da multa, elevando-os para 200% a 300% do salário mínimo vigente regional.

Em relação ao âmbito penal, tal comportamento configurava uma contravenção penal, prevista no art. 34 da Lei de Contravenções Penais.

Nessa época, de acordo com a Resolução 476 de 1969 do CONATRAN, a embriaguez era considerada através da concentração de álcool igual ou superior a 0,8 decigramas por litro de sangue.

Efetivamente a legislação vigente à época ainda permitia o crescente número de acidentes de trânsito relacionado ao consumo de álcool.

Com o advento da Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a conduta de dirigir sob efeitos de álcool ou outras substâncias análogas passou a ter novo tratamento.

Em síntese, o Código de Trânsito Brasileiro passou a tratar a condução de veículo automotor sob estado de embriaguez ou de outra substância tóxica como crime, entretanto para esse crime restasse configurado deveria haver a exposição da incolumidade de outras pessoas a um dano potencial. No caso da caracterização da infração administrativa do art. 165. do CTB bastava a ultrapassagem do limite expresso de alcoolemia.

Ressalta-se que a infração administrativa do art. 165. do CTB acarretava uma multa (cinco vezes) e a suspensão do permissão para dirigir, além da retenção do documento de habilitação e do veículo até a apresentação de um condutor habilitado.

Admitia expressamente a aplicação da Lei 9.099/95, ao crime de lesão corporal culposa, de embriaguez ao volante e de participação em competição não autorizada, inclusive no que se refere à composição civil dos danos (art. 74) e à transação penal (art. 76), necessitando de representação no caso de lesão corporal leve e de lesão culposa, na forma do art. 88. da Lei 9.099/95.

O CTB também previa no art. 296, a possibilidade do juiz suspender a permissão para dirigir veículo automotor nos casos de reincidência do condutor.

Além disso, no art. 297. do CTB estava prevista a multa reparatória em favor da vítima ou de seus sucessores, nos casos em que houvesse prejuízo resultante do crime.

O CTB teve sua redação original alterada por três vezes nos artigos relacionados à embriaguez na direção do veículo automotor. A primeira foi feita nos arts. 165, 277 e 302 pela Lei 11.275 de 07 de fevereiro de 2006.

A Lei 11.275/2006 retirou a concentração mínima de alcoolemia do art. 165. do CTB e também incluiu os parágrafos 1º e 2º no art. 277, visando facilitar a comprovação da alcoolemia do condutor embriagado. No art. 302 do CTB, foi incluída a causa de aumento para o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor na hipótese do agente estar sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente que cause dependência.

Insta salientar que a lei supracitada alterou o art. 165. do CTB, entretanto esqueceu de modificar também o art. 276 do mesmo código. Logo, o agente que fosse flagrado embriagado de acordo com o art. 165 do CTB, não estava impedido de conduzir o veículo na conformidade do art. 276 do CTB. Obviamente, tratava-se de um descuido do legislador, de outro modo, não haveria lógica nas alterações trazidas pela nova lei.

Em 21 de janeiro de 2008, a Medida Provisória nº 415 foi editada, o seu texto preceitua a proibição da venda varejista e oferecimento de bebidas alcoólicas na faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo à faixa de domínio com acesso direto à rodovia. É importante mencionar que a Exposição de Motivos da referida Medida Provisória sustenta que o consumo de álcool é um problema de saúde pública, ainda segundo os dados apresentados, o alto índice de consumo de álcool causa anualmente 1,8 milhão de mortes no mundo.

Essa Medida Provisória foi convertida na Lei 11.705 de 19 de junho de 2008. Essa lei já possuía como objetivo estabelecer a alcoolemia zero, além de também alterar outra lei relacionada à propaganda das bebidas alcoólicas, a Lei 9.294 de 15 de julho de 1996.

O Congresso Nacional ao tornar essa Medida Provisória em Lei, afrouxou em relação à venda de bebidas alcoólicas, e em troca endureceu o tratamento dado ao condutor que dirigisse embriagado.

No que tange ao CTB, a Lei 11.705/2008 modificou a redação dos seguintes artigos: 10, 165, 276, 277, 291, 296, 302 e 306.

No art. 10. do CTB houve a inclusão do inciso XXIII, que acrescentava à composição do CONTRAN um representante do Ministério da Justiça.

A redação do caput do art. 165. do CTB também sofreu mudança: onde lia-se “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”, passou-se a ler “substância psicoativa que determine dependência”. Além dessa alteração, a suspensão da permissão para dirigir como penalidade foi definida pelo período de 12 meses. Nesse artigo, também houve o acréscimo do parágrafo único, que apontava que a embriaguez poderia ser conctatada na forma do art. 277 do CTB.

Em relação ao art. 276 do CTB, finalmente a Lei 11.705/2008 retirou o limite da concentração de álcool no sangue, modificação que devria ter sido feita pela lei anterior.

Outra alteração realizada pela Lei 11.705/2008 foi no parágrafo 2º do art. 277, trouxe a possibilidade do agente de trânsito caracterizar a embriaguez do condutor com base no seu comportamento, seja excitação ou torpor. Acrescentou também o parágrafo 3º no artigo supracitado, cuja redação preceituava que seriam aplicadas as penalidades administrativas do art. 165 do CTB aos condutores que se recusassem a fazer o teste do etilômetro.

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A Lei 11.705/2008 também trouxe a substituição do parágrafo único do art. 291. do CTB pelos parágrafos 1º e 2º. No 1º paragrafo do artigo mencionado, criou-se a exceção da aplicação dos artigos 74, 76 e 88 da Lei 9.099/95 aos crime de lesão corporal culposa nas hipóteses em que o agente estivesse sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; participando de corrida não autorizada em via pública, conhecidos como “pegas” ou “rachas”; ou transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via de 50 Km/h. Já no parágrafo 2º, incluiu dispositivo que determina a instauração de inquérito policial para investigar as infrações penais do parágrafo 1º do mesmo artigo.

A faculdade que o juiz possuía de suspender a permissão para dirigir do condutor reincidente passou a ser uma obrigatoriedade com a nova redação do art. 296. do CTB introduzida pela Lei 11.705/2008.

O inciso V do art. 302. do CTB que havia sido incluído pela Lei 11.275/2006 foi revogado pela Lei 11.705/2008.

Com a nova redação do art. 306. do CTB trazida pela Lei 11.705/2008, o crime de embriaguez ao volante era praticado quando o condutor extrapolava o limite de concentração de álcool no sangue previsto, independente da exposição da incolumidade de outrem a dano potencial. Essa nova redação incluia o parágrafo único, que incumbia ao Poder Executivo a determinação de medidas de equivalência entre os distintos testes de alcoolemia.

Apesar de bem intencionado, o legislador não agradou a todos e a referida lei foi objeto da ADI 4103 proposta pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento – ABRASEL NACIONAL, cujo o Relator era Ministro Eros Grau e após a sua aposentadoria quem assumiu tal papel foi o Ministro Luiz Fux.

Como o objetivo de esclarecer questões interdisciplinares e técnicas, o Supremo Tribunal Federal promoveu a Audiência Pública nos dias 07/05/2012 e 14/05/2012 e admitiu a participação de diversas entidades na qualidade de amicus curiae.

Outra questão relevante é que essas alterações legais não se tratam de atitudes isoladas do Poder Legislativo Brasileiro, ao contrário, tais mudanças foram realizadas com base nas ações sugeridas pela OMS para controlar os problemas relacionados ao álcool e à direção, quais sejam: redução do limite de concentração sangínea do álcool permitida para dirigir; suspensão administrativa da licença de motoristas que dirigem intoxicados; fiscalização com o bafômetro e uma política de “tolerância zero” para os motoristas novatos.

Desde a vigência da Lei 11.705/2008, não faltam controvérsias e questionamentos acerca da constitucionalidade da norma mencionada.

Até a presente data ainda não houve o julgamento da ADI 4103, todavia o Poder Legislativo converteu o Projeto de Lei nº 5607 de 2009 na Lei 12.760 de 20 de dezembro de 2012, com intuito de alterar mais uma vez alguns dispositivos do CTB que tratam da embriaguez associada à direção de veículo automotor. Durante a tramitação desse projeto de lei, outros projetos que tratavam de alterações no CTB foram arquivados, dentre eles o Projeto de Lei do Senado nº 48, de 2011, que criava formas qualificadas e causas de aumento para o crime do art. 306. do CTB.

É importante mencionar que essa lei sequer teve seu período de vacatio legis, exatamente com o objetivo de diminuir as mortes no trânsito no feriado do Natal de 2012.

Dentre as modificações trazidas pela Lei 12.760/2012, destaca-se o aumento da penalidade prevista no art. 165. do CTB, qual seja, a multa de cinco vezes passou a ser de dez vezes. Com a vigência dessa lei, o recolhimento do veículo observa o preceituado no art. 270, § 4º do CTB, além do parágrafo único determinar a aplicação do dobro da multa prevista no caput do art. 165. do CTB na hipótese de reincidência dentro do período de 12 meses.

A lei supracitada incluiu o parágrafo 5º no artigo 262 do CTB, que dispõe acerca do recolhimento do veículo ao depósito. Também incluiu a concentração de álcool por litro alveolar no caput do art. 276. do CTB, bem como definiu no parágrafo único que o CONTRAN disciplinará as margens de tolerância dos aparelhos de medição, observada a legislação metrológica.

No art. 277. do CTB, a Lei 12.760/2012 ampliou as possibilidades de apuração da embriaguez do condutor no caput e no parágrafo 2º, revogou o parágrafo 1º e manteve a redação do parágrafo 3º.

A Lei 12.760/2012 também mudou a redação do caput do art. 306. do CTB ao retirar o limite mínimo de alcoolemia para a constatação da embriaguez, passando a inclui-lo no parágrafo 1º. E também incluiu os parágrafos 2º e 3º, admitindo a utilização do etilômetro e de outros meios de prova.

Encerrado o relato cronológico acerca da legislação sobre embriaguez e direção de veículo automotor, convém abordar os dois tipos de penalidades as quais se sujeita o condutor que dirige embriagado, quais sejam, administrativas e penais. Considerando que a produção de provas para a configuração das infrações administrativas e do crime previsto no art. 306. do CTB são fonte de controvérsias, torna-se mais didática a análise em apartado dos referidos tipos de penalidade.


2. AS PENALIDADES ADMINISTRATIVAS PREVISTAS NO CTB

O Código de Trânsito Brasileiro preceitua algumas penalidades administrativas que devem ser aplicadas ao condutor que dirige embriagado. Todavia, para a configuração dessa conduta é necessária a comprovação da embriaguez. É nesse ponto que reside a controvérsia. Admite-se a aplicação de uma penalidade sem que haja prova? Para alguns doutrinadores não é admissível a aplicação de penalidade sem provas, ademais ninguém é obrigado a fazer provas contra si mesmo.

Por outro lado, a aplicação dessas penalidades administrativas não recai sobre a liberdade das pessoas e sim sobre atividades, bens etc, uma vez que se trata da atuação da polícia administrativa. Dessa forma, como se tratam de atos administrativos, devem ser analisados como tais, levando em conta a legitimidade do Estado ao aplicar essas penalidades.

Bem, quando o Estado concede a um agente a habilitação para dirigir está realizando um ato administrativo com natureza jurídica de licença, logo, tal ato depende da anuência da Administração Pública ao pedido do interessado para legitimar a atividade que será exercida. Assim, a Administração Pública determina os requisitos para a concessão e quando o agente os cumpre, surge para ele o direito de obter a habilitação para dirigir, uma vez que se trata de um ato vinculado.

Ademais, o fato de conceder ou não a habilitação a determinada pessoa é o exercício do poder de polícia da Administração Pública, que lhe confere a prerrogativa de restringir direitos ou liberdades individuais em prol do interesse coletivo.

Exatamente no intuito de evitar abusos que o poder de polícia deve ter como parâmetros: competência do órgão ou agente prevista na lei; observância dos limites definidos pelo ordenamento jurídico e observância do devido processo legal. Vale destacar que, no caso de concessão ou não de habilitação para dirigir veículo automotor, o poder de polícia se caracteriza pela vinculação, coercibilidade e autoexecutoriedade.

Não se pode olvidar que o poder de polícia possui fases, o que não significa que em uma atividade sempre haverá todas as fases. Bem, em relação às normas de trânsito, é possível constatar a presença das 4 fases, quais sejam: ordem de polícia; consentimento de polícia; fiscalização de polícia e sanção de polícia.

A ordem de polícia abrange toda a norma referente ao trânsito, isto é, o Código de Trânsito Brasileiro. A fase de consentimento ocorre quando a Administração Pública concede a licença para dirigir ao particular. Já a fase da fiscalização é a própria fiscalização nas vias terrestres, a denominada “Operação Lei Seca”. Por fim, há a sanção de polícia quando o particular descumpre a ordem de polícia, essa sanção pode ser uma multa ou a suspensão da habilitação.

Considerando que a atuação da polícia administrativa é de natureza eminentemente preventiva, fica fácil compreender a razão pela qual a Administração Pública por vezes não concede ou mesmo suspende a habilitação para dirigir de determinada pessoa, é apenas visando a prevenção de danos em relação à coletividade.

Feitas essas considerações importantes, é possível concluir que as penalidades administrativas são legítimas, uma vez que são decorrentes do poder de policia, entretanto devem observar todos os parâmetros legais, sob pena de configurar um abuso ou desvio de poder.

Analogicamente, a conduta de utilizar o etilômetro durante a fiscalização funciona tal como o particular que deseja abrir um restaurante. Não cabe à Administração Pública provar que o condutor não está em condições de guiar um veículo automotor, ao contrário, em razão da concessão da licença para dirigir ter como provocação o ato do particular, é ele quem deve comprovar que está apto ou habilitado na conformidade da lei. Do mesmo modo ocorre com o particular que deseja abrir um restaurante, mencionado anteriormente, é ele quem deve provar que o local possui as características necessárias para tal empreendimento. Logo, quando o agente se recusa a utilizar o etilômetro, seria a mesma coisa que o particular que não quer apresentar a documentação necessária obtida junto à Vigilância Sanitária e ao Corpo de Bombeiros para iniciar sua atividade econômica. O raciocínio é simples, o interessado em obter a licença ou permissão é o particular, a Administração Pública concede ou não o pedido dentro das exigências previstas na lei.

Especificamente em relação ao art. 165. do CTB, desde sua primeira redação na Lei nº 9.503 de 23 de setembro de 1997, o referido artigo já possuía o intuito de diminuir o limite de concentração de álcool por litro de sangue.

Como já foi exposto, todas as alterações foram no sentido de trazer mais rigidez no tratamento ao condutor que dirige embriagado, seja retirando o mínimo de concentração de álcool, o que significa a “tolerância zero”, seja aumentando a penalidade prevista para a infração administrativa mencionada.

Segundo estudos médicos, o mínimo de concentração de álcool no sangue é o suficiente para causar efeitos sobre o condutor, conforme explica HOFFMANN (1996) :

“Em geral, pode-se dizer que o condutor que bebeu, normalmente, não avalia os efeitos que o álcool produz sobre sua capacidade de rendimento. Se produz nele euforia, uma falsa segurança de si mesmo e um sentimento subjetivo de acreditar que tem uma melhor capacidade para dirigir, aumentando a tolerância ao risco, levando-o a tomar decisões mais perigosas do que a habitual. O álcool diminui, também, o sentido de responsabilidade e a prudência, enquanto que aumenta as ações impulsivas, agressivas e pouco educadas. Por sua vez, o álcool retarda as funções cerebrais, necessitando assim mais tempo a nível mental para processar as informações e reagir mediante os fatos. De todas estas alterações comportamentais, a notável diminuição da percepção do risco que produz o álcool parece, segundo as pesquisas, a chave que maior explicação proporciona ao alto nível de risco que parece assumir o condutor alcoolizado.”

Partindo dessa premissa, o art. 165. do CTB chegou até a redação atual em que qualquer influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência por si só gera ao condutor uma penalidade administrativa. Ora, e se o condutor se recusa a utilizar o etilômetro? Nessa hipótese, se tratando de poder de polícia, há legitimidade na aplicação da penalidade ao condutor. Até mesmo porque todas as penalidades preceituadas no referido artigo se referem ao exercício de atividades, e não estão relacionadas com a liberdade do condutor.

Portanto, respeitadas as proporcionalidades, nessa situação não há cabimento na alegação do Princípio da não incriminação e do Princípio da não produção de provas contra si mesmo. Isso ocorre, porque não deve preponderar o direito de dirigir sobre o direito à vida ou à incolumidade física. Frisa-se que aqui não há imputação de crimes, tampouco se discute uma possível restrição à liberdade individual.

Dessa forma, na hipótese do condutor se recusar ao teste do etilômetro, o art. 165. do CTB já estabelece a multa, suspensão da habilitação para dirigir pelo período de 12 meses e a retenção do veículo até que uma pessoa habilitada possa conduzir o veículo.

Salienta-se que ao preceituar penalidade no art. 165. do CTB, não cabe a aplicação do crime de desobediência, tal como ocorre em outros países.

Outra questão relevante é que a suspensão da habilitação não é automática, isto é, em observância ao Princípio do Devido Processo Legal aplicado aos procedimentos administrativos, na conformidade da Lei 9.784/1999, o condutor pode recorrer dessa penalidade. E enquanto ele recorre, continua trafegando mesmo se já matou ou amputou alguém.

Portanto, ao que parece, na prática, o direito de dirigir mesmo que seja embriagado prevalece sobre o direito coletivo, enquanto perdurar o procedimento administrativo.

O art. 276. do CTB foi esquecido na modificação trazida pela lei 11.275/2006, o que o tornava desarmônico com o restante do CTB, porque o alteração do art. 165. do CTB já previa a “tolerância zero” para a concentração de álcool por litro de sangue. Todavia tal equívoco foi corrigido com a Lei 11.705/2008, qual seja, a concentração de álcool por litro de sangue foi retirada. Em contrapartida a redação do parágrafo único foi alterada com intuito de atribuir ao Orgão do Poder Executivo Federal a incumbência de disciplinar as margens de tolerância para os casos específicos.

Com o advento da Lei 11.705/2008, outra discussão surgiu a respeito do art. 276. do CTB, qual seja, a possibilidade da aferição feita através do etilômetro se a lei não prevê tal teste de alcoolemia. Para aqueles que sustentavam tal tese, o fato da lei não prever o uso do etilômetro no art. 306 do CTB já configurava a violação do Princípio da Legalidade, previsto no art. 5º, XXXIX da CRFB. Por essa razão, a Lei 12.760/2012 alterou novamente a redação do art. 276. do CTB, incluindo a concentração de álcool por litro de ar alveolar, para que ele ficasse em consonância com o art. 306. do CTB.

O art. 277. do CTB sofreu sua primeira alteração através da Lei 11.275/2006, desde a redação original o referido artigo já preceituava a admissibilidade de outros testes de alcoolemia, exames clínicos e perícia, visando a comprovação da embriaguez do condutor envolvido em acidentes. Inclusive, de acordo com essa redação, no caso de recusa do condutor em realizar os testes para configurar a sua embriaguez, também seria admissível a obtenção de outras provas tais como sinais notórios de embriaguez, excitação ou torpor.

Com a Lei 11.705/2008, a redação do parágrafo 2º foi modificada e o parágrafo 3º foi incluído. Sobre o art. 277, § 3º, CTB, o STJ se posicionou a favor da sua constitucionalidade (RHC 20.190/MS. Relator Ministro Gilson Dipp, 5ª turma, Julg. 24/04/2007, DJ 04/06/2007. P. 377). E parte da doutrina sustentou que o art. 277, § 3º do CTB era inconstitucional, porque haveria, em tese, a violação do Princípio da Não Autoincriminação, previsto em dois tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário, quais sejam, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (PIDCP) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), conhecida como Pacto San José da Costa Rica. Assim sendo, para os que defendem essa tese, não há nem mesmo o dever de utilizar o etilômetro, não devendo tal recusa configurar o crime de desobediência, uma vez que não há dever jurídico de obediência e já há punição no âmbito administrativo diante dessa recusa. Inclusive há jurisprudência nesse sentido: HC 88.452/RS, 2ª turma. Relator Ministro Eros Grau. Julg.: 02/05/2006, DJ 19/05/2006. P.43.

A questão de utilizar ou não o etilômetro para os fins de penalidade administrativa não pode ser confundido com a configuração do crime de embriaguez ao volante previsto no art. 306. do CTB, que será analisado mais adiante.

Nova alteração na redação ocorreu com a Lei 12.760/2012, entretanto, o parágrafo considerado inconstitucional permaneceu do mesmo modo.

Por fim, há de se considerar a penalidade administrativa preceituada no art. 296, CTB. Segundo a redação original do referido artigo, a suspensão da habilitação era facultada ao juiz no caso de reincidência do condutor em qualquer crime do CTB. Com a Lei 11.705/2008, essa faculdade tornou-se obrigatoriedade. Salienta-se que não haverá reincidência específica, se entre a condenação definitiva e a infração posterior houver um lapso temporal de mais de 5 anos, na forma do art. 64, I, do CP.

Também é relevante mencionar que a penalidade administrativa supracitada não pode ser aplicada nos casos em que o artigo já tenha a previsão da suspensão da habilitação como penalidade administrativa, sob pena de bis in idem. Isso ocorrerá quando o condutor for condenado por um dos seguintes crimes: 302, 303, 306, 307, 308, todos do CTB. Nesses casos, haverá a reincidência genérica na forma do art. 61, I, CP. Em contrapartida, o juiz é obrigado a aplicar tal penalidade administrativa quando o condutor praticar qualquer um dos delitos dos seguintes artigos: 304, 305, 309, 310, 311, 312, todos do CTB.

Duas observações devem ser feitas: a primeira, a reincidência no caso de qualquer crime previsto no CTB, logo se o condutor tiver uma condenação por outro crime fora do CTB, tal reincidência não será considerada; a segunda, que a suspensão da habilitação deve ser determinada no dispositivo da sentença, de outro modo, não haverá efetividade.

Finalizada a análise das penalidades administrativas, é importante lembrar que se tratando de poder de polícia, é legitima a atuação do Estado, uma vez que a incidência dessas penalidades recaem somente sobre bens e exercício de determinadas atividades, tal como dirigir. O mesmo raciocínio não pode ser aplicado aos crimes previstos no CTB, porque a penalidade preceituada naquele artigo incide na liberdade individual, o que invoca a utilização de todos os princípios constitucionais, penais e das regras penais e processuais penais.

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Sobre a autora
Danielle Felix

Advogada Orientadora da Universidade Estácio de Sá. Pós Graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - RJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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