O intuito deste artigo, não é o de colocar uma pá de cal sobre o assunto, mas apenas discutir alguns aspectos que julgamos necessários para a evolução do pensamento jurídico. Pedimos desculpas pelas imperfeições e pontos que não se conseguiram esmiuçar, mas trilhamos a mesma estrada em que o mestre Rui Barbosa[1] que um dia confessou de peito aberto: “Uma verdade há que me não assusta, por que é universal e de universal consenso: não há escritor sem erros”.
Em recente notícia[2] foi divulgado que se uma instituição de ensino erra a lista de classificados do vestibular, os candidatos que apareceram por engano como aprovados não têm o direito de receber indenização. Os candidatos tiveram seus nomes divulgados como classificados/aprovados no certame e, tempos depois, retirados da listagem pois que houve uma falha no sistema de processamento de dados.
Pois bem, os candidatos alegaram que passaram pelo constrangimento de comunicar a seus amigos de familiares a aprovação, para depois informar que a história não era bem assim.
É bem verdade que deve-se avaliar caso a caso, posto que o direito é fato, valor e norma na visão de Miguel Reale. Para tal, citamos dois casos muito parecidos, mas de sentenças diferentes, quais sejam: processo nº. 0005708-47.2012.4.01.4300, julgado pela Justiça Federal de 1ª. Instância, Seção Judiciário do Estado do Tocantins e processo nº. 2014.01.1.0549028 da 2ª Vara da Fazenda Pública do DF.
Passemos, então, a avaliar a questão num enfoque do direito civil-constitucional e, mais especificamente pelo lado do direito da personalidade.
Num primeiro momento julgamos necessário abordar o que vem a ser direito da personalidade. Para entendermos tal questão devemos partir do conceito de personalidade. Vejamos a seguir alguns conceitos doutrinários de variados autores, citados pelo Professor Flávio Tartuce[3]:
- Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald –“ Consideram-se, assim, direitos da personalidade aqueles direitos subjetivos reconhecidos à pessoa tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais.Enfim, são direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica.
- Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho – “Aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”.
O mestre Flávio Tartuce[4], em seu Manual de Direito Civil explica que imagem (imagem atributo) e honra são ícones associados aos direitos da personalidade. Ensina ele:
- Imagem-atributo – soma de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem.
- Honra – com repercussões físico-psíquicas, subclassificada em honra subjetiva (autoestima) e honra objetiva (repercussão social da honra). Tal divisão segue a doutrina,entre outros, de Adriano De Cupis, para quem “ a honra significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como enfim, o sentimento ou consciência, da própria dignidade pessoal.
Ter o nome elencado em lista de aprovação de uma faculdade, ainda mais de âmbito federal, é uma missão árdua e sonho de muitos vestibulanos. Ter este sonho realizado, com seu nome fincado em listagem é motivo, sem dúvida alguma, de comemoração e divulgação aos “quatro cantos da terra”. O “vestibulano vitorioso”, quase que imediatamente, transmite sua felicidade e notícia aos familiares e amigos.
Ora, após toda esta maratona e felicidade, ter expurgado seu nome do elenco de vitoriosos é, além de enorme frustração e sofrimento, vergonha imensa por ter divulgado um fato que não era verdade – e não por vontade própria, ou seja , uma mentira. Sim, passa-se a imagem de um mentiroso!
Portanto, a imagem atributo e a honra foram atingidos frontalmente, além de terem seus direitos da personalidade, o que nos remete às necessárias projeções sociais, rasgados.
Trazemos à baila o direito civil-constitucional, que nada mais é do que um novo caminho metodológico, que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil e da legislação infraconstitucional, em uma análise de mão dupla, como nos ensina o professor Tartuce.
Continuando na seara do direito civil-constitucional, temos o superprincípio disposto no art. 1º., III da Carta Magna, ou seja, a proteção da dignidade da pessoa humana. Citamos ,ainda, parte desta cláusula pétrea – os direitos fundamentais previstos na Constituição, art. 5º, III, CF/88 – onde consta que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante.
Podemos também nos utilizar da horizontalização dos direitos fundamentais, que nada mais significa que o reconhecimento da existência e aplicação dos direitos que protegem a pessoa nas relações entre particulares. Sabe-se que as normas constitucionais protetoras de tais direitos têm aplicação imediata (eficácia horizontal imediata), conforme definido no art. 5º., § 1º de nossa Constituição Federal.
Faz-se de suma importância citar o contido no enunciado nº. 274 do CJF/STJ. Dita ele que “os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º., III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação.
Cita o professor e jurista Flávio Tartuce sobre o assunto:
Didaticamente, podemos aqui trazer uma regra de três, afirmando que, na visão civil-constitucional, assim como os direitos da personalidade estão para o Código Civil, os direitos fundamentais estão para a Constituição Federal. Justamente por isso é que o enunciado nº. 274 da IV Jornada de Ireito Civil estabelece que o rol dos direitos da personalidade previstos entre os arts.11 e 21 do CC é meramente exemplificativo (numerus apertus). Aliás, mesmo o rol constitucional não é exemplificativo, pois não excluí outros direitos colocados a favor da pessoa humana.
Fazendo-se a devida ponderação, como manda o enunciado, podemos tomar o caput do art. 5º, de nossa Constituição Federal, que faz surgir o direito à vida e à segurança. José Afonso da Silva[5], constitucionalista renomado, nos brinda com maravilhosa lição acerca do tema:
Todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isto, é uma pessoa. “Além dos caracteres do indivíduo biológico tem os de unidade , identidade e continuidade substanciais”. No dizer de Ortega Y Gasset, mencionado por Recaséns Siches, “la vida consiste em La compresencia, em la coexistência Del yo com um mundo, de um mundo conmigo, como elementos inseparables, inescindibles, correlativos”. A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º., caput, integra-se de elementos matérias (físicos e psíquicos) e imateriais(espirituais). A “vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir a si mesmo e um tomar posição de si mesmo”. Por isso é que ela constitui a fonte principal de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito a dignidade da pessoa humana (de que já tratamos), o direito à privacidade (de cuidaremos no capítulo seguinte, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência.
Quando falamos em direito à vida, estamos nos referindo à uma vida digna (direito à vida + dignidade da pessoa humana). Por isso, julgamos que no episódio estudado, ter seu nome elencado em lista de aprovados e depois retirado atenta-se contra a vida digna preceituada anteriormente. Ponderando-se valores –seguindo a lição do mestre Miguel Reale,onde o direito forma-se de fato, valor e norma - o direito à vida digna nos parece maior que tudo, pesando muito mais na balança da Justiça.
O professor e Ministro do STF Luís Roberto Barroso[6], assevera que “a dignidade da pessoa humana assume sua dimensão transcendental e normativa. A Constituição já não é apenas o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade”.
Citamos à título de embasamento e reverência à este Constitucionalista da Faculdade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e agora Ministro Do Supremo Tribunal Federal (STF), Min. Luís Roberto Barroso[7], lição de enorme humanidade ,constante de seu Curso de Direito Constitucional Contemporâneo :
[...] as oportunidades devem ser iguais para todos; quem se perdeu pelo caminho precisa de ajuda, e não de desprezo; toda vida fracassada é uma perda para a humanidade. Por isso mesmo, o Estado, a sociedade e o direito devem funcionar de modo a permitir que cada um seja o melhor que possa ser. Em um mundo que assistiu ao colapso das ideologias de emancipação e redenção, este é um bom projeto político. Ou, no mínimo, uma boa opção existencial.
Lançamos mão da teoria do diálogo das fontes, trazida da Alemanha pela professora Claudia Lima Marques, onde sua essência é que as normas jurídicas não se excluem, mas se complementa.
Usando tal “técnica” observamos que o art. 927 do Código Civil enuncia que “aquele que por ato ilícito (arts; 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Neste sentido, na I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, firmou-se o enunciado de nº. 38, onde se lê que “ a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determnada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.
Usufruindo, ainda, da teoria do diálogo das fontes, temos que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) institui que o risco do negócio não pode ser repassado ao consumidor. Prevê, também, em seu art. 14 que o fornecedor responde objetivamente pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. O §1º. do citado artigo 14 do CDC nos informa que serviço defeituoso é aquele que não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar.
Ora, por todo o exposto julga-se que direitos fundamentais foram desrespeitados, como por exemplo a vida digna (o sofrimento e vergonha - por se criar o estigma de pessoa mentirosa ), a imagem atributo e a honra, a tristeza de ver uma “vitória” ser retirada de sua vida pessoal. Resumindo, isto significa ser submetido a tratamento desumano ou degradante. Leva-se em conta, também o contido ,e já citado nos Código de Defesa do Consumidor e Código Civil, no que diz respeito à responsabilidade civil e falha na prestação do serviço.
Portanto, a resposta da pergunta, que é título deste artigo, nos parece ser afirmativa com base em todo o exposto acima, ou seja, erro em lista de classificados no vestibular gera dano moral.
[1] Carraza, Roque Antônio.- Curso de Direito Constitucional Tributário.- 23 ed. São Paulo – Malheiros Editores.p.29.
[2] http://www.conjur.com.br/2015fev26/ errolistaclassificadosvestibularnaogeradanomoral, acessado em 27/02/2015, às 10h.
[3] Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil. 5. Ed. rev , atual. e ampl. –Rio de Janeiro, Forense São Paulo: Método, 2015.p.86.
[4] Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil. 5. Ed. rev , atual. e ampl. –Rio de Janeiro, Forense São Paulo: Método, 2015.p.87.
[5] Da Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. Ed. rev e atual. –São Paulo – Malheiros Editores, 2008. P.197-201.
[6] Barroso,Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo.-3.ed. São Paulo,2011. P.82.
[7] Barroso,Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo.-3.ed. São Paulo,2011. P.20.