8 EXEMPLOS DE REGULAMENTOS DISCIPLINARES DE OUTRAS INSTITUIÇÕES MILITARES
Ao se verificar os regulamentos disciplinares das Forças Armadas e de outras Polícias Militares observa-se que a maioria das corporações ainda apresentam regulamentos autônomos, sendo alguns anteriores à Constituição Federal de 1988. É o caso, por exemplo, do Exército (Decreto nº 4.346/2002), da Marinha (Decreto nº 88.545/1983) e da Aeronáutica (Decreto nº 76.322/1975), bem como de algumas polícias militares, como do Rio de Janeiro (Decreto n° 6.579/1983), do Rio Grande do Sul (Decreto n° 43.245/2004) e do Paraná (Decreto nº 4.346/2002).
Já outras Polícias Militares perceberam a necessidade de lei para instituição de regulamento disciplinar. Por exemplo, a lei complementar nº 893/2001 instituiu o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo; a lei 14.310/2002 criou o Código de Ética e Disciplinar dos Militares do Estado de Minas Gerais; e a lei 13.407/2003, instituiu o Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará.
9 DOUTRINA ESPECÍFICA MILITAR
Especificamente no âmbito militar, Gouveia (2012), coronel da Polícia Militar do Estado de Alagoas, é contumaz defensor da inconstitucionalidade de regulamentos disciplinares por meio de decreto. Sua crítica incisiva alcança grande importância em virtude de se tratar de um Oficial Superior, o qual ocupa o posto mais elevado da hierarquia militar no âmbito estadual. Vejamos:
Vê-se, pois, que ao dispor que a restrição da liberdade de ir e vir do indivíduo só será tolerada pelo Direito quando decorrer de infração disciplinar ou crime militar previstos em lei, o Constituinte vedou que tal matéria fosse regulada por decreto, atribuindo a competência para fazê-lo exclusivamente à lei formal.
[...]
Assim, se há real necessidade e interesse por parte das autoridades administrativas militares em aplicar as penas de detenção e prisão disciplinar - que a autora, diga-se de passagem, considera absurdas - impõe-se providenciar que sejam as mesmas instituídas através de lei, dada a indiscutível inconstitucionalidade de todas as medidas restritivas da liberdade pessoal previstas no Decreto Estadual n.º 4.717/96.
[...]
Os quartéis não são ilhas onde a Constituição não vigora. É imperativo que a autoridade competente desperte para a necessidade de elaborar um Regulamento Disciplinar compatível com a ordem jurídica vigente, que é ancorada, sem exceções, no Estado Democrático de Direito criado pela Constituição Federal de 1988.
Numa época em que todas as instituições se abrem, se modernizam, se democratizam, a Polícia Militar não pode permanecer parada no tempo. Até mesmo porque insistir em fazer uso de um Regulamento eivado de inconstitucionalidades implicará na desmoralização da Autoridade Administrativa, que, por força de decisões judiciais, terá que retratar-se quanto às punições ilegalmente impostas.".
É justamente o que tem ocorrido com frequência quase contumaz aqui em nosso Estado, e assim será, mormente enquanto inexistir uma LEI DISCIPLINAR nos moldes constitucional, legal, justo e legítimo, na nossa Corporação, que trate do mister, conforme preconizam as constituições Federal e Estadual. Aliás, ainda que revogado não estivesse, infere-se que RD, aprovado por decreto, não é instrumento legítimo e eficaz para regulamentar direitos e garantias dos servidores públicos militares do Estado de Alagoas, face à indelegabilidade de competência ao Executivo, porquanto ser competência especial (exclusiva) da Assembleia Legislativa Estadual no âmbito do nosso Estado, e, na esfera federal, competir ao Congresso Nacional, até que lei complementar disponha. Diante da constatação e ilação suso adscritas, urge, pois, a promulgação de uma LEI DISCIPLINAR DA PMAL, não há negar. Portanto, urge LEI disciplinar adequada à Carta Cidadã de 1988, sob pena de permanecer o arbítrio atroz, ímpio, desumano e JUGO ILEGAL, como fora dito por este signatário, desde outubro de 1996, e redito nesse lustro, mas sempre olvidado. Luta tenaz que não será debalde haja vista o limiar de um novo tempo, fim de século, próprio para metamorfose! (grifo nosso)
Igualmente, Junior ([2012?]), Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela Pontífice Universidade Católica (PUC) de São de Paulo, Doutor em Ciências Policiais e de Segurança Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança "Cel PM Nelson Freire Terra", defende brilhantemente no trabalho “A inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares editados mediante decreto”, que os regulamentos disciplinares militares são na verdade códigos disciplinares e de ética, sujeitando os militares inclusive a penas privativas de liberdade, o que impossibilita a sua instituição por meio de decreto. Mais uma vez a contumaz crítica ganha relevância, em decorrência de originar-se de um Oficial Superior da maior Polícia Militar do país, Doutor e Mestre, elevando a seriedade de seu posicionamento. Segue abaixo importante trecho:
Para os servidores civis, o Estatuto foi introduzido por lei ordinária, prevendo as sanções administrativas, no entanto, ao regular as sanções disciplinares dos servidores militares, cujas sanções, sem sombra de dúvidas, são mais severas, poderiam ser preconizadas por decreto. É um verdadeiro absurdo, ainda mais que confere um tratamento desigual aos servidores públicos.
[...]
Os regulamentos disciplinares militares são verdadeiros códigos disciplinares, em que estão previstos valores éticos, as transgressões disciplinares e as sanções disciplinares que os militares estão sujeitos visando os princípios basilares da Hierarquia e Disciplina.
Nas sanções disciplinares, o militar está sujeito desde uma advertência até a privação da liberdade por um período determinado.
Como permitir que um decreto do Poder Executivo obrigue a alguém a fazer ou se abster de algo, sujeitando-o a uma privação de liberdade. Se a prisão é uma exceção, como consagra a Constituição Federal, somente nos casos excepcionais e previstos em lei, que poderá alguém estar sujeito a esta sanção máxima.
Aqui não se está fazendo apologia pela eliminação da sanção da privação da liberdade, mas esta deve ser aplicada dentre os princípios gerais do direito, após o devido processo legal, por condutas que violem a lei e não um decreto.
[..]
Não é razoável que alguém seja privado de sua liberdade por um tipo aberto, deixando à margem da discricionariedade da autoridade disciplinar o poder de decidir o que é ou não é transgressão disciplinar e, em consequência, aplicar uma penalidade de prisão.
[...]
A obrigatoriedade de um regulamento disciplinar ser editado mediante uma lei ordinária está esculpida na Constituição Federal.
Diante deste novo quadro, os regulamentos disciplinares que foram alterados após o advento da Constituição Federal de 1988 são inconstitucionais, devendo ser excluídos do ordenamento jurídico. Isto se aplica ao Exército brasileiro e às policiais e bombeiros militares que alteraram seus regulamentos por intermédio de um decreto. (grifo nosso)
Outra reflexão interessante do referido Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo no mesmo trabalho é que os regulamentos militares anteriores à Constituição Federal de 1988 teriam sidos recepcionados como lei ordinária.
Comparativamente o autor exemplifica citando o Código Tributário Nacional (CTN), instituído pela lei nº 5.172/66 e recepcionado pela Carta Magna como lei complementar, por força de seu art. 146, o qual prevê que as normas gerais de Direito Tributário deverão ser instituídas por meio de uma lei complementar. Da mesma forma, ocorre com o Código Eleitoral, instituído pela Lei nº 4.737/65, mas recepcionado como lei complementar, consoante o disposto no art. 121 da Constituição Cidadã.
Igualmente ocorreu com o Código Penal (CP), o Código de Processo Penal (CPP), o Código Penal Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM), todos instituídos por Decreto-Lei, mas recepcionados com status de lei ordinária.
Na mesma linha de pensamento, por analogia, os regulamentos instituídos por decretos anteriores à Constituição Federal de 1988 teriam sido recebidos com status de lei ordinária, por força de seu art. 5º, inciso II.
Alterações posteriores e novos regulamentos somente poderiam ser editados mediante lei formal em sentido estrito, conforme defende Freyesleben (1998, p. 202), juiz auditor da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais.
Nessa linha de raciocínio, o RDME também é inconstitucional, pois foi instituído por decreto no ano de 2000, ou seja, após a Constituição de 1988, violando o requisito e princípio constitucional da legalidade.
Para Martins (1996, p.86 a 88), Oficial da Polícia Militar de São Paulo, as prisões por transgressão militar que não sejam definidas em lei são inconstitucionais. Argumenta o autor citando o art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988, o qual prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (grifo nosso). Assim, as infrações disciplinares militares, quando resultarem em sanção administrativa aplicada com restrição à liberdade de locomoção, devem estar previstas em lei, e não em um decreto. Vejamos o que escreve o doutrinador militar:
Em outras palavras, impõe a Constituição Federal que a transgressão disciplinar e o crime propriamente militar estejam definidos em lei, ou seja, capitulados em lei, para ensejarem a decretação da medida restritiva da liberdade individual.
[...]
A disposição segundo a qual a transgressão e o crime propriamente militares devem ser definidas em lei, constitui-se em garantia constitucional da maior importância para os militares, na medida em que reduz a discricionariedade do administrador em tema que poder ser conduzido segundo critérios de política, perseguições, abusos etc.
[...]
Ora, é cristalino que decreto não é lei [...] pretender restringir a liberdade de ir e vir com fulcro em decreto, entre outras consequências, é incidir em atentado à liberdade de locomoção.
[...]
Em síntese, do que ficou consignado resta que são inconstitucionais as prisões por transgressão militar que não definidas em lei, entendida esta última como ato formal consoante ao processo legislativo. (grifo nosso)
Para Rosa (2005, p.09 a 11), juiz auditor da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, ninguém pode ser punido sem lei anterior que defina a conduta como ilícita, aplicando essa garantia no âmbito penal, civil e administrativo. In verbis:
As normas desta espécie, previstas nos regulamentos militares, são inconstitucionais, pois permitem a existência do livre arbítrio, que pode levar ao abuso e ao excesso de poder.
[...]
No Brasil, por força da vigente CF, ninguém pode ser punido sem que exista uma lei anterior que defina a conduta como ilícito (civil, criminal ou administrativo), sob pena de violação das garantias constitucionais, e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Segundo Luiz Flávio Gomes, não existe diferença ontológica entre crime e infração administrativa, ou entre sanção penal e sanção administrativa.
O processo administrativo (civil ou militar) deve respeitar os princípios constitucionais, e todas as garantias do Direito Penal devem valer para as infrações administrativas; princípios como os da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade, da analogia, do no bis in idem, da proporcionalidade, da culpabilidade etc, valem integralmente, inclusive no âmbito administrativo. O Direito Militar (penal ou disciplinar) é um ramo especial da Ciência Jurídica, com princípios e particularidades próprias, mas sujeitando-se às normas constitucionais.
Por disposição da CF, não se permite que uma norma infraconstitucional sobreponha-se ao texto fundamental. Os regulamentos disciplinares foram impostos por meio de decretos federais (Forças Armadas) e estaduais (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) e não podem se sobrepor à Constituição Federal em respeito à hierarquia das leis.
As autoridades administrativas militares ainda não aceitam como regra a aplicação do princípio da legalidade na transgressão da disciplina militar, pois entendem que a discricionariedade é necessária para a manutenção do respeito às Instituições Militares. Mas, a observância da hierarquia e da disciplina não pressupõe o descumprimento dos direitos fundamentais que foram assegurados aos cidadãos. A CF, em nenhum momento, diferenciou, no tocante às garantias fundamentais, o cidadão militar do cidadão civil. (grifo nosso)
Outrossim, ao se vasculhar o assunto, é possível se encontrar vários outros trabalhos anteriores sobre o tema em sites especializados, como jus navegandi (www.jus.com.br), âmbito jurídico (www.ambito-juridico.com.br) e jus militar (www.jusmilitaris.com.br).
Para exemplificar, citam-se os trabalhos “Polícia Militar: A nova ideologia em uma sociedade livre e democrática, e a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Santa Catarina – RDPMSC” (DA CRUZ, 2011); “A inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares – O caso do Regulamento Disciplinar da Brigada Militar (PMRS)” (RODS FERREIRA, 2010); “Regulamento Disciplinar Militar e suas inconstitucionalidades”, de (ROSA, 2007); e “Os regulamentos disciplinares e sua conformidade com a Constituição Federal” (ASSIS).
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que o Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado Espírito Santo (RDME) é inconstitucional, pois foi instituído pelo Decreto nº 254-R, violando o princípio da legalidade, já que somente uma lei formal em sentido estrito pode criar deveres e obrigações.
A manutenção dessa inconstitucionalidade tem ocasionado a insatisfação e o desestímulo dos servidores públicos militares estaduais, podendo acarretar, ainda, questionamentos judiciais.
Assim, faz-se mister que o Estado Capixaba, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Espírito Santo corrijam urgentemente essa flagrante inconstitucionalidade, enviando à Assembleia Legislativa um projeto de lei para a edição de um Regulamento Disciplinar instituído por meio de lei.