EMENTA:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL PRIVADA. CRIMES CONTRA A HONRA. TRANSAÇÃO PENAL. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA FORMULAÇÃO DE PROPOSTA PELO QUERELANTE OU DO SEU ASSENTIMENTO. DIREITO SUBJETIVO DO QUERELADO. A transação penal é direito subjetivo do querelado, uma vez presentes os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão da benesse, que, com a alteração do conceito de delito de menor potencial ofensivo (Lei 10.259/01), passou a abranger as infrações a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, independentemente do procedimento preconizado. Mostra-se desnecessária a prévia iniciativa do querelante para o oferecimento da proposta da aplicação imediata de pena não restritiva de liberdade (art. 76 da Lei 9.099/95), eis que não se faculta ao autor da queixa, de forma discricionária, a prerrogativa de negar simplesmente ao querelado o benefício da transação penal, e nem de estabelecer condições excessivamente gravosas, e que, na prática, inviabilizam a sua aceitação. Em tais hipóteses, verificando-se a presença dos pressupostos legalmente exigidos, deve o Ministério Público, como custos legis, formular, desde logo, uma vez impossibilitada a reconciliação (art. 520 do CPP), e, antes do recebimento da queixa, a proposta de transação penal, que, uma vez aceita pelo autor do fato, independe, para a homologação judicial, do assentimento do querelante.
Com o advento da Lei 10.259, de 12.07.2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, implementou-se relevante alteração no que toca ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, até então determinado pelo artigo 6º da Lei 9.099/95, tendo o artigo 2º do novel diploma, asseverado, de forma expressa, que "consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa."
Assim, em face da imperiosa isonomia e da proporcionalidade assentadas em sede Constitucional, passaram a merecer idêntico tratamento as infrações de menor potencial ofensivo de competência da Justiça comum, inclusive no que toca aos crimes de ação penal privada e, em especial, os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), apenados, em abstrato, na sua forma simples, com sanção máxima não superior a dois anos.
Com isso, mesmo no delito de calúnia (art. 138 do CP), que prevê pena máxima de dois anos de detenção, passou a ser admitida a formulação da proposta de transação penal, beneplácito permitido e com assento legal no artigo 76 da Lei 9.099/95, independentemente do procedimento especialmente estatuído para o processamento dos crimes contra a honra, sendo direito do querelado a aplicação imediata da pena restritiva de direitos, uma vez preenchidos os requisitos subjetivos e inexistindo os impeditivos discriminados no texto legal (parágrafo 2º , Incisos Ia III da mencionada Lei dos Juizados).
Discute-se, então, a questão atinente à iniciativa da proposta, tendo grande parte da doutrina, surgida logo após a edição da nova lei e capitaneada pelo laureado Professor Luiz Flávio Gomes (in Juizados Criminais Federais e seus Reflexos nos Juizados Estaduais e outros Estudos – Ed. RT, 2002, pp. 79/80) sustentado, principalmente à luz do que reza o Enunciado 49 editado pelo Fórum Permanente dos Coordenadores dos Juizados Especiais ("Enunciado 49 – Na ação de iniciativa privada cabe a transação penal e a suspensão condicional do processo, inclusive por iniciativa do querelante"), que a iniciativa para a proposta de transação seria então atribuída ao querelante, em face da natureza privada da ação penal, sendo o parquet parte ilegítima para a propositura imediata da pena restritiva de direitos, substitutiva da sanção corporal finalmente cominada.
Todavia, a experiência cotidiana das Varas Criminais, especialmente aquelas da Circunscrição Especial de Brasília, onde proliferam as ações penais privadas versando sobre crimes contra a honra, demonstra que, na prática, a audiência de reconciliação expressamente exigida pela especialidade do rito (artigo 520 do Estatuto Processual) mostra-se infrutífera em face do espírito beligerante que anima, ab initio, as partes querelantes, que buscam, tão somente, na grande maioria das vezes, inspiradas pela mágoa e o revanchismo naturalmente encontrados em delitos desse jaez, impingir ao desafeto querelado o constrangimento de ver-se na condição de réu, razão pela qual resta frustrada, na quase totalidade dos casos, qualquer tentativa de reconciliação ou composição que possa vir a evitar o formal recebimento da queixa.
Assim, sepultada a reconciliação, cumpre ao Juiz, antes do exame prelibatório de recebimento da queixa, perquirir sobre a possibilidade do oferecimento, desde logo, ao querelado, de pena restritiva de direitos (transação), em face do quantum máximo cominado à sanção abstratamente prevista na norma penal incriminadora. No entanto, o que se observa, na quase totalidade dos casos, é o frontal e inarredável inconformismo do subscritor da queixa, que, já tendo recusado formalmente qualquer acordo com o querelado, não aceita formular a proposta de transação penal que possa, sob qualquer prisma, minorar as conseqüências da ação penal, ou então, como forma de inviabilizar, na prática, a concessão do benefício, estabelece condições e penalidades manifestamente desarrazoadas e desproporcionais, e que têm por desiderato exclusivo obter a recusa do querelado, com o conseqüente prosseguimento da ação penal.
Ora, diante de tal situação, não podendo agir de ofício, fica o Julgador obrigado a colher, ainda em audiência, a manifestação ministerial, como Órgão fiscalizador da ação penal privada, para que este então formule ao querelado a proposta, dentro de critérios razoáveis, facultando a ele o acesso pleno a um benefício (transação penal) que não podia ser negado, de forma meramente discricionária, e que já estava assegurado desde a propositura da queixa-crime, mas que, em face da natural e sempre verificada intransigência do querelante, não se tornou possível em um momento anterior.
Mostra-se, pois, em tais casos, manifestamente improdutiva a providência consistente em deixar ao alvedrio do querelante, inicialmente, a propositura da transação penal, eis que tal situação, na grande maioria dos casos, serve apenas para acirrar ainda mais os já exaltados ânimos daqueles que não desejam se reconciliar, estando certo que o autor da ação, ao constituir advogado e aforar a peça acusatória, já demonstra, de forma irrefragável, inequívoco interesse no recebimento da queixa e na instauração da ação penal contra o querelado.
Melhor seria, pois, que o Juiz, uma vez encerrada a fase conciliatória que antecede o recebimento da proemial, verificando que o querelado preenche todos os requisitos legais para a transação penal, já determinasse fosse colhida, na mesma oportunidade, a manifestação do Promotor com assento natural perante aquele Juízo, cabendo ao Ministério Público, na condição de fiscal da lei e de Órgão constitucionalmente incumbido da defesa da ordem Jurídica e essencial à função jurisdicional do Estado (este último único e verdadeiro titular do jus puniendi), a formulação da proposta de transação penal, que, caso venha a ser aceita pelo querelado, será objeto de apreciação e conseqüente homologação pelo Juízo competente.
CONCLUSÃO
Sustenta-se, pois, uma vez realizada a audiência de que trata o artigo 520 do CPP, e, verificada a total impossibilidade da reconciliação, ou mesmo de qualquer composição plausível entre as partes em litígio, ser despicienda a prévia manifestação do querelante sobre a conveniência ou não do oferecimento da transação penal, vez que tal medida, legalmente assegurada e manifestamente favorável ao acusado, não pode ser colocada ao talante discricionário do querelante, que, embora seja o titular da ação penal, não personifica ou detém o direito de punir, sendo, dessarte, perfeitamente possível, o oferecimento, desde logo, da transação penal, pelo próprio representante ministerial que oficie perante o Juízo Criminal onde estiver sendo processado o feito.