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O controle de constitucionalidade confuso

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01/02/2003 às 00:00
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6. "Novidade Jurídica": O efeito vinculante já existente

Em 10 de novembro de 1999, com o propósito de disciplinar o processo e julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADECONs) junto ao Supremo Tribunal Federal, é promulgada a Lei nº 9.868.

Três questões controvertidas foram geradas pela novatio legis: a inclusão da Mesa da Câmara Legislativa e do Governador do Distrito Federal como legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 2º, IV e V, parte final); a possibilidade de a decisão proferida na ADIN sofrer, pelo voto de dois terços dos Ministros, restrição de efeitos ou decretação de eficácia ex nunc ou, noutro momento a ser fixado, sob o fundamento de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (art. 27); e, por último, o alargamento do efeito vinculante também às decisões nas ADINs (art. 28, parágrafo único).

Quanto à legitimação ativa do Governador e Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal nas ADINs o fato novo é que eles não foram incluídos no rol dos legitimados no art. 103 da Carta Política. Questiona-se: poderia a norma infraconstitucional ir além da Lei Maior? Diminuir sua extensão, afora no caso de normas de eficácia contida – o que não é o caso – seria inconcebível e eivado de inconstitucionalidade material insanável; já ampliar seu conteúdo material é discutível. No caso, sob a ótica da Teoria Geral do Estado e da Ciência Política, o que fez o legislador ordinário foi corrigir acertadamente uma omissão do constituinte, já que no federalismo adotado e, frise-se, princípio sensível da Constituição, implica que o Distrito Federal ocupe posição equivalente à dos Estados-Membros. Tanto o é que o artigo 1º diz que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal; mais adiante o artigo 18 reserva a este ente federativo autonomia, e o artigo 32, § 1º, atribui ao Distrito Federal as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios. Sua posição híbrida não lhe afasta do status de Estado, até por este motivo se lhe reservam paritariamente três assentos no Senado (art. 46, § 1º, CRFB).

No ponto que toca à restrição ou protraimento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse público, a questão gera maiores desconfortos. É cediço que estas decisões sempre tiveram efeito ex tunc, qual seja, aniquilam a norma inconstitucional desde seu nascedouro por uma razoável dedução lógica: respeito à supremacia da Constituição; a grave e inconcebível decretação de efeito ex nunc – a partir da decisão – validando-se, por conseqüência as relações jurídicas anteriores, filhas proscritas de uma norma nula, já seria uma heresia, o que não dizer do fato de, conhecendo e decidindo pela inconstitucionalidade da norma o próprio "Guardião da Constituição", permitir-se a geração de outras anomalias jurídicas pelo prazo fixado. Numa ótica satírica poderíamos lembrar que ao guarda desidioso o Código Penal Militar, em tempo de paz, o condenaria às penas do art. 196 e, em tempo de guerra à morte por fuzilamento à vista do art. 390.

Ao contrário de se atingir a segurança jurídica se fertiliza a insegurança e, mais que isto, se dá um golpe mortal na idéia de Estado de Direito pela excepcional e espúria flexibilização da ordem jurídica.

No que toca ao alargamento do efeito vinculante aos casos de decisões proferidas nas ADINs, julgando a Reclamação nº 1880-SP no dia 06 de novembro de 2002 o Supremo decidiu:

"( [14])Ao apreciar uma Questão de Ordem na Reclamação 1880, ajuizada pelo município paulista de Turmalina, os ministros do Supremo Tribunal Federal declararam (6/11) constitucional o parágrafo único, do artigo 28, da Lei Nº 9868/99. O dispositivo trata dos efeitos de julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade perante o STF.

Com a decisão, fica valendo o seguinte: "A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal, estadual e municipal" (parágrafo único do artigo 28).

Na Reclamação, o município de Turmalina afirmou que o presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região desrespeitou a decisão do STF proferida na ADI 1662. No julgamento da ADI, os ministros determinaram o seqüestro de recursos financeiros municipais, para pagamento de Precatórios oriundos de condenações trabalhistas impostas à Fazenda Municipal.

No entanto, o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, não conheceu da Reclamação. De acordo com o ministro, o município não tinha legitimidade para ajuizar a ação. O município, inconformado com a decisão, recorreu (Agravo Regimental).

Iniciado o julgamento de uma Questão de Ordem no Agravo Regimental, em 23 de maio deste ano, o ministro Maurício Corrêa propôs que todos as pessoas que forem atingidas por decisões contrárias à decisão final do STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade sejam consideradas como parte legítima para propor Reclamação, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868/99.

O ministro Moreira Alves havia sugerido que se ouvisse o procurador-geral da República, que posteriormente deu parecer pela constitucionalidade do dispositivo.

Hoje a maioria dos ministros (oito) seguiu o relator, abrindo divergência o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio.

O ministro Moreira Alves destacou: "A lei neste ponto é inconstitucional, como é inconstitucional o artigo 27, que vai contra àquilo que é imanente ao nosso sistema, ou seja, que o efeito dessas declarações é desconstitutivo, tendo em vista a circunstância de que nós temos ao lado do controle concentrado, o controle difuso, e não é possível haver um controle com uma eficácia e outro com outra diferente quando eles visam, em última análise, ao mesmo objetivo".

O ministro Sepúlveda Pertence defendeu: "Quando cabível em tese a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da Ação Direta de Inconstitucionalidade".

Já para o ministro Gilmar Mendes, "o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais". Citou, para isso, o entendimento adotado pelo Supremo na ADC 4, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em pedidos cautelares, quando o texto constitucional não trata do assunto questionado.

O ministro Marco Aurélio frisou, seguindo a ala divergente: "As decisões do Supremo Tribunal Federal se impõem, não pelo papel, pelo fato de um dispositivo de lei ordinária dizer que essas decisões são obrigatórias, mas pela respeitabilidade, pelo conteúdo dessas mesmas decisões. Devemos fugir de tudo que leve à generalização. A tendência do homem é se acomodar e a evitar o maior esforço".

Com efeito, põe-se a termo, ao menos por ora, a controvertida constitucionalidade da Lei nº 9869/99 que, ironicamente, disciplina o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade; assim, o efeito vinculante que brotou em 1993, se firmou em 1999, agora, ao final de 2002, floresce, restando, para o futuro, a coleta de seus frutos. Mais irônico agora seria agora algum aventureiro questionar a constitucionalidade e a eficácia desta decisão da Corte Suprema.


7. Conclusões

Nossa tradição constitucional jamais declinou do controle de constitucionalidade aberto e nem se sugere tal afastamento, porquanto instrumento assaz democrático que pulveriza a qualquer do povo o direito de, in concreto, ser parceiro do Supremo Tribunal na zeladoria da integridade formal e material da Constituição frente aos poderosos de plantão. Entretanto se de um lado, mais que se concede, se impõe ao Magistrado de primeira instância, ex oficio, não se furtar da jurisdição mesmo que, incidentalmente, se postule a inconstitucionalidade da norma em que lastreia o fundamento jurídico do pedido a parte adversa, há que se ter que esse juízo singular o faz incidental e excepcionalmente, já que temas desta jaez devem, originariamente, ser dirimidos por Tribunais de instância extrema, senão pela experiência superior dos decanos Ministros e pela relativização de posturas radicais, próprias de uma visão isolada e de limitada experiência profissional, que somente no debate colegiado se depuram e sedimentam, ao menos pela cega análise de sua precípua competência constitucional.

Toda tese contratualista de justificação do poder do Estado se calca num pacto onde o soberano povo, legítimo detentor do poder, libera este seu poder em prol da paz social, pela homogeneização e equalização das forças, e da expectativa de segurança, inicialmente física e mais adiante jurídica. Destes postulados decorre que não só a lei – abstrata fonte primária do direito – mas sua concretização pela jurisdição equânime, podem conduzir à isonomia material. Eis o porquê de não se admitir que de uma mesma norma, imposta coercitivamente a todos, dentro de um mesmo Estado sob uma mesma Constituição, haja tamanhas disparidades hermenêuticas que rompam o cenário ideológico e acadêmico para interferir direta e concretamente na vida dos cidadãos.

A mesma autoridade que garante, ao natural juiz singular, supremacia diante das partes é, em sua essência material, que deve submeter sua relativa independência judicante ao juízo das instâncias superiores, no limite das competências constitucionais, sem que disto decorra sua automação ou menoscabo. É no respeito à autoridade, delimitada pelas respectivas competências formais e naturais, que se distribui o poder estatal decorrente do pacto social e, se do poder decorre a autoridade, é da perfeita sintonia entre estes que surge a ordem; a ordem jurídica, que tem sua estrutura vertebral na Constituição.

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A partir desta análise, de lógica finalística, não encontramos suporte lógico à contestação, senão por vaidade ou outros interesses subalternos, de quaisquer das propostas apontadas neste trabalho. Argüição de Relevância, efeito vinculante das súmulas e súmulas impeditivas, longe de destruir o divino poder jurisdicional são mecanismos que, se bem orientados e passíveis de redirecionamento refletido, poderão golpear a desordem jurídica, afirmar e justificar a autoridade estatal e, por fim, dar à Sua Excelência: o povo, algo próximo da certeza de que as decisões judiciais não são tão imprevisíveis como os satíricos rifões apregoam.


8.Notas

1. Art. 5º, XXXV, CRFB

2. Art. 103, I-IX, CRFB

3. Passou de Supremo Tribunal Federal para a designação de Corte Suprema (art. 73)

4. "Art. 78, parágrafo único. Caberá recurso para a Corte Suprema, sempre que tenha sido controvertida matéria constitucional e, ainda, nos casos de denegação de habeas corpus."

5. O anteprojeto denominava "Supremo Tribunal", não Corte Suprema como definiu o texto da Constituição.

6. Trata-se de recurso do próprio juiz ou tribunal, ao Supremo, em relação à sua própria decisão.

7. A Constituição de 1937 é associada à Constituição Polonesa de 23.04.1935 pelo fortalecimento conferido ao Poder Executivo e por haver sido outorgada por Getúlio Vargas. Ainda, porquanto questionada a legitimidade do Poder Constituinte pois não fora submetida ao Plebiscito determinado pelo seu artigo 187.

8. Art. 104, CRFB.

9. Art. 102, III, a, b e c, CRFB.

10. Art. 105, III, a, b e c, CRFB.

11. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p.18-19, 65.

12. Texto extraído do site da Associação dos Magistrados Brasileiros – http://www.amb.com.br

13. Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual, distrital e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (AC)

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. (AC)

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. (AC)

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação, suspensiva do ato ou da decisão judicial, ao Supremo Tribunal Federal, que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (AC)

14. Reclamação (Agravo Regimental-QO) 1.880-SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, 6.11.2002. (RCL-1880)

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Sobre o autor
Azor Lopes da Silva Júnior

Doutorando em Sociologia (UNESP), Mestre em Direito (UNIFRAN), Professor de Direito Penal e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Azor Lopes. O controle de constitucionalidade confuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3715. Acesso em: 26 abr. 2024.

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