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O sistema constitucional brasileiro e sua efetividade

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01/02/2003 às 00:00
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6.A DEMOCRATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Para que a Constituição pudesse ser efetiva, portanto, seria necessário corrigir, de acordo com as nossas peculiaridades, o nosso sistema de separação dos Poderes, de modo a evitar, na medida do possível, que as elites dominantes pudessem continuar a transformar em feudos privilegiados os órgãos de cúpula dos poderes constituídos e os órgãos inspectivos. Não devem ser esquecidos, também, os inúmeros cargos federais, estaduais e municipais que dependem de indicação política, especialmente aqueles relacionados com a arrecadação tributária ou com a concessão de financiamentos. É preciso criar mecanismos para tentar contrabalançar os problemas criados pela nossa cultura e pela nossa realidade política, econômica e social, e também para corrigir a nossa herança atávica de tendência à concentração do poder, para que possam funcionar a contento os modelos políticos democráticos, que inutilmente tentamos transplantar para o nosso sistema.

6.1. A investidura dos magistrados

O sistema do concurso público é o critério adotado no Brasil para a investidura dos juízes de primeiro grau. Esse critério é considerado como a forma mais democrática de seleção dos integrantes da magistratura, permitindo também a seleção dos candidatos mais capazes e fortalecendo a independência do Poder Judiciário, tendo porém o inconveniente de não apurar a idoneidade moral dos candidatos, o que é no entanto suprido através da juntada de atestados e certidões.

O concurso público, portanto, permite o acesso de qualquer bacharel aos quadros da magistratura, independentemente de classe social, e sem a necessidade de apadrinhamentos e proteções políticas, havendo até mesmo quem advogue a extensão desse sistema aos Tribunais, como forma de democratizar o processo de investidura de seus membros.

Outra alternativa, que não é bem aceita pela doutrina, seria o sistema do sufrágio popular, adotado em algumas unidades da Federação norte-americana, e na Suíça. Os críticos deste sistema costumam dizer que ele conduz à mediocridade da magistratura, porque não permite a seleção dos mais capazes, e afirmam ainda que ele reduz a independência do Judiciário, em decorrência dos comprometimentos políticos ínsitos ao processo de eleição popular. Além disso, a sua adoção incidiria nas vedações do § 4º do art. 60 (cláusulas pétreas).

Quanto aos tribunais superiores, o sistema adotado é o da nomeação pelo Executivo, que no caso do Supremo Tribunal Federal exige a aprovação da maioria absoluta do Senado Federal. A crítica que tem sido feita a este sistema decorre da perda de independência do Tribunal, cujos membros são escolhidos por critérios políticos.

6.2. O processo de investidura dos Ministros do STF

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 101, exige apenas três requisitos para a investidura no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal: a idade entre 35 e 65 anos, o notável saber jurídico e a reputação ilibada. Presentes esses requisitos, o indicado será nomeado pelo Presidente da República, após a aprovação do seu nome pela maioria absoluta do Senado Federal. Sintomaticamente, nunca houve, em toda a nossa história republicana, durante mais de 111 anos, uma única recusa do Senado em relação a um nome indicado pelo Presidente da República.

JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES critica esse método de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal, que segundo ele, somado com a súmula vinculante, "transforma-se em um eficaz mecanismo neo-autoritário, uma vez que aparenta ser legitimo e democrático".

Diz ele que a Suprema Corte Americana, cujos membros são também escolhidos pelo Presidente e aprovados pelo Senado, pode ser um órgão autônomo, que cumpre adequadamente sua missão constitucional, mas no Brasil esse método de escolha, que para alguns representa um mecanismo de freios e contrapesos, definitivamente não funciona, devido à nossa cultura, centralizadora e autoritária. Assim, o Executivo é sempre preponderante. Não há equilíbrio. [17]

Mas o Dr. MAGALHÃES critica também, com muita propriedade, "a equivocada tendência atual da adoção de um controle concentrado de constitucionalidade das leis, com a adoção de mecanismos processuais vinculantes". Diz ele, a respeito, que o Brasil está na contra-mão da História, porque "estamos abandonando o avançado e democrático controle difuso de constitucionalidade, que o mundo inteiro aos poucos vai descobrindo, para adotarmos o controle concentrado, que lentamente a Europa vai abandonando". Trata-se, portanto, de um gravíssimo retrocesso autoritário. [18]

Para que a jurisdição constitucional pudesse ser independente, portanto, e assim também para que a Constituição fosse efetivada, seria necessário substituir, por qualquer método democrático que não dependesse da vontade do Executivo, o método de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. [19]

Também o ilustre Magistrado ALEXANDRE NERY DE OLIVEIRA, em trabalho sobre a reforma do Judiciário, sugere outras opções, como um sistema de cooptação, com a participação dos próprios Ministros do STF, desde que a escolha recaísse em magistrados de Tribunais Superiores, o que deveria ser capaz de impedir as investiduras com base em critérios políticos, ou ainda, que a investidura dos ministros do Supremo fosse feita a partir de listas encaminhadas pelos Tribunais Superiores, pelo Ministério Público e pela OAB. [20]

No projeto de reforma do Judiciário, que há muito tramita no Congresso Nacional, constam duas alterações nesse processo de escolha dos ministros do STF. Uma delas seria a exigência de um quorum qualificado de 3/5 dos senadores, em substituição à maioria absoluta. A outra seria a instituição de uma espécie de quarentena para os candidatos ao cargo, de modo que não poderia ser indicado quem tivesse ocupado, nos últimos três anos, os cargos de ministro de Estado, advogado geral da União ou procurador geral da União, além de qualquer cargo eletivo. Esta última proposta poderia ser eficaz, para controlar o poder do Presidente da República. Basta lembrar que, dos últimos cinco Ministros do STF, quatro deles não poderiam ter sido nomeados, se essa norma já estivesse em vigor.

O professor ALEXANDRE DE MORAES defende a transformação do Supremo em Corte Constitucional, e a participação mais efetiva dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na escolha de seus membros, que deveriam ter mandatos limitados, proibida a recondução. [21]

O professor DALMO DALLARI sugere, apenas, uma restrição ao processo atual, através da apresentação de listas tríplices, pela OAB, pela Magistratura e pelo Ministério Público. [22]

Ressalte-se que essa questão do processo de escolha dos ministros do STF assume hoje enorme importância, em decorrência do desenvolvimento que tem experimentado entre nós o sistema concentrado de controle da constitucionalidade, que tende a se sobrepor ao sistema difuso, levando a uma extraordinária concentração do poder decisório no Supremo, ou na Corte Constitucional que venha a substitui-lo, conforme as propostas já em discussão.

6.3.O último Ministro de FHC

O sucessor do Presidente FHC terá a oportunidade de escolher cinco novos ministros do STF, para as vagas dos Ministros Moreira Alves, Sydney Sanches, Maurício Corrêa, Carlos Velloso e Ilmar Galvão, o que torna ainda mais premente a necessidade de democratização desse processo de escolha, para que se evite a formação de uma "bancada do Governo" no Supremo Tribunal Federal.

A respeito, a mídia tem noticiado que o Presidente FHC, certamente prevendo a possibilidade de uma derrota do Governo nas próximas eleições, pretende antecipar esse processo, e aumentar ainda mais a sua influência nas decisões do STF, através da nomeação de mais um Ministro, que ocuparia a vaga do Ministro ILMAR GALVÃO. Para isso, no entanto, seria necessário que ILMAR GALVÃO aceitasse o oferecimento de uma embaixada no Timor Leste, e antecipasse em alguns meses a sua aposentadoria. Nesse caso, o Presidente FHC poderia nomear para essa vaga o seu grande aliado, GERALDO BRINDEIRO, várias vezes reconduzido ao cargo de Procurador-Geral da República, e conhecido nos meios jurídicos como o "engavetador-geral".

Essa escolha, se realmente concretizada, viria fechar com chave de ouro, pela indignidade do artifício que seria neste caso utilizado, uma série de nomeações que têm sido muito criticadas, como as de Maurício Corrêa, ex- Ministro da Justiça do Presidente Itamar Franco, de Nelson Jobim, ex-Ministro da Justiça de FHC e de Gilmar Ferreira Mendes, ex-Advogado-Geral da União, recentemente nomeado pelo Presidente FHC.

6.4. Justiça para todos: democracia e acesso ao Judiciário.

Para finalizar, transcrevemos a "Carta de Princípios Condutores", divulgada no âmbito do Segundo Fórum Social Mundial – 2002, realizado em Porto Alegre, em janeiro deste ano: [23]

CARTA DE PRINCÍPIOS CONDUTORES

A AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, na condição de anfitriã e organizadora da Oficina denominada "Justiça para todos ? Democracia e acesso ao Judiciário", realizada no âmbito do II FÓRUM SOCIAL MUNDIAL - 2002, e a AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros, ANAMATRA - Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, AJUFE - Associação dos Juízes Federais do Brasil, AAJ/RS - Associação Americana de Juristas do Rio Grande do Sul, AMP/RS - Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ADPERGS - Associação dos Defensores Públicos do Rio Grande do Sul, Comissão de Justiça e Paz da CNBB SUL 3, CUT/RS - Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul, THEMIS - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, GAPA/RS - Grupo de Apoio e Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul, NUANCES - Grupo pela Livre Expressão Sexual, CAAR - Centro Acadêmico André da Rocha (DIR/UFRGS), CAMC - Centro Acadêmico Maurício Cardoso (DIR/PUC-RS) e Centro Acadêmico XI de Agosto (DIR/USP),

Considerando que o Fórum Social Mundial constitui um processo de reflexão estratégica coletiva originado do encontro entre redes, coalizões, campanhas, alianças e movimentos sociais protagonizados por sujeitos concretos dispostos a reafirmar os princípios democráticos, valorizar a diversidade, desenvolver as múltiplas possibilidades de se construir um outro marco civilizatório e comprovar que há alternativas ao discurso do pensamento único apregoado pelas políticas neoliberais;

Considerando que as políticas neoliberais constróem sociedades de exclusão em que a voracidade darwinista do capital financeiro privatiza as nações, fixa os rumos, interesses e prioridades governamentais, promove a injustiça social, gera violência e risco de graves conflitos, deixa o forte mais forte, aumenta a desigualdade e produz o descarte massivo dos excedentes humanos que a atuária financeira do lucro não possa absorver;

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Considerando que toda justiça omissa é uma forma de injustiça qualificada, que a função transformadora dos operadores do Direito deve ter efetividade social e que a partição equânime e solidária das riquezas constitui meio de concretização da paz social, do acesso universal dos cidadãos aos bens sociais e da erradicação dos mecanismos constitutivos de exclusão social; e

Considerando que, em países castigados por mazelas de ordem sociopolítica, jurídica e econômica, a questão da inclusão social envolve o debate sobre o desenvolvimento de políticas públicas de conscientização dos cidadãos quanto aos seus direitos e garantias e os seus meios de exercício, defesa e efetividade, bem assim a discussão sobre as formas de democratizar o acesso da população aos órgãos públicos estatais indispensáveis ao exercício da função judicial, servindo para definir os marcos qualitativos de atuação do Estado na distribuição de justiça e pacificação dos conflitos sociais, tanto quanto balizar os modos de cooperação da sociedade civil organizada para a consecução desses objetivos solidários e universais,

RESOLVEM editar a presente CARTA DE PRINCÍPIOS CONDUTORES, oriunda dos consensos formados a partir do diagnóstico de pontos críticos e propostas de solução apresentados pelas entidades signatárias no campo investigativo da DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA PÚBLICA ESTATAL, proclamando os seguintes ENUNCIADOS:

1.ACESSO AOS DIREITOS E GARANTIAS.

O desenvolvimento de políticas públicas de conscientização da população sobre os seus direitos e garantias, bem assim quanto às suas formas de exercício, defesa e efetividade, constitui obrigação essencial do Estado e dever solidário da sociedade civil organizada, sendo um dos pressupostos fundamentais para a inclusão social no Estado Democrático Constitucional, mormente quanto aos segmentos economicamente marginalizados ou excluídos e com nível de escolaridade baixo ou inexistente.

2.ACESSO DEMOCRÁTICO AO SISTEMA DE JUSTIÇA PÚBLICA ESTATAL.

O acesso democrático da população ao sistema de justiça pública estatal constitui obrigação essencial e indelegável do Estado e é um dos pressupostos fundamentais para a inclusão social, exercício, defesa e efetividade dos direitos e garantias dos cidadãos no Estado Democrático Constitucional.

3.QUALIFICAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO.

A qualificação profissional dos operadores do Direito exige a desmercantilização e a reforma do ensino, a partir de reestruturação curricular e formação acadêmica fundadas em visão crítica, humanista, democrática e comprometida com a superação dos problemas sociais.

4.RECONHECIMENTO DA DIMENSÃO REAL DA PESSOA HUMANA E ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA.

A aplicação do direito e a realização da justiça devem ter por fundamento o reconhecimento do ser humano em sua dimensão real, com o respeito à diversidade de gênero, origem, raça, orientação sexual, cor, idade, religião e condição social, desta forma assegurando o acesso universal dos cidadãos a um ordenamento jurídico justo e democrático.

5.PROTEÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS DOS TRABALHADORES.

A proteção e efetividade dos direitos sociais dos trabalhadores dos setores público e privado são fundamentos inalienáveis do Estado Democrático Constitucional.

6.LEGITIMAÇÃO SOCIAL DO SISTEMA DE JUSTIÇA PÚBLICA ESTATAL.

A legitimação social e o fortalecimento institucional do aparelho judiciário e dos órgãos públicos estatais indispensáveis ao exercício da função judicial dependem de atuação democrática, crítica e livre de ingerências do poder político e econômico, fundada na justiça social e comprometida com os direitos humanos, com o respeito ao meio-ambiente e à diversidade, com a afirmação dos princípios constitucionais e a superação dos problemas sociais.

7.INDEPENDÊNCIA DA FUNÇÃO JUDICIAL.

A efetividade do acesso à justiça exige um Poder Judiciário com funções de autogoverno asseguradas, democrático, com provimento dos cargos de início de carreira mediante seleção por concurso público, transparente na atuação administrativa e jurisdicional, constituído por magistrados independentes e investidos em estrutura de garantias funcionais.

8.JUSTIÇA PÚBLICA ESTATAL E COMPATIBILIZAÇÃO DE MEIOS OPERATIVOS.

É obrigação social do Estado a compatibilização dos orçamentos públicos, o aparelhamento orgânico e o provimento funcional dos recursos humanos e materiais necessários à atuação efetiva das agências públicas estatais indispensáveis ao exercício da função judicial (defensorias públicas, promotorias de justiça, órgãos judiciários, estruturas funcionais de apoio especializado e assessoramento técnico, etc.).

9.EFETIVIDADE DO PROCESSO E DAS DECISÕES JUDICIAIS.

O processo judicial democratizado exige as garantias do contraditório e da ampla defesa e a efetividade das decisões, bem assim a desburocratização dos procedimentos, a prevalência da substância e finalidade dos atos processuais sobre a liturgia das formas, a simplificação da linguagem jurídica, a intensificação dos procedimentos voltados à solução de conflitos de natureza coletiva, a valorização do duplo grau de jurisdição e a racionalização do sistema recursal.

Porto Alegre (RS), II FSM, 31 de janeiro de 2002.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS - Palestrante (Sociólogo e Professor da Universidade de Coimbra - Portugal)

BEINUSZ SZMUKLER - Expositor (Presidente da AAJ)

AJURIS -Luiz Felipe Silveira Difini (Presidente e anfitrião)

Aymoré Roque Pottes de Mello (Assessor Especial da Presidência e Coordenador Geral da Oficina)

AMB - Cláudio Baldino Maciel (Presidente)

ANAMATRA - Hugo Cavalcanti Melo Filho (Presidente)

AJUFE - Flávio Dino da Costa (Presidente)

AAJ/RS -Raul Sanvicente (Presidente)

AMP/RS -Ivory Coelho Neto (Presidente)

ADPERGS -Ladislau Cochlar Jr. (Presidente)

CJP/CNBB SUL 3- Marcos Antônio Miola (Vice-Presidente)

CUT/RS -Quintino Marques Severo (Presidente)

THEMIS -Virgínia Feix (Coordenadora Executiva)

GAPA/RS -Célia Ruthes (Presidente)

NUANCES - Célio Golin (Coordenador Geral)

CAAR (DIR/UFRGS) - Igor Dal Bó (Presidente)

CAMC (DIR/PUC-RS) - Fabiano Machado da Rosa (Presidente)

CA XI DE AGOSTO (DIR/USP) - Lívia Oliveira Sobota (Presidente)

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. O sistema constitucional brasileiro e sua efetividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3764. Acesso em: 26 abr. 2024.

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