Com a prolação da decisão judicial lato sensu (o gênero abrange decisão interlocutória, sentença e acórdão), surgem para a(s) parte(s) efeitos jurídicos os mais diversos, seja acolhendo-se ou negando uma pretensão, seja determinando-se a prática ou abstenção de algum ato etc. Exatamente por produzir efeitos jurídicos às partes envolvidas no litígio, exige-se que os pronunciamentos judiciais sejam cada vez mais claros e inteligíveis a elas, permitindo-lhes, pela simples leitura do provimento judicial, entender perfeitamente a extensão desses efeitos.
Nesse passo, e para o fim de tornar o pronunciamento judicial acessível a quem quer que se ponha a examiná-lo, têm os embargos declaratórios prestado papel de especial relevo, na medida em que se destinam a "completar a decisão omissa ou, ainda, de aclará-la, dissipando obscuridades ou contradições". [1] Desta forma, qualquer ato judicial (mesmo interlocutório) que careça de complementação e/ou aclaramento deve sê-lo por meio dos embargos de declaração.
Para além dessa função de integração da decisão embargada, usa-se atualmente o recurso em tela com o que se convencionou chamar "efeito infringente" ou "efeito modificativo", expressões utilizadas para indicar o pedido de procedência dos embargos que conduza não apenas à complementação ou ao aclaramento da decisão, mas também – e principalmente – à reforma do ato judicial embargado. Cumpre dizer, embora não seja este o ponto nodal deste estudo, que a infringência é mera decorrência do julgado, não ofendendo a sistemática recursal do Código de Processo Civil. "Na verdade" – ensina NELSON NERY JUNIOR [2] – "não haverá propriamente infringência do julgado, mas decisão nova, pois a matéria não foi objeto de consideração pela decisão embargada".
Portanto, uma vez providos os embargos manejados com pedido de efeito modificativo, nova decisão será proferida na causa, que poderá:
(a) complementar e/ou aclarar a decisão embargada, tornando-a inteiramente cognoscível pela parte que aviou o recurso, esclarecendo-na sua situação jurídica após o advento da decisão judicial (fala-se, pois, em modificação do julgado recorrido); ou
(b) substituir in totum a decisão embargada, por ser com ela manifestamente incompatível. Neste caso, não se trata de nova decisão que modifique a anterior, mas de pronunciamento que verdadeiramente substituiu o predecessor, chegando mesmo a anulá-lo.
É nesta última hipótese ora ventilada que reside nosso interesse, pois se trata de questão ainda não pacificada na jurisprudência, principalmente quanto à natureza jurídica da decisão que, sob o rótulo de embargos declaratórios, por ser totalmente incompatível com o veredicto embargado, anula-o.
Pois bem.
Tomemos um exemplo corriqueiro. Imagine-se que numa ação de execução por quantia certa, satisfaça o devedor sua obrigação (art. 794, I CPC), pagando ao credor o numerário devido. Nesse caso, deverá ser proferida sentença definitiva, declarando-se extinta a execução. Suponha-se ainda que, dessa sentença, embargue de declaração a parte pretensamente prejudicada, requerendo que, com a concessão de efeito modificativo ao recurso, faça-se incidir no valor da execução expurgos inflacionários, com a conseqüente retomada da marcha processual.
Julgando procedentes os embargos declaratórios, a decisão exarada seguirá esta linha (ou outra similar): "ante o exposto, acolho os embargos de declaração para, emprestando-lhe efeitos modificativos, fazer incidir sobre o débito executado os expurgos inflacionários, determinando-se, pois, por conseqüência, o prosseguimento do feito, com a citação da executada para que pague o valor devido ou nomeie bens à penhora...". Trata-se, sem dúvida alguma, de decisão interlocutória, com todos as suas características e contornos, porquanto traduz-se em um "pronunciamento do juiz que, não colocando fim ao processo [ao invés disso, determinando seu prosseguimento], resolve questão incidente ou provoca algum gravame à parte (CPC 162 § 2.º)". [3]
Destarte, muito embora à primeira vista pareça que a sentença embargada – que declarara extinta e execução pela satisfação da obrigação pelo devedor (art. 794, I CPC) – fora modificada com o acolhimentos dos embargos de declaração, o certo é que aludida decisão fora anulada com a procedência dos mencionados declaratórios, eis que não houve qualquer integração ou complementação da mesma; ao contrário, o que houve foi verdadeira substituição de uma decisão por outra, sendo que a embargada passou a inexistir no mundo jurídico, anulada que foi pela proferida no julgamento dos embargos declaratórios.
Com efeito, se a decisão proferida nos embargos de declaração é manifestamente contrastante com a estampada na sentença embargada (e – no nosso exemplo – efetivamente o é, pois ao substituir a sentença extintiva do feito, a decisão nos declaratórios determinou a retomada da marcha processual), não há falar-se em integração, complementação ou qualquer outro ato judicial que declare a sentença embargada.
Daí porque nesta hipótese – de a decisão proferida no julgamento dos embargos declaratórios com efeito modificativo pleno substituir totalmente a decisão embargada – há evidente autonomia da decisão dos embargos de declaração, pois se trata de uma nova manifestação judicial, que não guarda qualquer correlação material com o ato judicial substituído.
Esta situação foi muito bem exposta por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, [4] para quem "às vezes, suprida a omissão, impossível se torna, sem manifesta incoerência, deixar subsistir o que se decidira (ou parte do que se decidira) no pronunciamento embargado".
Destarte – ainda no caso hipotético – a decisão que determinou o prosseguimento do feito, com a inclusão dos expurgos inflacionários (proferida nos embargos declaratórios), é manifestamente incoerente com a decisão que havia determinado a extinção do feito, na forma do art. 794, I do Código de Processo Civil. Dessa visível incompatibilidade surge a autonomia da decisão prolatada nos embargos declaratórios, que anulando a sentença embargada, e determinando a retomada da marcha processual, tem nítido cunho interlocutório, sendo impugnável por meio de agravo de instrumento e não de apelação.
Em outras palavras: quando são opostos embargos declaratórios de sentença e no julgamento desses embargos se reconhece que a decisão embargada carecia de alguma complementação, é natural que a decisão proferida nos embargos tenha a feição de sentença, pois que se constitui em declaração daquilo que estava omisso, obscuro ou contraditório, ainda que possua caráter modificativo, desde que a infringência no julgado não seja manifestamente incoerente com o restante do julgado.
Lado outro, se a decisão prolatada nos embargos declaratórios vier a substituir completamente a sentença embargada, e mais, determinar que o feito retome sua marcha normal, sem extingui-lo, portanto, tem-se ato judicial tipicamente interlocutório, desafiador de recurso de agravo.
Notas
01. NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 1040.
02. Ob. cit., p. 1041.
03. NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 1.011.
04. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 8. ed. vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 547.