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Aspectos coletivos das relações de consumo.

Interesses transindividuais e o Ministério Público

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01/02/2003 às 00:00
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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo a análise do crescimento das relações jurídicas de massa em decorrência de um fenômeno de modificação da economia. O direito tem por finalidade pautar a convivência, resolvendo os conflitos sociais à medida em que forem surgindo, impulsionado sempre pelo binômio anseio social/segurança jurídica. As relações de consumo não se prestam apenas ao alcance do consumidor singular que adquire produtos ou serviços. A realidade é a de que as pessoas consomem em massa, sendo de extrema necessidade o desenvolvimento de um raciocínio jurídico para a tutela coletiva.

Todavia, o consumidor individual, integrante de um grupo de consumidores classificados como coletivos, restará desprovido de força para o enfrentamento de questões de tal envergadura. Nesse contexto, o Ministério Público se apresenta como a instituição que melhor se prestará ao desempenho de tal mister, em razão de seu perfil constitucional.


1. Relações de Consumo

A terminologia empregada para identificar o conjunto de normas que se atém às relações jurídicas de consumo não tem sido das mais felizes - Código de Defesa do Consumidor -, pois não tem por escopo apenas a tutela do consumidor, mas, sobretudo, alcançar o delineamento da política nacional das relações de consumo, como asseverou Cristiane Derani [1].

Toda sociedade anseia ao progresso e este só é obtido com o incremento da economia, fomentando-se riquezas, acarretando na geração de empregos, aumento da arrecadação de tributos e, via de conseqüência, alcance de tecnologia que acaba por beneficiar a todos. Para tanto, necessário se faz o regramento dos negócios jurídicos realizados, a fim de que não haja desequilíbrio em nenhum dos fatores desenvolvimentistas. É nesse contexto que o consumidor se insere e será identificado como a parte desprovida de recursos, não financeiros, mas sim instrumentais, como demonstra José Geraldo Brito Filomeno: "O consumidor é o elo mais fraco da economia; e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco". O autor dessa frase, ao contrário do que possa parecer, não é qualquer consumerista exacerbado. Ao contrário, é o "pai da produção em série", ninguém menos que o célebre magnata da indústria automobilística Henry Ford (...)" [2] Não obstante a procedência do conceito, não há como se olvidar que a interpretação das regras não pode ser cega em favor do consumidor, devendo ser enfocado com base na política nacional das relações de consumo, destinada ao meio social em que se insere, a fim de que não se inviabilize o progresso.

- Consumidor Singular

O conceito de consumidor há muito vem sendo estudado como aquele que figura na ponta da cadeia de produção. A Lei 8.078/90, em seu artigo 2º, dispõe que: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final." No mesmo sentido, adota a lei sueca, de 1973, em seu artigo 1º, o conceito como: "pessoa privada que compra de um comerciante uma mercadoria, principalmente destinada ao seu uso privado e que é vendida no âmbito da atividade profissional do comerciante"; bem como a lei mexicana, de 1976, no artigo 3º: "consumidor é quem contrata, para sua utilização, a aquisição, uso ou desfrute, de bens ou a prestação de um serviço".

A adoção legal do indigitado conceito tem merecido críticas. Para a identificação do consumidor, numa visão finalista, deve-se adunar ao conceito o critério da vulnerabilidade, restringindo àquele que se utiliza do bem ou do serviço para seu uso próprio ou de sua família. Já para os maximalistas, a Lei 8.078/90 surge como um novo regulamento jurídico para as relações de consumo, alcançando uma gama muito ampla de negócios jurídicos, como, v.g., o médico que adquire um equipamento para a realização de cirurgias em seu consultório ou o advogado que adquire computadores para seu escritório.

1.1.Consumidor Coletivo

Identificado o consumidor individual, necessário se faz o delineamento do consumidor coletivo.

Com o desenvolvimento da tecnologia e principalmente com o aumento das atividades econômicas, as sociedades têm passado por uma transformação em sua estrutura de produção e distribuição. Verifica-se em todo o mundo o fenômeno das fusões e incorporações, de modo que cada vez mais aquelas empresas de médio porte têm se tornado de grande porte em virtude da união ocorrida. Por outro lado, outras empresas de médio porte, inaptas ao crescimento necessário, preferem o enxugamento, isto é, tornam-se pequenas. Já se pode vislumbrar um quadro em que existem muitas pequenas, poucas médias e algumas grandes empresas. A chamada base da pirâmide está muito alargada, com o seu topo baixo. Esse fato acaba por fazer surgir a relação coletiva de consumo.

O consumidor coletivo foi identificado pela Lei 8.078/90, quando o parágrafo único do artigo 2º aduziu: "Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.". Como exemplos de coletividade nas relações de consumo, pode-se verificar nos problemas de fabricação de determinado veículo, quando é feito recall para que todos os proprietários troquem gratuitamente determinada peça defeituosa de fábrica. Tal idéia já vinha sendo incutida na doutrina desde 1974, no direito italiano, traduzida pelo conceito de direito metaindividual ou transindividual [3], a ser desenvolvido adiante.

Definido o consumidor singular e o consumidor coletivo, de forma ampla, apenas para a fixação do raciocínio, analisemos seus efeitos, sob a égide da tutela dos interesses transindividuais.


2. Direitos Individuais e Coletivos

2.1. Direito Individual

O conceito de direito individual sempre esteve presente no campo jurídico. Atrela-se a uma visão privatística. Determinada pessoa contrai uma dívida com uma entidade creditícia e na data aprazada, diante da impontualidade, é intentada demanda executiva em que o Judiciário irá subsumir-se à conduta do devedor - o qual deveria ter adimplido voluntariamente -, através do processo de excussão, ingressando em seu patrimônio e retirando quantos bens forem necessários à satisfação do crédito exeqüendo, levando-os à hasta pública.

A aferição de um direito individual, como leciona Rodolfo de Camargo Mancuso [4], consiste em examiná-lo sob os ângulos do "prejuízo" e da "utilidade", "um acidente automobilístico do qual só resultem danos materiais gerará interesses individuais (ao ressarcimento, ao recebimento do seguro); as situações de que só podem resultar benefício para as partes implicadas (por exemplo, um ato de liberalidade) geram interesses individuais, porque a utilidade do evento se esgota na esfera de atuação dos participantes.".

Desta feita, parece não haver maior dificuldade em se vislumbrar um direito individual.

2.2.Direitos Transindividuais ou Metaindividuais

2.2.1.Visão Publicista e Visão Social

A origem de tais interesses tutelados situa-se, como já asseveramos, na Itália, quando se concebeu o deslocamento do interesse privatístico para um campo em que um número considerável de pessoas fossem titulares de direitos, sejam elas determináveis ou indetermináveis.

No ano de 1977, José Carlos Barbosa Moreira [5] já lecionava que as relações não mais seriam identificadas por um feixe de retas paralelas, mas por um leque de linhas que convergissem para um objetivo comum e indivisível.

Surgiu então a questão da classificação desse novo interesse que não tinha por finalidade alcançar apenas uma pessoa, mas várias, às vezes até não conhecidas e indetermináveis. Seria um interesse privado ou público? Nem propriamente um nem outro.

Os denominados interesses transindividuais estão posicionados entre o público e o privado, na categoria dos interesses sociais, consoante o fenômeno da descentralização social, em que a sociedade de massa passa a influenciar na gestão estatal – é a denominada gestão participativa. A soberania estatal é limitada pela soberania social. A sociedade de massa passa a interagir nas decisões para a definição dos rumos sociais. Um exemplo no âmbito das relações de consumo pode ser alcançado na seguinte hipótese: determinada pessoa pode se insurgir quanto a uma propaganda considerada enganosa, sem que necessariamente tenha sofrido qualquer prejuízo, tampouco tenha que fazer prova de que consome aquele produto ou utiliza o serviço.

2.2.2. Paradigma Histórico no Direito Brasileiro

O direito brasileiro, desde 1969, já adotava o conceito de interesse social (rectius: transindividual).

A Constituição da República de 1967, com a redação empregada pela Emenda Constitucional nº 1/69, preceituava, no artigo 153, § 31: "Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas.". A Lei 4.717/65, que trata da ação popular, regula em seu artigo 1º: "Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.", sendo de registrar que apesar de não estar prevista a legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação, há regra imperativa no sentido da assunção do pólo ativo na eventual desistência da ação pelo autor originário, além da sua atuação como custos legis. A Lei 6.938/81, disciplinando a proteção ao meio ambiente, já indicava a legitimidade do Ministério Público para perseguição da responsabilidade civil e penal do causador do dano. Já a Lei 7.357/85, ao dispor sobre a ação civil pública, surge como um diploma que tinha por escopo a tutela dos interesses que são o objeto do presente trabalho, com abrangência muito ampla em relação não só aos legitimados à propositura da ação (artigo 5º), mas também no que tange ao seu objeto (artigo 1º).

A nova ordem constitucional de 1988 incluiu em seu texto, como princípio fundamental, a cidadania [6], erigindo à categoria das garantias individuais, classificadas como cláusulas pétreas, a defesa dos consumidores e a possibilidade do exercício da gestão participativa [7]. A Constituição Cidadã de 1988, adiante, ao dimensionar a órbita de poder do Ministério Público, confiou-lhe a proteção dos interesses metaindividuais [8].

Outras leis adotaram a defesa dos interesses transindividuais, como a Lei 7.853/89, referente às pessoas portadoras de deficiências físicas; Lei 7.913/89, reconhecendo o interesse dos investidores do mercado de valores mobiliários e a Lei 8.069/90, ao disciplinar o Estatuto da Criança e do Adolescente.

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Ademais, a Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, asserta, por mais de uma vez, que as relações consumeristas não se restringem àquele indivíduo que se direciona à loja e adquire determinado produto em contraposição ao comerciante que o vendeu. Nesse sentido, a coletividade de consumidores ganha proteção específica [9].

E, por derradeiro, a Lei 8.884/94 reconhece que a infração contra a ordem econômica encaixa-se na órbita dos interesses em tela, da mesma forma da recente Lei 9.605/98, com o escopo da proteção ao meio ambiente.

Assim verificou-se que o ordenamento jurídico brasileiro possui bom sustentáculo positivo para o enfrentamento das questões cada vez mais crepitantes da tutela dos interesses que transcendem o campo individual.


3. Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos

Os direitos transindividuais são divididos em espécies: difusos, coletivos e individuais homogêneos, na forma da regra enunciativa do parágrafo único do artigo 81 da Lei 8.078/90; daí a necessidade de análise individualizada de cada qual.

3.1. Interesses Difusos

3.1.1. Conceito

O conceito positivado pela indigitada regra é o que tem recebido a maior aceitação dos juristas, como denota José Carlos Barbosa Moreira: "Los coceptos de "interés difuso"y de "interés coletivo", desde hace mucho empleados por la doctrina, aunque no siempre em forma unívoca, están ahora, entre nosotros, legalmente fijados. Em efecto, el art. 81, párrafo único, de la Ley nº 8.078/90, define ambas categorías(...)" [10]

Assim, nos termos do inciso I do parágrafo único do artigo 81 da Lei 8.078/90: "I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;".

Os direitos difusos são aqueles que se situam na órbita mais ampla, pois será necessário que pela sua natureza sejam indivisíveis, alcançando pessoas indeterminadas e indetermináveis, ligadas tão somente por uma situação fática. Sua amplitude é tão extensa que chega até a se confundir com o interesse público, como na hipótese de propaganda enganosa de determinado produto farmacêutico.

Relevante a diferença realizada por Motauri Ciocchetti de Souza [11] entre determinação e estimativa: "A determinação implica em conceito preciso, exato; a estimativa, por seu turno, lida com o critério da aproximação, da probabilidade". Não sendo possível a determinação matemática das pessoas titulares de determinado direito, alcança-se o requisito da ausência de identificação; nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal [12], em leading case, decidiu: "Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos".

Os titulares de tal espécie de direitos transindividuais, além de indetermináveis, deverão estar ligados por uma circunstância fática, titulares de direito indivisível, isto é, não estarão unidos entre si, tampouco aos demais, como na definição clássica de relação jurídica, mas sim em decorrência de um fato, como, v.g., a comercialização de um alimento estragado, não se podendo dizer que cada pessoa tem o direito divisível de consumir alimentos dentro da data de validade.

3.1.2. Hipóteses

A aplicação prática do conceito de interesse difuso, quando levada ao crivo jurisdicional tem suscitado algumas divergências e imprecisões. É nesse contexto que se faz necessária a análise de casos práticos.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [13] enfrentou questão patrocinada pelo Ministério Público Estadual, quando este pugnou pela declaração de nulidade de diversas cláusulas abusivas existentes em contratos bancários, adotando decisão no sentido de que se tratava não só de problema relacionado ao réu na demanda – Banco BANESPA -, mas à "população em geral".

O mesmo inovador e preciso Tribunal, em outra oportunidade [14], assertou que o Ministério Público: "está autorizado a investigar e requisitar informações que entender oportunas e convenientes para agir e, assim, promover ações do interesse preventivo, de tutela dos consumidores. No presente caso, sem qualquer sombra de dúvida, estamos diante de um interesse público e difuso, qual seja pretensão de anulação e ajuste de regras adesivas de contratos previamente elaborados e programados pelas instituições financeiras, onde estão inseridas cláusulas leoninias, abusivas, com tratamento não só desigual, mas, via de regra, desfavorável ao consumidor. Os bancos, como prestadores de serviços, especialmente, contemplados no art. 3º, §2º, estão submetidos as disposições do Código de Defesa do Consumidor(...)". Não obstante o brilho das decisões, não se acanhando diante das instituições financeiras que infringem diuturnamente os direitos de seus correntistas, a questão não se amolda ao conceito de interesse difuso, por ser possível a determinação dos correntistas existentes em cada instituição bancária, face ao sistema informatizado de controle do Banco Central do Brasil.

O Ministério Público do Estado de São Paulo propôs ação civil pública com o objetivo de impugnar o critério de reajuste de mensalidades escolares, quando o Tribunal de Justiça daquele Estado [15] entendeu que se tratava de interesse difuso, ao passo que, na verdade, está na órbita do interesse coletivo, pois não obstante a dificuldade a ser enfrentada para a aferição dos titulares dos interesses - alunos da rede privada de ensino -, o MEC (Ministério da Educação) possui registros das escolas, as quais também poderão informar quem são os alunos matriculados.

Hipóteses que se amoldam com precisão ao conceito de interesse difuso são: a) propaganda enganosa; b) a negativa por parte de um hotel em hospedar determinada pessoa, em razão da cor da sua pele ou sua religião; c) a concorrência desleal; d) o monopólio; e) a comercialização de alimentos ou remédios sem condições de consumo, por estarem deteriorados. Em todos esses casos, tem-se um grupo de pessoas indeterminadas e indetermináveis, pois não será possível saber-se quantas pessoas no país, ou até mesmo no exterior, passaram mal com a ingestão de determinado alimento; ligadas por uma mesma circunstância fática e titulares de direito indivisível - todos têm direito à informação precisa sobre determinado produto ou serviço.

3.2.Interesses Coletivos

3.2.1. Conceito

O interesse coletivo se afigurará também como uma espécie dos direitos transindividuais, com um campo de alcance mais restrito. O inciso II do parágrafo único do artigo 81 da Lei 8.078/90, dispõe: "interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base".

Os titulares serão pessoas, numa análise perfunctória, indeterminadas, porém determináveis, mesmo que com algum esforço, que façam parte de grupo, categoria ou classe. Além disso o bem jurídico deve se denotar indivisível.

A indivisibilidade do objeto apresenta-se da mesma forma dos interesses difusos, sendo possível exemplificar com a discussão judicial do aumento de mensalidades escolares, eis que quando o pedido for julgado procedente beneficiará a todos os alunos da rede de ensino particular.

A determinação dos titulares dos interesses coletivos será alcançada, como já exarado, pela matemática, sendo possível a identificação dos sujeitos integrantes de determinado grupo, categoria ou classe.

Como acentua Rodolfo de Camargo Mancuso [16], os interesses coletivos não surgem com a simples soma de direitos individuais, tampouco com a defesa de interesse pessoal do grupo; trata-se de interesse que ultrapassa esses dois limites, "ficando afetados a um ente coletivo, nascido no momento em que certos valores individuais, atraídos por semelhança e harmonizados pelo fim comum, se amalgamam no grupo.(...) É preciso, então, que haja um ideal coletivo, uma alma coletiva; é isso que conduz à característica específica.".

3.2.2. Hipóteses

No campo dos direitos difusos, a eventual distorção na sua classificação acarretará a identificação de um direito coletivo, não apresentando problemas práticos. O contrário se dará com os interesses coletivos, pois a tergiversação culminará com a classificação do interesse como individual homogêneo, ingressando em campo controvertido sobre a legitimidade do Ministério Público para a tutela dos interesses homogêneos indisponíveis.

O caso das mensalidades escolares, já assinalado, foi objeto de intensa controvérsia jurisprudencial no cenário nacional, tanto que coube ao órgão pleno do Supremo Tribunal Federal a definição da questão, decidindo que se tratava de um interesse coletivo.

Também se amolda ao conceito de interesse coletivo a discussão sobre o aumento de planos de saúde, como reconheceu o Superior Tribunal de Justiça [17] em ação proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro: "O debate sobre a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em favor dos consumidores do serviço de saúde prejudicados pela majoração ilegal dos prêmios de seguro-saúde situa-se no campo do Direito Privado. É cabível ação civil pública para requerer a suspensão de cobrança a maior de prêmios de seguro-saúde. Em tal caso, o interesse a ser defendido não é de natureza individual, mas de todos os consumidores lesados que pactuaram com as empresas de seguro-saúde. O Ministério Público Estadual tem legitimidade para propor a ação porquanto se refere à defesa de interesses coletivos ou individuais homogêneos, em que se configura interesse social relevante, relacionados com o acesso à saúde."

O grupo de pessoas, que se unem pela situação fática caracterizada pela aquisição de imóvel pelo SFH (Sistema Financeiro da Habitação), foi reconhecido como detentor de interesse coletivo no que tange à discussão de cláusula contratual adesiva, considerada leonina [18]: "Legitimidade. Ministério Público. Ajuizamento. Ação Civil Pública. Fundamentação. CDC. Hipótese. Existência cláusula abusiva. Contrato. Compra e Venda. Casa Própria. SFH. Objetivo. Defesa direito coletivo, direito difuso, direito individual homogêneo. Irrelevância. Direito indisponível. Caracterização. Relevância. Interesse social"

Por último, questão que merece análise é a da definição dos interesses dos contribuintes para discussão das questões tributárias. O Superior Tribunal de Justiça tem apresentado entendimento divergente. Acentua Marcos Antonio Maselli de Pinheiro Gouvêa [19] que "curiosa é a jurisprudência das Turmas que integram a Seção de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça. Nos autos do Recurso Especial nº168.415, a 1ª Turma proferiu acórdão assentando que "o Ministério Público não tem legitimidade para promover a ação civil pública na defesa de contribuintes do IPTU, que não são considerados consumidores". Causa espécie, porém, que o referido julgado tenha sido deliberado de forma unânime, quando, pouco tempo antes, três dos cinco Ministros que compunham a Turma manifestaram, na condição de relatores de outros recursos (todos julgados unanimemente, frise-se), entendimento diametralmente oposto."

Como demonstrado, recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça têm asseverado que se trata de um interesse individual, como pode ser ilustrado no aresto seguinte [20] da 1ª Turma: "Ação Civil Pública – Direitos individuais disponíveis - ICMS – ilegitimidade do Ministério Público. A legitimidade do Ministério Público é para cuidar de interesses sociais difusos ou coletivos e não para patrocinar direitos individuais privados e disponíveis. O Ministério Público não tem legitimidade para promover a ação civil pública na defesa de contribuintes, que não são considerados consumidores. Recurso provido.". A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça tem o mesmo posicionamento [21].

Sem ingressar na questão do enquadramento do contribuinte como consumidor, por acreditar ser tema para trabalho específico, registrando, apenas, entender desarrazoado o posicionamento jurisprudencial esposado, parece difícil a compreensão dos recentes arestos. Os contribuintes, sem dúvida alguma, integram uma classe; são indetermináveis à primeira vista, mas determináveis, com algum esforço, bem como são ligados por uma relação jurídica comum. Tomando-se por base o tributo IPTU, bastará que o Município de determinada cidade forneça o seu cadastro de contribuintes para que se identifique o grupo, não obstante ser difícil estimar-se o seu número, em uma grande cidade, como a do Rio de Janeiro; essas pessoas estão ligadas por uma relação jurídica base com o fisco, qual seja a de que devem cumprir com as suas obrigações tributárias junto ao erário, submetidas às mesmas regras. Ora, realmente, como enfatizou Marcos Antonio Maselli de Pinheiro Gouvêa, é de difícil percepção a exclusão dos contribuintes do rol de interesses coletivos, salvo se o mesmo raciocínio jurisprudencial fosse engendrado em relação aos segurados dos planos de saúde ou aos alunos da rede particular de ensino.

3.3. Interesses Individuais Homogêneos

A última espécie de interesses transindividuais é a dos individuais homogêneos, apresentando-se, na maioria das vezes, como o que abrange, na escala desenvolvida, o menor número de titulares de direitos.

3.3.1. Conceito

O inciso III do parágrafo único do artigo 81 da Lei 8.078/90, preceitua que são: "interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."

Os titulares de interesses individuais homogêneos são determináveis; o bem jurídico é divisível e são ligados por origem comum. Assemelham-se aos difusos, quanto à origem fática comum e aos coletivos, em relação à determinação dos sujeitos. Contudo, a divisibilidade do objeto os tornará deveras diferente.

Um interesse individual, mesmo que homogêneo, pode ser identificado e tutelado singularmente por seu titular. A possibilidade da tutela coletiva de tais interesses, conferida pelo legislador, tem por escopo facilitar o acesso à justiça, ainda mais em certos casos em que mesmo em se tratando de direito individual, tomará uma feição de proporções vultosas, como a situação verificada em um recall (recitus: chamada) promovido por determinada montadora de automóveis; cada proprietário do veículo poderá pugnar do Poder Judiciário uma solução para a peça defeituosa, mas através de uma demanda coletiva em que acarrete na condenação da montadora, havendo uma abrangência maior, indo ao encontro do princípio da economia processual, tão almejado nos dias em que há sobrecarga de processos judiciais.

De outra forma, a possibilidade da tutela coletiva de interesses individuais ungidos por uma mesma situação fática, fará com que lesões que seriam insignificantes e de difícil acesso à reparação, possam ser perseguidas, desacreditando fornecedores inescrupulosos. Imagine-se que determinado banco resolva debitar a quantia de R$ 0,50 (cinqüenta centavos) da conta de cada correntista para com o produto do ilícito criminal de apropriação indébita saldar determinada dívida. Provavelmente, poucos correntistas se atreveriam a reclamar judicialmente o desconto, até mesmo porque poucos serão os que o identificarão; sem falar na esfera criminal, a qual dificilmente seria suscitada. Imagine-se qual será o montante alcançado por tal operação fraudulenta! A demanda coletiva se prestará à disciplina de tal situação.

3.3.2. Hipóteses

Quando feita a referência aos interesses coletivos, demonstrou-se que a questão do aumento abusivo de mensalidades escolares se encaixava naquela espécie; contudo, como corolário do reconhecimento de que os aumentos foram ilegais, conclui-se que o que foi pago a maior deve ser devolvido aos alunos, momento em que esse direito à devolução do indébito afigurar-se-á como interesse individual homogêneo, como ressalta Hugo Nigro Mazzilli [22].

Como já preceituado, o recall feito por indústrias para que os adquirentes de determinado produto com vício de fabricação possa ser trocado ou corrigida a falha, também está adstrito ao conceito de interesse individual homogêneo.

Indica Motauri Ciocchetti de Souza [23] que "todos os adquirentes do feijão daquela marca sofreram lesão da mesma natureza e decorrente de origem comum – a subtração, em cada pacote do produto, de dez gramas em relação à quantidade devida." Arrematando que "cada uma dessas lesões, em termos econômicos, possuirá mínima expressão – para não dizermos praticamente nenhuma. Não obstante, o produtor, agindo da forma preconizada em cerca de dez mil embalagens, por certo experimentou sensível enriquecimento ilícito.". Nesse caso, vislumbra-se que a defesa dos interesses individuais homogêneos de forma coletiva se apresenta não só repressiva à lesão ocasionada ao consumidor, mas sobretudo de maneira preventiva.

Como acima já enfrentado, os interesses dos contribuintes em relação à discussão de tributos não devem ser classificados como individuais homogêneos, mas como coletivos.

Assunto muito ventilado nos Tribunais em passado recente foi o índice de correção da caderneta de poupança quando da edição do chamado PLANO VERÃO (janeiro de 1989), em que o Judiciário decidiu ser devido o percentual de 42,72% (quarenta e dois, setenta e dois por cento). A discussão sobre a existência do crédito encontra-se no plano do interesse coletivo, só que uma vez reconhecida a dívida e o seu percentual, passa-se ao interesse individual homogêneo, em que cada poupador terá direito à sua incidência, nos termos da sua própria situação – saldo na conta de poupança à época. Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça [24].

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Sobre o autor
Márcio Souza Guimarães

promotor de Justiça no Rio de Janeiro, mestrando em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, professor de Direito Empresarial da Fundação Getúlio Vargas, da Universidade Cândido Mendes, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento em Direito (CEPAD), coordenador e professor da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos coletivos das relações de consumo.: Interesses transindividuais e o Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3789. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho premiado no concurso Ensaios Jurídicos Luiz Carlos Caffaro, promovido pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (FEMPERJ).

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