Artigo Destaque dos editores

O exercício da medicina e o Código de Defesa do Consumidor.

Aspectos atuais do direito brasileiro e espanhol

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5. As alterações legislativas introduzidas pelo novo Código Civil

Em 11 de janeiro de 2003 entrou em vigor a Lei 10.406, de 10/01/2002, o novo Código Civil Brasileiro, em substituição – 87 anos depois – à Lei 3.071, de 01/01/1916.

O intervalo de quase um século entre os citados textos legais poderia levar à expectativa de grandes inovações legislativas. Ao menos no que tange à responsabilidade civil, estas não ocorreram.

Em linhas gerais, houve apenas uma reciclagem semântica, verdadeira e hábil reapresentação de enunciados idênticos, com novas palavras. E às vezes, nem isso. Tome-se por exemplo o art. 927 do novo Código, que substituiu o seu análogo, art. 159 do Código de 1916:

Novo Código - Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo.

Parágrafo único – Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Antigo Código - Art. 159 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

A princípio, pode-se imaginar que o novo código trata unicamente do dano causado por ato ilícito, e que as definições do antigo, englobando ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, seria mais completo. Ocorre que é preciso observar o código como um sistema integrado, de modo que sua interpretação hermenêutica seja feita de acordo com o conjunto, seja ele coeso ou não.

Sob este prisma, é necessário considerar os artigos 949 a 951 do novo diploma legal. Estes nos chamam especial atenção neste trabalho, uma vez que relacionados diretamente a possíveis problemas causados pela má prática no exercício da medicina, e certamente presentes em eventuais demandas judiciais.

Tudo o que pode ser considerado inovação é a oportuna inclusão do que já vinha sendo aplicado pelos Tribunais Superiores, como é o caso do parágrafo único do art. 950, transcrito mais adiante.

Novo Código - Art. 949 – No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.

Antigo Código - Art. 1.538 – No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente.

§ 1º - Esta soma será duplicada, se do ferimento resultar aleijão ou deformidade.

§ 2º - Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva, ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito.

Este é um caso claro de mudança de costumes e mentalidade social, com os costumes de uma época fazendo evoluir o texto legal. O parágrafo segundo representava um anacronismo, sem lugar nos tempos atuais.

O parágrafo primeiro do antigo dispositivo, bem como a parte final do caput foram excluídos por opção legislativa, que preferiu deixar as conseqüências penais dos atos lesivos serem tratadas em codificação penal apropriada.

Novo Código - Art. 950 – Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

Parágrafo único – O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.

Antigo Código - Art. 1.539 – Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua o valor do trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá uma pensão correspondente à importância do trabalho, para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

A mais visível modificação, no caso em análise, ocorre no tocante à forma de pagamento da indenização, que pode ser pleiteada de forma integral, paga em parcela única, ao invés de fracionada, em forma de pensão, definida de acordo com a estimativa de tempo de vida/vida útil profissional do ofendido.

Observe-se que tal situação se amolda às situações em que, por conta de má prática médica o paciente perca, por exemplo, funções motoras importantes, inabilitando-o para o exercício de sua profissão.

O dispositivo codificado não menciona a inabilitação completa para o exercício de qualquer trabalho (deixa esta hipótese para o artigo subseqüente), apenas condiciona a impossibilidade de o ofendido continuar a exercer sua profissão, ou de esta ser afetada parcialmente, mas de forma significativa, de modo a interferir na quantidade/qualidade de seu desempenho, abrindo, pois, a possibilidade para a fixação de uma justa quantia indenizatória, lastreada possivelmente em laudos técnico-periciais, valores médios de mercado para os serviços prestados, grau de especialização do ofendido, média de seus vencimentos, capacidade financeira e potencial econômico do ofensor e, claro, bom senso. Tudo isto sem prejuízo de eventuais sanções penais e disciplinares, a serem debatidas em fórum adequado.

Novo Código - Art. 951 – O disposto nos arts. 948, 949, e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho,

Antigo Código - Art. 1.545 – Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.

Antigo Código - Art. 1.546 – O farmacêutico responde solidariamente pelos erros e enganos do seu preposto.

Havia a pretensão de ampliar a abrangência do artigo, de forma a torná-lo referência para a responsabilidade profissional de forma geral, e não somente aquela ligada à atividade médica.

Entretanto, o uso do termo "paciente" torna sua interpretação necessariamente restritiva, de modo a ser aplicável a médicos, cirurgiões, farmacêuticos, dentistas, enfermeiros, anestesistas, e quantas mais definições possuam os profissionais ligados à saúde. O novo dispositivo, portanto, apesar de paradoxalmente mais genérico, ganha em precisão, no sentido de ter sua aplicabilidade expandida.

Todavia, analisado de forma prática, nenhuma alteração traz, uma vez que as hipóteses de aplicação permanecem as mesmas, e às demais categorias profissionais não mencionadas no dispositivo antigo, este já lhes já vinha sendo utilizado, de forma análoga, pelos tribunais nacionais.


6. A construção do entendimento jurisprudencial brasileiro

Durante a última década do século XX, foi sendo lapidado o entendimento de que a atividade médica estava enquadrada como relação de consumo, e como tal, adstrita aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor.

A exemplo do ocorrido em território espanhol, coube aos tribunais dar contornos práticos às discussões doutrinárias então existentes, estabelecendo, através de seus julgados, parâmetros e paradigmas construídos de acordo com os casos concretos que lhes eram apresentados.

Neste diapasão, significativo é o acórdão datado de 1992, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [29], que teve no voto de seu relator, o Desembargador Osvaldo Stefanello, a taxativa conclusão, então historicamente pioneira:

"Vê-se, sem maior esforço intelectivo, que a lei não se dirige apenas a comerciantes, como pretende a agravante, mas a todas as pessoas físicas ou jurídicas que se envolvam com as atividades expressamente mencionadas no texto legal. E a atividade médico-hospitalar é uma atividade tipicamente de prestação de serviços, além de envolver atividades de comercialização de produtos necessários ao medicamento dos pacientes, internados ou não.

Não há, pois, como fugir da constatação de que a atividade médico-hospitalar sujeita está ao Código de Defesa do Consumidor."

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Outro julgamento que torna explícito tal posicionamento, desta vez do Superior Tribunal de Justiça, analisando apelação também oriunda do Estado do Rio Grande do Sul [30], relatado pelo Ministro Waldemar Zveiter, caso que tratava da responsabilidade civil, tanto do médico quanto do centro hospitalar, em virtude de infecção que resultou em amputação da ponta de um dedo, tendo sido assim relatado em voto unânime:

"Dentro desse contexto probatório deve ser encontrado o elemento definidor da existência ou não da culpa dos réus, sendo esta ensejadora, o fato gerador, do dever de indenizar e, tratando-se a controvérsia de uma relação de consumo posto que o autor é um usuário do serviço médico e os réus, prestadores de tal serviço, resulta cabível a inversão do ônus da prova, como promana do art. 6ª, VIII, do CDC (Lei 8.078/90), já que verossímil a legação do autor, e, se assim não fosse, com certeza hipossuficiente, segundo as regras da experiência, pois encontra-se o autor em patamar de inferioridade em relação ao médico e ao hospital para discutir a qualidade do atendimento prestado."

Atualmente, firmado está o entendimento de que há plena sujeição da atividade médica aos princípios e regras estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo a jurisprudência farta em exemplos. Neste sentido, pinçamos algumas decisões, de modo exemplificativo, para demonstrar a plena adesão dos Tribunais Superiores ao entendimento doutrinário aqui exposto:

34015485 - INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - SERVIÇO MÉDICO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - ÔNUS DA PROVA - A teor do disposto no art. 6, VIII, do Código de Defesa do Consumidor o fornecedor e que terá de provar que a alegação do consumidor não é verdadeira, quando, a critério do órgão julgador, os fatos alegados pelo mesmo forem verossímeis ou quando for hipossuficiente. Embora a avaliação dos danos morais para fins indenizatórios seja das tarefas mais difíceis impostas ao magistrado, cumpre-lhe atentar, em cada caso, para as condições da vítima e do ofensor, o grau de dolo ou culpa presente na espécie, bem como os prejuízos morais sofridos pela vítima, tendo em conta a dupla finalidade da condenação, qual seja a de punir o causador do dano, de forma a desestimulá-lo à prática futura de atos semelhantes, e a de compensar o ofendido pelo constrangimento e dor que indevidamente lhe foram impostos, evitando, sempre, que o ressarcimento se transforme numa fonte de enriquecimento injustificado ou que seja inexpressivo ao ponto de não retribuir o mal causado pela ofensa. (TAMG - Ap 0257472-3 - 3ª C.Cív. - Relª Juíza Jurema Brasil Marins - J. 01.07.1998)

34017631 - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - INSTITUIÇÃO HOSPITALAR - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - MÉDICO - CULPA - PROVA - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - A relação entre hospital e paciente caracteriza-se como de consumo, qualificando-se o hospital como autêntico prestador de serviços, nos termos dos arts. 2 e 3, parágrafo 2, da Lei nº 8078/90, respondendo objetivamente pelos danos ao paciente ou a sua família. A responsabilidade civil do médico não é presumível, de forma que, se não restar comprovada sua culpa, não deve haver condenação na obrigação de indenizar. (TAMG - Ap 0272125-5 - 2ª C.Cív. - Rel. Juiz Batista Franco - J. 23.03.1999)

104362 - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - MÉDICO - CULPA - PROVA - INSTITUIÇÃO HOSPITALAR - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - A relação entre hospital e paciente caracteriza-se como de consumo, qualificando-se o hospital como autêntico prestador de serviços, nos termos dos arts. 2º e 3º, § 2º, da Lei nº 8.078/90, respondendo objetivamente pelos danos causados ao paciente ou sua família. A responsabilidade civil do médico não é presumível, de forma que, se não restar comprovada sua culpa, não deve haver condenação na obrigação de indenizar. (TAMG - AC 272.125-5 - 2ª C.Cív. - Rel. Juiz Batista Franco - DJMG 23.10.1999 - p. 12)

17016226 - RESPONSABILIDADE CIVIL DE MÉDICO - ERRO MÉDICO - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - INADMISSIBILIDADE - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - ART. 88 - Agravo. Ação de indenização por erro médico em intervenção cirúrgica. Tratando-se de relação de consumo é vedada a denunciação da lide (art. 88, parte final, do CDC). Correta, pois, a decisão agravada que revogou decisão pretérita deferindo a denunciação, com ressalva de eventual propositura de ação contra os denunciados. Recurso improvido. (MGS) (TJRJ - AI 9979/1999 - (21032000) - 12ª C.Cív. - Rel. Des. Reginald de Carvalho - J. 14.12.1999)

9020010 - PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - ERRO MÉDICO - PROVA PERICIAL - HONORÁRIOS DO PERITO - ÔNUS DO AUTOR - ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA - PROFISSIONAL LIBERAL - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICO - INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - Recurso provido. 1. A prestação de serviços pelo profissional liberal está excluída das normas consumeristas. Art. 14, 4. CODECON. 2. É certo que os ônus das despesas comprova pericial, nos casos de assistência judiciária, deveriam ser arcados pelo Estado, porém, se o ente público não dispensa condições materiais, deve o autor adiantar a honorária, salvo livre concordância do expert em recebê-los ao final, vez que este como profissional liberal não está obrigado a trabalhar gratuitamente, assumindo riscos até de custos da perícia. (TAPR - AI - 150275400 - (12840) - 4ª C.Cív. - Rel. Juiz Conv. Jurandyr Souza Júnior - DJPR 09.06.2000)

27124857 - AÇÃO ORDINÁRIA DE INDENIZAÇÃO E REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS - Viável a concessão de assistência judiciária gratuita a entidade filantrópica. Desnecessária a denunciação a lide eis que não se discute o contrato de prestação de serviços. Possível a inversão do ônus da prova nos termos do Código de Defesa do Consumidor quando discute-se a existência de erro médico e indevido atendimento hospitalar. Agravo provido, em parte. Decisão unânime. (TJRS - AGI 70001081918 - 10ª C.Cív. - Rel. Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana - J. 24.08.2000)

9017802 - RESPONSABILIDADE CIVIL - ERRO MÉDICO - REALIZAÇÃO DE NOVA PERÍCIA - APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - ERRO NO DIAGNÓSTICO - RETIRADA PARCIAL DE HÉRNIA QUE NECESSITOU DE NOVA CIRURGIA - MANIPULAÇÃO EXCESSIVA DOS TECIDOS E ÓSSOS QUE OCASIONOU ARTROSE - INOCORRÊNCIA - 1. A perícia é mais um dos meios de prova colocados à disposição das partes para comprovar suas alegações. 2. A demora para a sua realização, bem como respostas contrárias aos interesses das partes, não enseja, por si só, a realização de novo exame. 3. Ainda que aplicável, o CDC não alteraria o ônus da prova, pois na responsabilidade dos profissionais liberais há que se comprovar culpa a fim de ver procedente pedido de indenização (exceção contida no § 4º do art. 14 do CDC) 4. Cabe ao médico utilizar os meios disponíveis, na ocasião do exame, para bem diagnosticar a situação do paciente. 5. A autora não se desincumbiu de seu ônus de demonstrar o momento em que o réu agiu com imprudência, imperícia ou negligência, tampouco se as seqüelas que apresenta são resultados do mau desempenho do réu. 6. As provas existentes nos autos apontam no sentido de serem possíveis, em virtude da cirurgia a que se submeteu a autora, as seqüelas por ela suportadas. Apelação desprovida. (TAPR - AC 0155910-8 - (13193) - 2ª C.Cív. - Rel. Juiz Cristo Pereira - DJPR 06.10.2000

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Sobre o autor
Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

advogado em Alagoas e Pernambuco, consultor de empresas em Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Eduardo Vasconcelos Santos. O exercício da medicina e o Código de Defesa do Consumidor.: Aspectos atuais do direito brasileiro e espanhol. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3802. Acesso em: 22 nov. 2024.

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