3. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
Acerca da responsabilidade do médico teceremos breves considerações a fim de possibilitar o entendimento do reflexo do consentimento informado na responsabilização civil do médico, fazendo singelas observações sobre o aspecto criminal, pois nas rasas águas deste trabalho não se pode abordar com profundidade todos os aspectos do consentimento.
Assim, recordando o aspecto histórico, perceberemos que o tratamento da responsabilidade na Antigüidade era bem diferente da atualidade, vez que o médico era tido como semideus, não sendo questionado o exercício do ofício, principalmente pela existência da figura do médico da família e da pequena evolução científica.
Todavia, esse quadro mudou drasticamente com o avanço científico e tecnológico, ressaltado pela busca da cidadania plena, fazendo com que hoje exista inúmeras ações questionando práticas médicas, não restando ninguém imune a tal possibilidade.
Da irresponsabilidade civil o médico passou a ser alvo de desconfiança, investigações e punições nas esferas administrativa ou judicial, respondendo pelas violações éticas, civis e penais, fruto, em grande parte, da relação médico-paciente que, aparentemente, pouco melhorou com o passar dos anos.
Mesmo assim, tendo em vista a importância do médico para a sociedade a lei protege o exercício da medicina, não sendo nada fácil a comprovação das falhas médicas em razão do arcabouço jurídico que favorece ao profissional de tão nobre função social, conforme perceberemos ao longo da análise dos aspectos da responsabilidade civil.
3.1 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Embora o atual Código Civil tenha disposto sobre o tema na parte relativa aos atos ilícitos, a responsabilidade do médico, em regra, decorre de uma relação contratual entre o médico e o paciente.
O contrato normalmente é verbal em razão da dificuldade de se estabelecer burocracias na medicina.
Existe discussão doutrinária para definir se o médico recebe um mandato do paciente, realiza empreitada ou prestação de serviço, sendo último posicionamento majoritário, ao qual aderimos.
É consenso entre os doutrinadores que a prestação de serviços pelo médico ao paciente submete-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, além de apresentar características de contrato de adesão.
Sobre o contrato de adesão, assim manifestou o ilustre Fabrício Zamprogna Matielo [19]:
Além dessas considerações, ainda se tem de mencionar a maneira sui generis em que normalmente se dá a contratação de serviços médicos, onde uma das partes, na ânsia de buscar a recuperação física ou psíquica, teria reduzida sua capacidade de discussão das condições contratuais, firmando, em verdade, um genuíno contrato de adesão.
Embora seja mais comum o caráter contratual da relação entre o médico e o paciente, surgem situações onde não há contrato, como no atendimento médico na rua ao paciente em situação de urgência.
Nesse caso, o vínculo existente é extracontratual, protegendo o profissional, obviamente, pelas condições adversas em que realizou seu mister, não podendo exercer o mesmo rigor dedicado ao profissional que tem vários recursos à sua disposição.
3.2 AFERIÇÃO DE CULPA
A responsabilização civil do médico depende de demonstração de culpa (negligência, imperícia ou imprudência), vez que a responsabilidade civil do médico é subjetiva, conforme dispõe o parágrafo 4º do art.14 do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, a responsabilização do médico depende de prova da existência dos elementos da culpa ou do dolo, sendo que a última hipótese traz consigo maior gravidade em razão da intenção de prejudicar.
Considera-se como negligência o descaso, a desídia do profissional quanto aos deveres da profissão.
Já a imprudência pode ser definida como ação precipitada, irrefletida, em que o profissional não se preocupou em evitar dano previsível.
Por fim, controvertida a situação relativa à imperícia, vez que parte da doutrina entende que a formação recebida afasta a possibilidade de imperícia do médico, vez que a imperícia é considerada como falta de conhecimento ou técnica profissional, sendo, contudo, outro o entendimento da Jurisprudência, que reconhecesse a possibilidade de imperícia pelo médico.
3.3 OBRIGAÇÃO MEIO OU DE RESULTADO?
Normalmente a obrigação do médico é de meio, consistindo no dever de efetivação de todas as medidas necessárias para salvar o paciente, não se obrigando a resultado positivo.
O médico deve utilizar os recursos disponíveis, não medir esforços e sempre atuar dentro da técnica, não podendo experimentar meios de cura, sob pena de responsabilização.
Já na obrigação de resultado, o contratado obriga-se a proporcionar determinado resultado positivo, não sendo suficiente a diligência e os esforços empregados para isentar o obrigado da responsabilidade.
Há discussão doutrinária acerca da obrigação a que estão sujeitos os Cirurgiões Plásticos e Dentistas, sendo majoritária a parte da doutrina que considera ser obrigação de resultado.
Um dos aspectos importantes da distinção entre a obrigação meio e a obrigação de resultado é a inversão do ônus, vez que na obrigação de resultado cabe ao médico comprovar ter alcançado o resultado a que se comprometera, já na obrigação meio cabe, em regra, ao paciente demonstrar culpa ou dolo a justificar a reparação pretendida.
3.4 DANOS
Para responsabilização não é suficiente a existência do inadimplemento de uma obrigação ou a comprovação de culpa, há que se existir, em regra, um dano.
Daí, normalmente recorrermos à tradicional classificação dos danos em patrimoniais ou em danos morais, estes também chamados extrapatrimoniais, embora de abrangência diversa.
Os danos representam lesões aos interesses juridicamente protegidos, atingindo direta ou indiretamente o patrimônio de terceiro ou a sua moralidade.
A moralidade do indivíduo pode ser afetada no aspecto íntimo (honra subjetiva) ou ter repercussão externa (honra objetiva).
Os danos decorrentes da ação médica podem ter efeitos patrimoniais – também chamado de dano material, como é o caso das despesas com tratamento, perda decorrente de deformidade que impossibilite o exercício de atividade laboral, bem como pode atingir o moral do indivíduo, como o sentimento de desprezo, estresse, depressão, angústia, traumas etc.
Situação conflituosa é a de definir se a violação do direito ao consentimento informado caracteriza, por si só, dano passível de reparação ou satisfação.
Seria a violação ao direito de disposição sobre o próprio corpo efetivado no consentimento informado um dano a ser indenizado?
Os direitos decorrentes da personalidade – chamados de direitos da personalidade – tem proteção constitucional, estando salvaguardados, também por diversas leis infraconstitucionais, inclusive pelo Novo Código Civil.
Os direitos à integridade física e à disposição sobre o próprio corpo são protegidos - dada a sua importância - pela legislação penal, sendo que a observância desses direitos natos decorre da possibilidade de decisão do indivíduo sobre o seu corpo (consentimento informado), excetuadas as situações em que o legislador tornou-os indisponíveis, pois podem afetar o direito à vida, que é garantido a despeito do interesse egoísta de cada pessoa, pois importa à coletividade.
Assim, o direito ao consentimento informado é dever do médico que, em não observando, age com negligência, bem como viola o direito personalidade, que encontra salvaguarda no Novo Código Civil.
Para alguns doutrinadores [20] a violação ao consentimento informado somente teria o efeito de agravar a responsabilidade do médico na aferição da culpa, pois sua inobservância constituiria negligência profissional, elemento da culpa.
Todavia, acreditamos que a violação ao consentimento informado além de constituir elemento caracterizador da culpa do médico, tem também proteção autônoma, em outras palavras, a disposição sobre o próprio corpo e o direito à integridade física de que decorre o consentimento informado são bens jurídicos que merecem proteção em si.
O direito à integridade física, como mencionado, é de tal importância que o legislador dedicou diversos dispositivos para tratar da sua proteção, definindo como crime a sua violação dolosa.
Assim, não nos parece razoável que a devolução indevida de um cheque por insuficiência de fundos justifique a indenização pelo dano moral puro, e a violação ao direito de disposição sobre o próprio corpo com afetação à integridade física não mereça sequer igual tratamento.
Para facilitarmos a visualização de eventual efeito danoso da ausência do consentimento informado, imaginemos uma situação onde a pessoa contrata um médico para realizar uma cirurgia plástica com o objetivo de enrijecer a pele do rosto. No decorrer do tratamento, o cirurgião, por conta própria, decide fazer uma intervenção cirúrgica no nariz do paciente para sua diminuição, vez que o considera demasiadamente desproporcional ao restante do rosto.
O nariz do paciente após a operação apresenta evidente melhora na aparência e proporcionalidade, eis que não existiria razão para se falar em dano estético do ponto de vista objetivo.
Ocorre que a privação ao direito de decidir sobre o próprio corpo é uma ação invasiva e prejudicial ao indivíduo, razão pela qual entendemos que aquela intervenção cirúrgica deu causa ao dano moral por violação ao direito da personalidade representado no consentimento informado, embora possa se discutir a existência de dano corporal.
É indubitável que houve violação à integridade física do paciente, assim como desrespeito ao direito de disposição sobre o próprio corpo, ainda que o padrão de beleza seja o proporcionado pela operação realizada sem o consentimento informado do paciente, não pode o médico decidir sobre o que não lhe pertence, a integridade física do paciente, ainda que entenda produzir o ato médico melhora para o que se propõe.
Não há dúvida que a ação invasiva fere a dignidade do paciente, que se sente incapaz de determinar o que deve ou não ser feito no seu próprio corpo, ocasionando sentimento de desgosto, traumas, assim como pode criar dificuldade de recuperação de saúde pelo estresse decorrente da intervenção indesejada.
Além disso, se lembrarmos que a maioria dos tratamentos médicos desencadeia uma situação de fragilidade e sofrimento, facilmente aceitaremos que uma ação não autorizada do médico sobre a integridade física ou psíquica do paciente geralmente traz desconforto desnecessário, pelo que deve ser objeto de reparação.
Ademais, deve o ser humano ter direito ao próprio corpo, não podendo o médico decidir por ele, salvo nas hipóteses justificadas pelo risco concreto à vida, sob pena de ser responsabilizado pela violação ao consentimento informado, que representa a efetivação da disposição sobre o próprio corpo e garantia sobre a integridade física.
Se não admitirmos que o paciente tenha poder de disposição sobre o próprio corpo, o que lhe restará?
Por outro lado, de que adianta impor um dever ao médico – respeitar o consentimento informado, se não houver reparação ou satisfação nos casos de violação? Certamente estaremos premiando médicos negligentes quanto aos seus deveres, pois raros os casos em que as vítimas conseguem administrativamente ao menos advertência do profissional pela negligência quanto ao consentimento informado.
A reparação com efeito pedagógico, que independe da comprovação do dano, vem sendo admitida pela teoria do dano moral puro, consagrada pela jurisprudência, razão pela qual deve ser aplicada por analogia às hipóteses de violação ao consentimento informado.
Entendemos ser possível a indenização (satisfação) pela violação ao consentimento informado, que agride a liberdade autodeterminação do paciente, podendo trazer angústias e dificuldade de recuperação médica, principalmente considerando o poder das doenças psicossomáticas, que podem ser ocasionadas pelo estresse dos tratamentos médicos indesejados.
O direito à disposição sobre o próprio corpo merece proteção com imposição de indenização por violação ao consentimento informado, que certamente pode ocasionar sofrimentos íntimos desnecessários.
Nesse sentido, o Novo Código Civil Brasileiro, no parágrafo único do art. 953, possibilita ao juiz fixar eqüitativamente valor da indenização na impossibilidade do ofendido provar o prejuízo material, sendo que consideramos plenamente aplicável por analogia aos casos de reconhecida violação do consentimento informado.
3.5 NEXO DE CAUSALIDADE
É a demonstração do vínculo entre o dano suportado ou sofrido e a conduta comissiva ou omissiva do agente responsável.
Normalmente é tormentosa a questão probatória na responsabilização do médico, vez que é conhecimento comum o espírito de corpo existente na classe médica, bem como a discrição em que geralmente são adotadas as práticas médicas, sem presença de testemunhas ou acompanhamento de técnicos imparciais.
Contudo, o nexo de causalidade é essencial para responsabilização do médico, sendo matéria geralmente utilizada como defesa, atribuindo-se o resultado negativo às causas incontroláveis ao homem, tais como o caso fortuito ou força maior.
Observe-se que o nexo de causalidade é de suma importância, não sendo afastado mesmo nas situações em que envolvam a responsabilidade objetiva.
Dessa forma, pode ocorrer que o dano seja decorrência de caso fortuito ou força maior, assim como pode ter origem no comportamento culposo da vítima, elidindo a culpa do médico.
Assim, um dos cernes da questão do erro médico é a previsibilidade, que pode ser aferida do ponto de vista objetivo – a partir do conhecimento do homem médio, ou sobre a ótica subjetiva, onde se apura a previsibilidade de acordo com as condições pessoais do agente.
A imprevisão também afeta a necessidade de obtenção do consentimento informado previamente, sendo dispensável, como já descrito, nas situações de urgência ou emergência, que coloquem a vida em risco concreto.
Pela teoria objetiva de aferição da previsibilidade deve ser punido o médico que, mesmo diante da possibilidade de antevisão do resultado por uma pessoa de mediana diligência, não adotou medidas para evitar ou sanar o dano previsível.
O atual Código Civil confere ao caso fortuito e a força maior o efeito de excluir a ilicitude do fato, pois se enquadram nas hipóteses em que o acontecimento é inevitável, cujos efeitos não seria dado ao homem prevenir ou impedir.
Na medicina existe grande margem para ocorrência de situações imprevisíveis, tanto conseqüência de características próprias do paciente como resultado de reações adversas de medicamentos ministrados, sendo que nesses casos não há como imputar ao médico a responsabilidade se agiu com o devido cuidado.
Mais uma vez o consentimento se faz necessário, pois o paciente informado dos possíveis efeitos do medicamento pode preferir alternativas de tratamento ou mesmo a abstenção diante de quadros alérgicos, por exemplo.
Frise-se que nas hipóteses de dano moral pela violação ao consentimento informado, há presunção do dano, pois não decorre de fatos plenamente verificáveis, vez que afeta a honra subjetiva do indivíduo.
O consentimento informado é de suma relevância, pois o corpo humano não é elemento disponível ao livre arbítrio do médico, tendo este de atuar sempre de acordo coma vontade do titular do direito à integridade, sob pena de indenizar o paciente pelo dano moral (dano extrapatrimonial ao direito de personalidade) que venha a causar.